Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Diploma, o outro lado

 

Fico abismada com o interesse que o tema do diploma desperta nas pessoas e isso francamente cheira mal. Como dizia Cláudio Abramo, que por sinal não tinha diploma porque vinha de outra geração, vemos tanta gente ”contra” que dá para desconfiar.

Jornalista há 40 anos sem pausa nem refresco, sempre me surpreendi com o fascínio que a profissão despertava. É glamouroso estar na mídia, viajar e fazer coberturas especiais em países estranhos, entrevistar artistas, escritores e mitos, dar opinião assinada, ficar em foco.

Um espanto para quem está no batente da profissão. Sem fim de semana, feriado, folga garantida nem horário definido, sem programação fixa que pode se alterar de minuto a minuto, sem saber se o texto vai entrar inteiro ou ser cortado no pé, se o jornal da TV vai deixar de fora justo a melhor resposta porque o entrevistado estava mal sintonizado. Sentindo-se sempre aquém do que poderia fazer para informar e usar a capacidade de transformar o dia a dia – e quem sabe o mundo –, o jornalista acaba o dia exaurido, ocupando o topo dos índices de profissionais fadados a infarto e pressão descontrolada. Sem vida familiar própria.

Ainda por cima, ganhando mal. E depois dos 30, sendo trocado por profissionais de 15.

Mas a cobiça pelo destaque do nome, pela projeção na mídia que pode garantir sucesso do lado de fora e quem sabe um prestígio remunerado em outras áreas, pelo prazer de criticar um desafeto e alisar um cupincha por interesse ou não, isso se faz até de graça. Se você não é um jornalista de raiz.

Vida dura

Não acho que os cursos de Comunicação ou Jornalismo sejam os melhores do Brasil, como não acho que cursos de muitas áreas sejam melhores. Mas não vejo muita gente fazendo campanha para tirar o diploma de engenheiros cuja qualificação anda tão escassa que são os estrangeiros que estão ocupando as muitas vagas e suprindo a carência de profissionais qualificados. Aliás, em várias áreas.

Dá vontade de rir quando se justifica o fim do diploma de Jornalismo com bons profissionais que nunca tiveram diploma. Todos de uma época em que o Brasil engatinhava no terreno universitário, mas oferecia cursos secundários de tanta qualidade que equivaliam ao universitário. 

Quem se aflige pelo fim do diploma em prol da “liberdade de expressão” não entendeu nada da profissão. Alguém precisa explicar que liberdade de imprensa não tem nada a ver com isso. E que o espaço para a opinião estará sempre preservado, até na Constituição.

Em uma palavra, Gay Talese definiu o jornalista: believable, confiável. E é na faculdade que se assimila as ferramentas específicas de uma profissão. Na faculdade de Jornalismo, ser confiável é a ferramenta principal. Permanente, tinhoso, fuçador, incansável, com rasgos policialescos e destemido pudor em desmitificar ou redesenhar o entrevistado. Respeitando o off. Como eu aprendi, um profissional por trás – atenção, por trás e não a celebridade, à frente – da notícia, um ser invisível informando as pessoas. Um operário. Sem interesse qualquer que não seja naquilo mesmo em que se formou: Jornalismo.

Culpar a ditadura pelo diploma? Nenhum outro diploma foi reabilitado durante nossa longa ditadura, uma briga que vinha de longe, dos anos 1930?

Acalmem-se aqueles que não querem perder o gostinho da fama, de aparecer, de se inserir, de dar seu recado. Esse espaço está garantido. São os profissionais do jornalismo que vão fazer o trabalhinho pesado, aquele em que você acaba o dia desmontado e ainda, apesar da internet, com medo do furo do colega que poderá fazer perguntas melhores e focar a questão no ponto. São eles que vão tremer na base diante da nova tarefa em área desconhecida e terminar em estado de trapo sem saber se acertaram – sempre devedores, sempre faltando fazer, sempre cobrados. Ou quando terminam gigantes reis da bola, vem o dia seguinte: ou a matéria não entrou ou o concorrente lavou o assunto. 

Cultura nunca é demais em nenhuma área, mas para o jornalista é fundamental. Isso para quem se diz um especialista em coisa nenhuma com 5 centímetros de aprofundamento em cada área. Mas é um atributo e um treino exercitado na faculdade saber saltar que nem malabarista – e cair de pé –, de Fórmula 1 para Literatura e de Ecologia para Economia. Ou reduzir 300 linhas para 30 sem perder o essencial. Ou achar o lide escondido no meio da papelada ou da falação. E que sufoco garimpar assunto fresco e comovente quando a área é sempre a mesma e as fontes parece muy amigas, mas plantam notinhas. E agora? Preencher com o quê? A coluna está fechando… 

Não vale a pena intelectualizar. Faço uma aposta para ver se os políticos, magistrados, cineastas, arquitetos, economistas que se digladiam para acabar com a profissão ocupariam esse lugar.

Só paixão pela profissão pela qual optaram e que vai tomar mais de 50% da sua vida, digamos 80% ou 95%. 

Na real

Ao obter o diploma, o jornalista é ensinado a não escrever ou trabalhar em cima do release, contrabando que só a ética repele. E se a universidade não ensina isso, vamos melhorar o ensino, e não cortar o dedo porque está inflamado.

Há uma crença de que ser jornalista é saber escrever direitinho. Até os médicos deveriam saber escrever direitinho, o que não acontece. Nas últimas semanas o debate sobre a guerra dos canudos rendeu pelo menos dez opiniões que me surpreendem. Os princípios do jornalismo seriam: 

1. Saber ler – o que todo brasileiro deveria saber.

2. Saber ouvir – o que é de boa educação, mas uma prática tão rara que as pessoas preferem lotar os consultórios dos psicanalistas.

3. Saber ver – uma qualidade que vale para todo mundo, mas tão falha… denunciada até por José Saramago. 

4. Saber contar – o que determina um bom contista, um bom advogado, um bom médico, um bom historiador, para citar alguns.

Por que só o jornalista? José Hamilton Ribeiro, 57 anos de profissão e repórter (graças a Deus, ainda repórter) do Globo Rural, se expressou dessa forma ao defender o diploma na Folha de S.Paulo de sábado (1/9): “Num país assim, tão atrasado e carente, ser contra a escola de Jornalismo, qualquer escola, é cinismo ou má intenção”.

Tem sentido, sim, obrigar o jornalista a ter diploma de graduação em Jornalismo, contabilizando 16 anos de estudo no mínimo e sendo treinado em tudo aquilo que vem por trás das seis perguntas básicas, “que, quem, como, onde, quando, por que”.

E prejudica, sim, não cursar faculdade de Jornalismo para exercer a profissão. Digo a profissão, não o glamour da profissão.

Realmente o curso de mestrado em Jornalismo da Universidade Columbia em Nova York, no top das melhores do mundo, não exige diploma de Jornalismo para seus alunos. Mas vou dizer, como José Hamilton, que é cinismo querer comparar Columbia ou os profissionais por ela formados com os nossos universitários ou estudantes do ciclo médio ou básico.

Tenho a certeza de que fiz um relato rasteiro, de bastidores, sem citar filósofos ou intelectuais franceses, sem nomear, com exceção de Cláudio Abramo, grandes jornalistas brasileiros que nunca tiveram diploma de Jornalismo. Foi de propósito, para o debate cair na real, no concreto da nossa profissão, direto e sem nos deixar desconfiados, vislumbrando interesses ocultos.

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[Norma Couri é jornalista]