Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mistério da Ata 278

Quem acessou o site da Anatel no início deste ano, para acompanhar as reuniões do Conselho Diretor, certamente deve ter notado a falta de várias atas referentes aos meses de outubro a dezembro de 2003.

Como esta prática já vinha sendo utilizada pela agência desde julho de 2003, para esconder os fatos envolvendo o sempre suspeito Conselho Consultivo, referentes ao afastamento de dois conselheiros pela Justiça Federal, o negócio começou a ficar interessante, pois era sinal de que também poderia estar rolando alguma encrenca no Conselho Diretor.

E não deu outra.

A Anatel realmente estava querendo esconder a rapadura. E o ‘problema técnico’ que desapareceu com 10 atas de reuniões tinha como objetivo evitar que o público tomasse conhecimento do teor da Ata 278, da reunião do dia 19/11/2003, na qual o conselheiro Antônio Valente submeteu à votação do Conselho Diretor a proposta de realização da Consulta Pública referente ao polêmico regulamento do Serviço de Comunicações Digitais (SCD). Que acabou aprovada pelo voto do próprio relator, acompanhado dos conselheiros Marcos Bafutto (interino) e Luiz Alberto da Silva.

O problema é que a minuta de regulamentação proposta por Valente, que contava com o apoio incondicional do ministro Waldomiro Teixeira, não tinha nada a ver com o que foi estabelecido no Acórdão do TCU (1.107/2003), no dia 18/8/03, em resposta à consulta feita ao tribunal pelo próprio ministro sobre a interpretação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à aplicação dos recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust).

O maior absurdo

O TCU recomendava apenas a criação de uma nova modalidade, a ser prestada em regime público, de algum serviço de telecomunicações já existente, específica para atendimento de instituições beneficiárias dos recursos do Fust. Porém, Valente optou por colocar em votação uma estranha proposta envolvendo a criação de um serviço de telecomunicações completamente novo, a ser prestado ao público em geral, sem nenhum vínculo com estabelecimentos de ensino, bibliotecas e instituições de saúde que constavam do objeto da consulta feita ao tribunal.

Embolando ainda mais o meio-de-campo, o ‘novo’ serviço de telecomunicações de Valente era apenas uma Linha Dedicada para Sinais Digitais (SLDD), modalidade que, segundo a Resolução 272, já estava abrangida pelo Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), causando uma dualidade desnecessária de serviços de telecomunicações que violava o Artigo 1º da LGT, por desorganizar a estrutura regulatória.

Na prática, o ilustre conselheiro estava transformando em regulamento um modelo semelhante ao adotado pelas concessionárias de telefonia na exploração dos serviços de rede internet em banda larga através da tecnologia aDSL, que consiste em criar uma fachada, na qual uma suposta SLDD conecta os equipamentos dos usuários a provedores de serviços de valor adicionado (ligando nada a lugar nenhum), ocultando que os serviços de rede internet estão sendo prestados de ponta-a-ponta pelas próprias concessionárias.

Porém, o maior absurdo de todos era o fato de Valente estar inventando uma regulamentação a partir do simples nome genérico de uma rede de comunicação de dados, procedimento que não está previsto no Artigo 69 da Lei Geral das Telecomunicações (LGT) para definição de serviços de telecomunicações.

Inestimável incentivo

Piorando a encrenca, o Artigo 60 da LGT restringe a autoridade da Anatel apenas aos meios necessários para que possa existir a oferta de telecomunicação, não sendo problema da agência os diversos nomes utilizados pelos usuários para identificar as redes de comunicação de dados, que podem se chamar internet, inter-redes, grande rede, rede mundial, Dorotéia, Maricota etc.

Cada matéria colocada em votação pelo Conselho Diretor da Anatel é sempre objeto de análise prévia elaborada por um de seus conselheiros, que atua como relator. Isso implica sério compromisso de lealdade com os demais membros do conselho quando da elaboração de análises, para evitar decisões injustas que firam direitos e interesses de todos os usuários de serviços de telecomunicações.

Parece não ter existido muita lealdade por parte de Valente em sua análise esquisitona, de 18/11/03, identificada como 203-GCAV, utilizada como base para votação da proposta de consulta pública da minuta de regulamentação do SCD, pois, além de tendenciosa, a análise deturpa, ou até mesmo omite, informações de capital importância para o perfeito entendimento da matéria por parte dos demais conselheiros, o que poderia ser considerado tentativa velada de induzi-los ao erro, como é demonstrado a seguir:

a) A análise do nobre conselheiro faz uma transcrição parcial do Acórdão do TCU, omitindo justamente o objeto da consulta, sua parte mais importante, que é apenas mencionado de forma muito dissimulada em outro ponto do documento.

b) A omissão do objeto da consulta ao TCU na análise de Valente prejudica o entendimento de que a consulta versava sobre a contratação de serviços de telecomunicações específicos para o atendimento de estabelecimentos de ensino, bibliotecas e instituições de saúde beneficiários das verbas do Fust, e não para o público em geral.

c) O parecer da Secretaria de Fiscalização de Desestatização (Sefid), que prevaleceu na decisão do TCU manifestada no acórdão, recomendava apenas a criação de uma nova modalidade do SCM (ou SRTT) para ser prestada em regime público, específica para o atendimento das instituições beneficiárias dos recursos do Fust. E não um serviço de telecomunicações completamente novo fornecido ao público em geral.

d) Em sua análise, o Valente não poderia afirmar que a criação do SCD é ratificada pelo Acórdão do TCU porque esta informação não é verdadeira.

e) Um trecho do informe nº 070/UNPCP/UNPC/SUN, de 13/11/2002, de autoria de Edmundo Matarazzo, utilizado na análise do conselheiro-relator, apesar de ter sido copiado, na íntegra, da Resolução 272, que criou o SCM, estranhamente esquece de informar que o SCD, além de se confundir, chega até a representar uma dualidade de uma das modalidades (SLDD) do próprio Serviço de Comunicação Multimídia (SCM).

f) Apesar da modalidade de Serviço por Linha Dedicada para Sinais Digitais (SLDD) que constitui a essência do SCD já estar abrangida pelo Serviço de Comunicação Multimídia, o mesmo não é sequer mencionado em nenhuma parte da análise de Valente.

g) A análise de Valente faz confusão entre o Artigo 1º e o Artigo 19º da LGT. Talvez seja este o motivo de ele não ter agido com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade (violação ao Artigo 19º) na elaboração do documento submetido à apreciação de seus colegas de conselho, assim como, para ter proposto a existência de uma dualidade desnecessária de serviços de telecomunicações, desorganizando a estrutura regulatória do setor (violação ao Artigo 1º).

Segundo a assessoria de imprensa da Anatel, a invenção do SCD é resultado de um trabalho conjunto envolvendo o Minicom e a agência, do qual participaram Matarazzo, Valente e Pedro Ziller (atual presidente da Anatel). O trabalho também contou com o inestimável incentivo do então ministro Waldomiro Teixeira que, como suposto mentor do projeto que finalmente liberaria os bilhões de reais do Fust para instalar computadores nas escolas, tinha toda a pressa do mundo na aprovação do ‘novo’ serviço.

Incompatibilidade espiritual

Porém, os conselheiros Luís Schymura (então presidente da agência) e José Leite não foram na conversa do ministro e votaram contra a proposta esquisitona de Valente, justificando seus votos (publicados na íntegra no site username:Brasil) na ata da Reunião 278.

Os votos contrários, que apontavam a irregularidade da sobreposição de dois serviços de telecomunicações, passaram a representar séria ameaça à existência do SCD, e algum gênio interessado em emplacar o ‘novo’ serviço de qualquer maneira teve a brilhante idéia de esconder da população o racha entre os conselheiros.

A estratégia foi publicar a Consulta Pública 480, relativa à minuta do SCD, sem a justificativa formal prevista no Artigo 40 da LGT, evitando com isso a existência de qualquer referência à Reunião 278. Complementando a lambança, foram ‘desaparecidos’ do site da Anatel os links das atas das reuniões 270, 271, 272, 274, 275, 276, 277 e, obviamente, 278. Posteriormente, as atas 279 e 280 também desapareceram.

As atas permaneceram ‘desaparecidas’ até 1º/3/2004, quando finalmente o ‘problema técnico’ foi solucionado. Por puro acaso, exatamente no mesmo dia do encerramento da Consulta 480.

A terapia empregada, porém, talvez acabe matando o doente, pois a falta da justificativa formal acompanhando a minuta de regulamentação do SCD no site da Anatel (ela foi publicada apenas no Diário Oficial de 24/11/03), que impediu o público de conhecer o teor da Reunião 278, pode ser considerado ato jurídico imperfeito, o que anularia completamente a Consulta 480 e as audiências públicas nas quais a minuta do SCD foi discutida – e mandando para o lixo as mais de 800 colaborações enviadas pela população e transformando tudo em pura perda de tempo e dinheiro.

Uma notícia interessante sobre a participação do então ministro Waldomiro Teixeira na encrenca do SCD foi relatada no grupo de discussão do Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação, o FNDC (

www.fndc.org.br), que contém uma seleção de textos coletada da pesquisa diária do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom):

Miro elogia decisão do conselho da Anatel

19/11/2003, 19h25

De acordo com a assessoria do Ministério das Comunicações, Miro Teixeira ligou para os três conselheiros que votaram favoravelmente à proposta de regulamento do serviço de comunicações digitais, destinado ao uso do público em geral, cumprimentando-os pelo ‘elevado espírito público’ de sua decisão. No final da manhã desta quarta, 19, antes mesmo que a Anatel confirmasse o fim da discussão sobre a proposta de regulamento, a assessoria do ministério apressou-se em divulgar a decisão, que somente foi oficializada pela agência por volta das 15h. Há no Ministério das Comunicações o claro desejo de apressar os processos relativos ao Fust.

Pra quem vivia cuspindo marimbondos contra a Anatel, essa estória ficou meio mal-contada. Será que existe alguma incompatibilidade espiritual entre o nome Waldomiro e o PT?

Pobre Lula. Quem tem Waldomiros na equipe não precisa mesmo de adversários políticos.

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