Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo não é ciência

Jornalismo não tem objeto nem metodologia e, principalmente, produção de conhecimento acadêmico científico acumulado que justifique esta prática como ciência. O estudo do jornalismo, por outro lado, pode vir a transformar-se numa ciência, se a tendência a pensar a prática profissional se afirma entre os profissionais da imprensa e outros pesquisadores e professores universitários de áreas convergentes. Jornalismo pode não ser ciência, mas seu estudo é. Ou não?

Para testar a hipótese, vou aproveitar dois textos acadêmicos que se debruçam sobre a questão da possibilidade do jornalismo como ciência. O primeiro tem como título “A importância do jornalismo como ciência no processo de profissionalização da carreira” (BOOC, 2008, PT), de Paula Melani Rocha, mestre e doutora em sociologia das profissões pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pós-graduação em jornalismo em Harvard. Paula também é jornalista formada pela Cásper Líbero em Jornalismo e em Ciência Sociais pela USP. Neste seu artigo, ela pretende “analisar o jornalismo enquanto ciência para adquirir o status de profissão e sua relação com a sociedade”. Seu texto foi apresentado no VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom (2008).

Elias Machado, jornalista, pesquisador e doutor em jornalismo pela Universidade da Bahia comparece com o texto “O pioneirismo de Robert E. Park na pesquisa do jornalismo” (Estudos em Jornalismo e Mídia, SC, Vol.II – 1º semestre de 2005). Quero apresentar um pequeno ensaio de investigação sobre as possibilidades do jornalismo como ciência. Testar a eficácia desta possibilidade contra a força dos estudos disponíveis e das reflexões sobre a prática da profissão de jornalista feitas aqui neste observatório e em outros centros de pesquisa sobre o periodismo.

Teoria a ser comprovada

O artigo de Paula Rocha é um estudo exploratório apoiado na Ciência da Comunicação e nos trabalho do sociólogo Eliot Freidson. Não tem ambições de provar nada a priori. Os estudos exploratórios muitas vezes apresentam resultados que divergem da hipótese inicial de seus elaboradores, tomando outra direção, e mudando o rumo do debate. A natureza aberta desta forma de pesquisa presta-se muito bem para testar minha hipótese inicial: o jornalismo não é ciência. Apesar de seu compromisso com a exatidão, o conhecimento produzido por ele é superficial e provisório. Não é ciência, portanto.

No resumo inicial de seu artigo, ela afirma que o jornalismo no Brasil não pode ser considerado ciência por duas razões: a primeira delas tem origem na natureza do conhecimento produzido pelas universidades na formação dos jornalistas. A universidade brasileira não privilegia a produção de conhecimento acadêmico nem a reflexão crítica sobre a prática profissional. O conhecimento produzido não tem o alcance e a profundidade necessária para dotar a profissão da expertise necessária para a produção acadêmica de conhecimento científico. “A expertise compreende o conhecimento especializado abstrato adquirido no curso de graduação”, explica a autora.

A segunda razão que ela apresenta para o caráter não-científico do conhecimento produzido pelos jornalistas é a própria ausência da regulamentação da profissão. “Não há um conselho regulamentado” acima dos profissionais, ela diz. Não ficou suficientemente claro para mim até que ponto atrapalha a ausência de uma “fronteira jurisdicional” na profissão, para que esta possa produzir conhecimento. Não creio que ela esteja a dizer que uma profissão não-regulamentada não possa produzir conhecimento. Isto seria uma ideologia absoluta. Mas tenho que concordar que a regulamentação da profissão poderia ajudar a elevar o padrão de conhecimento produzido nas universidades, entendendo que a organização de um conselho federal poderia levar a uma melhoria no conhecimento produzido pelas universidades. Mas isso por enquanto é teoria a ser comprovada (ou não) na prática.

Sociologia urbana e jornalismo

A regulamentação da profissão não é garantia de produção de conhecimento acadêmico científico. Mas não há dúvidas que um órgão regulamentador da profissão poderia ajudar a melhorar a formação dos profissionais nas universidades. Carlos Chaparro, citado por ela em seu artigo, também não acredita no jornalismo como ciência. Em seu ensaio “De como a ciência pode ajudar a notícia” (revista PJ: BR, USP, Ed.02, 2º semestre, 2003), ele confia que o jornalismo melhoraria em qualidade se incorporasse em sua prática alguns elementos científicos, como “método de pesquisa, com recorte do objeto, investigação, aferição, contextualização e profundidade”. O autor crê (e eu também) que o jornalismo deva incorporar alguns elementos da ciência em sua prática, para elevar a qualidade do trabalho produzido pelos profissionais da imprensa. Alguém pode discordar disso? Foi o melhor argumento que encontrei para a defesa da obrigatoriedade dos diplomas de jornalismo.

O professor Elias Machado apresentou um trabalho mais denso e profundo que sua colega. Ele não tem formação em Harvard, mas produziu um excelente artigo sobre a pesquisa em jornalismo, baseado nos trabalhos de Robert Park, jornalista por 11 anos e sociólogo fundador da escola de Chicago de sociologia urbana nos anos de 1920. Os fundamentos teóricos da teoria da ecologia urbana, criada por Park, serviram de base para formação dos sociólogos urbanos até o ano de 1968, quando Manuel Castells fez a crítica pioneira que abalou os fundamentos da teoria da ecologia urbana de Park, com seu artigo “Há uma sociologia urbana?” na Revue Sociologie du Travail (Paris, 1968). Castells e outros sociólogos franceses marxistas nos anos 1970 argumentaram com razão que Park não havia reconhecido o fato do espaço público da cidade ser um produto social, ao qual não se aplicam argumentos derivados do evolucionismo de Darwin para o seu entendimento.

A produção acadêmica dos dois teóricos revela a conexão oculta ao público entre a sociologia e o planejamento urbano, e o jornalismo. Enquanto Park “chegara à sociologia com o objetivo de definir conceitualmente a notícia”, Castells fez o movimento inverso: mudou o foco de seus estudos da cidade para a informação e a mídia, que ele hoje considera como elemento fundamental na transformação da mente humana. Sociologia urbana e jornalismo têm um vínculo acadêmico que acontece no campo da produção do conhecimento acadêmico e que não é evidente para o público.

A natureza humana

Os dois, de formas diferentes, apoiam-se no discurso sobre a cidade e o que acontece nela. Os relatos urbanos são a base do jornalismo contemporâneo. O jornalismo cria a narrativa das metrópoles e seus dramas cotidianos. O planejamento urbano é uma ciência social aplicada.

Robert Ezra Park, jornalista, sociólogo e ativista dos direitos dos afro-americanos por sete anos, foi um dos pesquisadores pioneiros a ter o jornalismo como objeto de pesquisa. Em 1898 matriculou-se em Harvard “na esperança de compreender a natureza e a função de um tipo de conhecimento que chamamos notícia”. Machado em seu artigo detalha a formação de Park, que envolveu aulas, dissertações e uma tese de doutoramento com os melhores nomes de seu tempo no periodismo. Foi estudar na Alemanha, país que em sua época liderava as pesquisas em jornalismo. Lá, ele teve aulas com o fenomenal Georg Simmel, um dos “pais” da sociologia, e com Wilhelm Windelband, seu orientador em sua tese de doutorado (“Crowd and Public” – Multidão e Público, 1903, Heidelberg). De volta aos Estados Unidos em 1903, auxiliou William James em Harvard. Mas logo se cansou do isolamento entediante da Academia. Resolveu voltar “ao mundo dos homens”, conforme disse em sua autobiografia, resumida por Machado.

Passou a escrever sobre a política colonial dos Belgas no Congo, sempre a lutar contra a exploração da população local pelos súditos de Leopoldo II, Rei dos belgas. Daí partiu para o projeto Tuskegee, criado para formar lideranças negras no estado do Alabama, onde permaneceu por sete anos. A participação no projeto marcou sua vida e seu trabalho. Profundamente impressionado com o que viu, declarou que “aprendeu mais lá sobre a natureza humana e o funcionamento da sociedade que em todos os estudos prévios que fizera na Universidade”.

“Participação afetiva no acontecimento”

A observação imediata dos fatos (empirismo) deixaria uma marca indelével em sua produção acadêmica e sua metodologia de pesquisa: ele sempre partia de situações concretas em seus estudos em vez de recorrer ao que já havia sido produzido nas universidades ou outros centros de saber científico (racionalismo). Isto implicaria limitações futuras em sua definição da notícia e seu veiculador, o repórter. Segundo Park, o jornalismo produz um tipo de conhecimento vulgar e não-científico, e o repórter não tem o poder de interpretar o fato que relata. O conhecimento jornalístico não consegue ultrapassar o senso comum, ao contrário do conhecimento formal, ou científico. Essa dualidade entre jornalismo e ciência o impediu de definir a função social da notícia.

Sua visão ficou limitada pela paisagem da mídia em sua época: imprensa para ele era sinônimo de jornal. Não havia mais nada. Nem rádio, muito menos televisão. Imprensa e jornal eram, na prática, sinônimos. E quem já viu de perto os jornais do início do século passado deve ter notado que naquela época não havia layout nem seções. As notícias amontoavam-se umas sobre as outras, entremeadas por publicidade. O repórter naquela época não poderia ser muito mais do que um mero relator dos fatos que presenciara. Não havia espaço físico editorial para isso. Park então conclui que “a notícia, por não impor qualquer esforço ao repórter esforço para interpretá-la, cumpre, em algum modo, a mesma função para o público que a percepção individualmente para os homens” (Park, 1969).

O sociólogo (e jornalista) perdeu de vista a capacidade dos meios de comunicação, que “mais que basearem-se em percepção individual, criam uma realidade distinta: ela nos aproxima mais do real, os meios de comunicação as transformam em documentação e outras manifestações mais perenes, e ainda estabelecem com o público ‘a sensação de participação afetiva no acontecimento’”. A crítica é de Miguel Rodrigo Alsina, e está presente em seu livro A construção da notícia.

A função social do jornal

Existem outros limites apontados por Machado na teoria da notícia de Park: ele acreditava, por exemplo, que a notícia antecedia a História e a escrita, ignorando a influência decisiva dos canais de comunicação institucionalizados nas sociedades mais complexas. E o papel da escrita no surgimento da mídia de comunicação de massa. A concepção de notícia de Park ficou limitada por sua época, e por seu método que sempre partia da prática, ignorando o conhecimento acumulado nas universidades e outros centros de saber institucionalizados.

Mas a grande contribuição de Park para o jornalismo não foi sua concepção de notícia, mas a função do jornalismo como instituição social. Machado comenta:

“Quando para intelectuais do porte de Upton Sinclair, de um lado, o jornal era um crime, um símbolo de prostituição e para os áulicos de plantão, de outro, representava a tribuna do povo, Park teve a sagacidade de sociólogo para perceber que o que mais interessava naquele momento era identificar o jornal como uma instituição social, nascida para atender as demandas comunicativas de uma sociedade moderna cada vez mais complexa.”

Machado chama a atenção para o “modelo operativo” de Park. Ao reconhecer a importância institucional do jornal, Park escapou do julgamento moralista da época. Park compreendeu, que para além do bem e do mal que possam trazer os jornais, sua importância para a sociedade é fundamental. Robert Park viveu tempos turbulentos de profundas mudanças nos jornais sem julgamentos de valor, sempre preocupado em compreender o significado daquelas mutações, “identificando-as como sintomas de transformações sociais mais amplas decorrentes da institucionalização do jornalismo”. Ele sobreviveu a tempos difíceis e foi pioneiro em compreender a função social do jornal e sua ideia de propor o estudo científico do jornalismo.

Rigor e exatidão

O “modelo operativo” de Park ainda permanece parcialmente atual, no que toca as instituições da sociedade e o jornalismo. Vivemos os tempos da crise dos métodos e do “fim das metanarrativas” (Harvey, 1992). A ciência tem trabalhado mais com definições operacionais (a expressão é do físico brasileiro Marcelo Gleiser), que mudam de acordo com o objeto de estudo, do que com métodos tradicionais. O jornalismo hoje vive uma grande crise. A notícia parece que tomou vida própria e agora não é mais privilégio da imprensa. Quem é jornalista? Somos todos jornalistas? Quem pode e quem não pode produzir notícia, em nossa época com sua paisagem midiática delirante e incompreensível? São muitos os problemas a enfrentar nesta crise que vivemos. E é somente tentando desvendar os vínculos entre ela e as transformações sociais mais abrangentes atadas a ela que o periodismo poderá sair enriquecido de sua crise atual.

O papel do jornalismo é fornecer ao público um conhecimento provisório, que esteja acima do senso-comum e seja capaz de interpretar os fatos que relata. Jornalismo não é ciência, e é bom que não o seja. O jornalista não pode ficar preso a métodos científicos e outros limites da academia. Assim ele perde agilidade para captar o cotidiano fugidio e mutável a cada segundo. Precisa estar aberto aos acontecimentos que vão acontecendo no cotidiano, para relatá-los com rapidez ao público, enquanto encaminha a matéria que apresenta aos especialistas, que são homens de ciência e que podem fornecer ao leitor explicações de maior profundidade nos temas abordados nas notícias.

Por outro lado, com já afirmei antes, pensar sistematicamente e produzir conhecimento acadêmico sobre jornalismo é (ou poderá vir a ser) uma ciência. Ainda em sua primeira infância, mas ainda assim, ciência. Segundo Paula Melani Rocha, o ensino do jornalismo visa mais à colocação do profissional no mercado do que ensiná-lo a pensar criticamente sua prática e produzir conhecimento especializado. É uma verdade e ninguém pode negar. Enquanto a formação não se voltar para a produção de conhecimento, vão faltar rigor e exatidão no jornalismo.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]