Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

João Moreira Salles

‘Na segunda-feira Michael Jackson foi absolvido da acusação de pedofilia, senão pela opinião pública (pesquisas feitas logo após o veredito indicam que grande parte dos americanos acredita que ele é culpado), ao menos pelo tribunal do júri. Alguém poderá pensar: ao menos por quê? Afinal, Jackson tirou o bilhete premiado: ouviu a palavra inocente da única instância que lhe interessa. A questão é que, a longo prazo, Jackson depende muito mais do público do que de míseras 12 almas. Desde que deixou de compor, cantar ou dançar, Jackson se dedica a uma única atividade: a de se oferecer ao consumo dos que ainda o adoram. Se não conseguir se livrar do estigma da pedofilia, adeus.

Em fevereiro de 2003, a televisão inglesa exibiu um programa de TV que revelava tanto a magnitude do estrelato de Jackson quanto as bizarrices da sua existência. Semanas depois, o programa foi ao ar nos Estados Unidos e Jackson entrou no seu inferno legal. O programa, conduzido com inacreditável má-fé por um repórter chamado Martin Bashir, parecia incriminar Jackson. Instaurou-se o inquérito; em seguida, veio o processo. Bashir foi arrolado como testemunha de acusação. O texto que segue foi escrito para a revista eletrônica nominimo (www.nominimo.com.br) no dia seguinte ao da exibição do programa na Inglaterra, onde eu morava na época. Aqui ele está um pouco condensado:

Nesta última semana, a TV inglesa pôs no ar um dos mais memoráveis programas dos últimos tempos. Trata-se da já famosa entrevista com Michael Jackson, uma reportagem-tablóide travestida de documentário jornalístico. A cinematografia é cuidadosíssima, toda em película; a trilha sonora é caprichada e alterna música originalmente composta para a ocasião com as grandes canções da década de 80 de Michael Jackson; a produção é rica, fazendo crer que os homens que administram o orçamento da Granada (que produziu o programa) e o da ITV (que o exibiu) sabiam estar com ouro nas mãos. Não era o caso de economizar. Estavam certos. Venderam o tablóide eletrônico para a TV americana por US$ 5,5 milhões.

O jornalista Martin Bashir acompanhou Jackson por oito meses. Cada vez que o cantor o chamava, Bashir largava tudo, pegava um avião, cruzava o Atlântico e ia ao encontro do seu personagem. Apesar de estar a meio mundo de distância, nunca o deixou esperando mais de 24 horas. Esse jeito disponível de ser é um dos trunfos de Bashir, um homem de 38 anos de ascendência indiana com a cara bonachona daquele amigo que faz falta quando não vai à pelada, não porque jogue bem (não joga), mas porque é um bom camarada, sempre disposto a ir para o gol e a rir das más piadas. Na Inglaterra, ele detém o monopólio das entrevistas com celebridades de acesso impossível. Com seu ar de bom moço, aproxima-se, ganha confiança e triunfa onde a concorrência fracassa. Foi para Bashir que a princesa Diana confessou ter cometido adultério com um oficial da Cavalaria.

O programa Vivendo com Michael Jackson começa com os portões de Neverland, a Terra do Nunca, se abrindo. Como o mundo todo sabe, Jackson mora na Terra do Nunca. Bashir, em um carro conversível, entra na propriedade e o espectador rapidamente percebe que é prudente deixar todas as noções de normalidade do lado de fora. Não é fácil descrever a Terra do Nunca. Para os que têm menos de 12 anos, o lugar deve ser como o Paraíso antes da maçã. A gigantesca propriedade de Michael Jackson é uma utopia pré-adolescente. Há montanha-russa, roda-gigante, carrinho de corrida, zoológico e carrossel clássico, desses que aparecem em filmes sobre a Guerra Fria rodados na Europa Central. Há barraquinhas de refrigerante e de sorvete. Michael Jackson aponta os diversos sabores e, indeciso, diz com voz lânguida: ‘Quero esse. Não, esse outro. Aquele.’ Quer todos, não quer nenhum. Quer um parque aquático completo. Michael Jackson pensa e age como uma criança de 5 anos a quem ainda falta o princípio de realidade.

É possível estranhar a idade mental, mas não a desmesura. Deve-se levar em conta que Jackson possui dois predicados capazes de provocar curto-circuito. De um lado, o carisma, cuja natureza descomunal é flagrada profusamente ao longo do programa: cada vez que Jackson põe o pé na rua o mundo pára. O segundo predicado é a fortuna. Aos 12 anos, cantando pelo Jackson 5, já recebia cheques mensais de US$ 200 mil. Pressionado por Bashir, Jackson confessa ter mais de US$ 1 bilhão. Mesmo que não vendesse mais um só disco, a aplicação conservadora dessa fortuna lhe traria US$ 42 milhões por ano, US$ 117 mil por dia. Com esse dinheiro, nada do que até hoje desejou esteve fora de seu alcance. Dizem que, nos últimos anos, a montanha de processos, advogados e gastos delirantes o deixaram a um passo da bancarrota. É difícil, mas não impossível.

Enquanto não quebra, Jackson vive sem limites. Não há de fato princípio algum que freie sua realidade. O que Jackson deseja Jackson tem, contanto que o desejo possa ser expresso em dólares.

Uma das seqüências mais espantosas do programa o mostra numa loja de decoração em Las Vegas. A seqüência incomoda porque nela Bashir estimula a esquisitice de Jackson, transformando-o em personagem de circo de variedades. Jackson aponta os objetos – vasos, lustres, globos, estátuas, quadros – desejando-os todos. Não devota mais de cinco segundos de atenção a nenhum objeto comprado. Sua voz entediada se arrasta num longo fiapo de iis: ‘I want thiiiiiiiis…’ Jackson não precisa fazer escolhas – nunca teve de dizer ‘quero isto ao invés daquilo’. Nada do que possui decorre de longas deliberações. Nenhum objeto ocupa o lugar de outro que teve de ser deixado para trás. Tudo se equivale, não só do ponto de vista financeiro (Jackson não faz contas), mas também afetivo. O resultado é que Jackson vive mergulhado num bizarro sistema mental em que prevalece a entropia dos afetos. Tudo é igual a tudo e nada vale nada.

Jackson gosta de Las Vegas. Quando lhe dá na veneta, parte da Terra do Nunca para uma temporada de mais solidão em sete suítes do hotel Four Seasons. Espalha pelo quarto estátuas em tamanho natural de velhinhos que fazem caretas. Em um canto, instala um imenso jogo de fliperama. Tem à mão uma cadeira motorizada para passear de madrugada pelos corredores vazios do hotel. De dia, além de fazer compras, gosta de visitar os pontos turísticos da cidade. Um dos aspectos mais cruéis de Vivendo com Michael Jackson é o fato de ele ter se deixado enfeitiçar pelo aparente bom-mocismo de Bashir. É inegável que passou a tratá-lo como amigo. Bashir sorri, afaga, seduz, trata-o de gênio. (Sobre isso, aliás: numa seqüência em que ensina Bashir a dançar, vemos do que Michael Jackson é capaz. Ele é, ou foi, um dos gênios da cultura pop. Mas é claro que isso não interessa a Bashir.) Jackson quer mostrar a seu novo amigo tudo o que admira. Chama-lhe a atenção para a beleza do teto de um shopping. É a reprodução da Capela Sistina. ‘Olhe! Olhe! Não é lindo? Você gosta?’, pergunta, sôfrego. Em um cassino, embevecido, mostra as pirâmides do Egito. Vai até uma loja onde exibe o sarcófago de Tutancâmon que acabou de adquirir. É uma cópia em ouro. Jackson paga caro por cópias. Não ficamos sabendo se conhece os originais.

O interesse do programa de Bashir não reside nas revelações, ou não-revelações, sobre pedofilia. É difícil saber se Jackson está sendo sincero quando diz que cede sua cama às crianças movido por sentimentos camaradas. Minha impressão é que sim, mas minha impressão não vale nada. Trata-se de assunto penoso a ser resolvido pelas partes envolvidas. Fora disso, é apenas alimento para jornalistas como Bashir. No máximo, revela um pouco da sordidez geral. O amiguinho de 12 anos de Jackson responde a uma pergunta de Bashir dizendo que não, sua mãe não fica preocupada cada vez que ele passa a noite na casa de Michael Jackson, fica até bastante feliz. É claro que fica: em pouco tempo poderá processá-lo.

Vivendo com Michael Jackson acerta num alvo muito mais interessante, que decerto Bashir não mirou. Sem querer ele nos revela, como nunca, as metamorfoses provocadas pelo grau máximo da celebridade; a maneira como alguém, por excesso de tudo – de fama, de dinheiro, de sucesso e de talento – vai sendo empurrado para fora do espaço psicológico onde todos nós vivemos, em direção a uma atmosfera mental incapaz de sustentar vida humana. Michael Jackson entrou em órbita. Já não está entre nós.

Sua propriedade é repleta de imagens de Peter Pan. Bashir pergunta por quê. Jackson responde: ‘Porque eu sou Peter Pan.’ Parece loucura, e é mesmo, mas o extraordinário é que com Jackson a maluquice parece ter surtido efeito. Ele fala como uma criança. Seu mundo é eminentemente infantil. Tudo o que o cerca só pode fazer sentido para quem tem menos de 12 anos. A certa altura do programa, espantado com o que vê, o jornalista diz a Jackson: ‘Mas você tem 44 anos…’ Um dos amiguinhos do cantor interrompe Bashir, cortando a frase no meio. ‘Não, ele tem 4.’ Jackson assente, num sussurro melancólico: ‘Eu tenho 4 anos.’

Tanta loucura atinge concentração máxima na face. Para entender Michael Jackson é preciso olhar para ela. Lá estão estampados tanto a sua obsessão – permanecer jovem – como o seu drama – ter virado coisa. Desde criança, Jackson mantém uma relação doentia com seu rosto. Não se olhava no espelho. O pai caçoava do tamanho do seu nariz. As fãs se espantavam com a acne. Quando Bashir avisa que chegou a hora de falar sobre o assunto, Jackson exige que a cena seja iluminada por seu fotógrafo pessoal. Ninguém em sã consciência pode olhar para aquela máscara e dizer que por trás se esconde um homem de meia-idade. Nisso, Jackson teve sucesso. Desumanizou sua face a ponto de livrá-la do desmanche do tempo. Sua expressão é quase nenhuma. Os olhos não riem, a boca não abre. O lábio superior está inteiramente paralisado. A voz que escapa é suave, às vezes lânguida, às vezes gentil, jamais brusca, porém sempre, sempre exausta.

É claro que, em breve, o tempo alcançará Jackson. Mas é provável que seu rosto seja afetado de maneira peculiar. Boa parte dele envelhecerá inorganicamente, como envelhecem os objetos inanimados. Jackson tenta preservar a juventude sem perceber que, em outros lugares, o tempo vai fazendo seu serviço. No programa, cada vez que leva as mãos ao rosto produz-se o mal-estar de um paradoxo: os dedos são vivos e rugosos; a face é morta e macia, atemporal.

Com seus cabelos lisos e negros de Iracema e seus uniformes de soldado do Quebra-Nozes, Michael Jackson caminha solitário pelos jardins da Terra do Nunca embaixo de um enorme guarda-chuva que o protege do sol. Lembra uma gueixa. Bashir se despede com um sorriso doce e deixa para trás os imensos portões de ferro da propriedade, decerto polindo mentalmente os adjetivos que usará mais tarde na narração em off: vida bizarra, atitude estranha, lado obscuro, comportamento alarmante. Voltando a fita duas ou três vezes, consegue-se ler duas divisas sobre o brasão de ouro que orna o gradil: Dieu et mon droit e Honi soit qui mal y pense. São sentenças que aparecem nas armas dos soberanos da Inglaterra. Acompanham a monarquia até hoje, mas foram criadas para uma época em que reis e rainhas tinham parte com o além.

A primeira divisa diz: Deus e meu direito. Pode ser lida como uma afirmação de excepcionalidade. As minhas leis e as de Deus, apenas.

A segunda divisa proclama: Malditos aqueles que pensarem mal disto. Bashir deu de ombros e seguiu adiante, contando seus milhões. (João Moreira Salles é cineasta e documentarista, diretor de ‘Entreatos’ (2004), ‘Nelson Freire’ (2003) e ‘Notícias de uma Guerra Particular’ (1999))’



WSJ AOS SÁBADOS

O Globo

‘‘Wall Street Journal’ de sábado chega em setembro’, copyright O Globo / The New York Times, 20/06/05

‘Há décadas os leitores procuram o ‘Wall Street Journal’ para saber como os negócios e a política eram jogados nos bastidores dos Estados Unidos. Mas será que eles vão procurar o ‘Journal’ para saber fazer um suflê perfeito?

A partir de 17 de setembro, o ‘Journal’ sairá também aos sábados, na chamada edição de fim de semana, com ênfase em assuntos leves: lazer, viagem, esportes, artes, livros, imóveis e, claro, receitas. O objetivo é atrair uma base diversificada de anunciantes, para tirar o ‘Journal’ da atual estagnação de sua receita com publicidade.

O jornal de sábado, que será entregue – pelo menos inicialmente – aos assinantes sem custo adicional, vai ter uma apresentação mais arejada que as edições de segunda a sexta-feira, mas ainda será perfeitamente reconhecível como o ‘Wall Street Journal’.

Ele terá três seções: notícias, dinheiro e investimentos, e atividades – esta devotada ao lazer. É nesta seção, que terá reportagens sobre ‘os negócios da vida’, com mais espaços em branco e cores, que repousam as esperanças do ‘Journal’.

– O objetivo é permitir que as pessoas relaxem com o ‘Wall Street Journal’ – disse Karen Elliott House, editora do diário e vice-presidente sênior da Dow Jones, que controla o ‘Journal’.

A edição de sábado é uma das maiores apostas feitas pelo jornal em seus 116 anos de história. O ‘Journal’ está certo de que isso pode arejar seu conteúdo editorial, conquistar a atenção de seus leitores ricos e atrair mais anunciantes – tudo isso sem canibalizar sua edição dos dias úteis e, mais importante, sem enfraquecer uma das mais definidas e reconhecidas franquias do jornalismo.

Dentro da Dow Jones, muitas pessoas dizem que o jornal não tinha muita escolha. Desde o estouro da bolha das pontocom, em 2000, o ‘Journal’ viu sua receita com publicidade cair nos últimos quatro anos. Só no primeiro trimestre de 2005, os anúncios de financeiras no ‘Journal’ caíram 24%, e os de empresas da área tecnológica, 23%. Com isso, o lucro da Dow Jones caiu 54% no período.

A empresa estima que terá um prejuízo operacional de US$ 12,5 milhões este ano com a edição de sábado, devido a custos de impressão, distribuição e contratação de 150 empregados. Para compensar essa perda, o ‘Journal’ está economizando em outras áreas: as edições européia e asiática adotaram o formato tablóide e o número de correspondentes foi reduzido. Os repórteres do ‘Journal’, por sua vez, temem que as contratações anunciadas não bastem para manter o padrão do ‘Journal’.

E também há uma certa relutância dos anunciantes quanto aos chamados ‘jornais de sábado’.

– Eles vão atuar num teatro vazio – diz Mike Neiss, vice-presidente sênior da agência de publicidade Universal McCann. – Eles podem atrair alguns anunciantes que querem exposição, mas isso será uma experiência de reciclagem.’



FRANÇA

Deborah Berlinck

‘De vendedor de jornal a celebridade’, copyright O Globo, 19/06/05

‘Vendedor de jornal, Ali Akbar, 52 anos, é um desses personagens de Saint-Germain de Près – o bairro de intelectuais, políticos e da classe privilegiada de Paris – que todo mundo conhece. Não passa despercebido. No auge da ameaça terrorista, entrou num restaurante com seu inseparável boné do ‘Le Monde’, uma pilha de exemplares do jornal debaixo do braço, jogou a mão para o alto e gritou:

– Ça y est (Aconteceu)! Bin Laden festeja o Ramadã. Outro dia, ele lançou:

– Ça y est, ça y est ! Aposentadoria aos 35 anos! (Jean-Pierre) Raffarin (ex-primeiro ministro da França) está de acordo!

Metade do restaurante caiu na gargalhada. Uns raros se esforçavam para ver se a manchete do jornal era esta mesmo. A piada do dia correu de bar em bar. E o jornal vendeu como banana na feira. ‘ Ça y est ‘ virou marca registrada de Ali, e tem gente que só o chama assim.

Este paquistanês, que atravessou Afeganistão, China e Grécia para chegar a Paris como miserável, fazendo biscate e dormindo debaixo de pontes, ficou tão famoso que uma editora francesa o procurou para escrever sua história. O resultado está no livro ‘Eu faço o mundo rir…mas o mundo me faz chorar’, publicado recentemente. De repente, os freqüentadores do bairro descobrem, na história de Ali, o relato do doloroso percurso de imigrantes clandestinos na França. Com uma diferença: Ali, ao contrário de muitos, deu certo.

A elite política o cumprimenta pelo nome

Ele é tão famoso no bairro que hoje a elite política da França o cumprimenta pelo nome. Tem artista, como Jane Birkin, que espera ele passar para comprar jornal. O filósofo Bernard-Henri Lévy, quando publicou o livro ‘Quem matou Daniel Pearl’, sobre o jornalista do ‘Wall Street Journal’ degolado por extremistas islâmicos no Paquistão, procurou Ali para conversar e lhe ofereceu um exemplar. Outro dia Ali foi chamado pelo nome por um senhor que queria comprar seu livro: era o ex-presidente francês Giscard d’Estaign. Ele ri ao contar que na hora de fazer a dedicatória, perguntou:

– Qual seu nome?

A celebridade não o impressiona.

– Não tenho complexos. Somos todos iguais. Todos temos um cérebro e somos capazes de fazer coisas maravilhosas. Basta saber como utilizá-lo. Só quero viver naturalmente. Não sonho em fazer parte do jet-set. Ser rico, fazendo mal aos outros, não quero – afirma Ali, que tem uma lista de 30 pessoas, ricas, que levaram seu livro, prometendo pagar depois, e até agora não pagaram.

Ali atribui sua sobrevivência como imigrante à força da mente: humor para agüentar os golpes, generosidade e a crença de que se insistir, ‘Deus recompensará’. Ele lamenta que muitas pessoas que encontra na rua sejam ‘egoístas e materialistas’, e esta é sua explicação para a infelicidade de muitos no mundo: falta de valores.

A história de Ali é trágica. Começou a trabalhar aos 6 anos de idade, foi molestado sexualmente por um conhecido da família, maltratado e explorado pelos irmãos e apanhava do pai.

Aos 18 anos deixou a família e começou um périplo de quatro anos por vários países até chegar à França. No inverno de 1974, cruzou no Boulevard Saint-Michel, em Paris, com a pessoa que ia mudar sua vida: o homem que lhe ofereceu trabalho como vendedor do jornal satírico ‘Charlie Hebdo’. Teve seu primeiro choque com o universo ocidental. Tinha que vender um jornal cuja capa, naquele dia, tinha um enorme pênis de óculos. O título: ‘Deus existe, mas eu enfio no Papa’. Só descobriu o significado depois, pois não falava francês.

Ali se queixa de falta de solidariedade entre muçulmanos, a começar por sua família.

– Sofri muito. Suportei todo tipo de violência. Não há um entre os meus oito irmãos com quem me relacione. Trabalho desde os 6 anos e nunca tive folga em fim de semana. Quando cheguei à França, comia por 2 francos e 20 centavos (30 centavos de euro atualmente). Economizava centavos para enviar dinheiro para minha mãe, comendo o resto que os estudantes deixavam no prato – conta.

Por conta do livro, Ali apareceu em emissoras de TV da França e deu entrevista a jornais. Depois de anos de trabalho no país, comprou uma casa para a mãe no Paquistão. Mas sua maior felicidade é ter conquistado a admiração de seus cinco filhos franceses, que tinham ‘um pouco de vergonha’ de vê-lo vendendo jornal aos gritos.

Agora Ali planeja escrever um segundo livro e abrir uma loja de artigos paquistaneses. Sentado no mesmo bar de estudantes que o alimentou em sua chegada a Paris, ele diz:

– Sinto que minha vida vai mudar.’