Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Vamos directos ao caso desta semana. No dia 19 passado, o ‘Jornal de Notícias’ trazia, ao alto da primeira página, uma chamada para matéria relacionada com o município de Valongo, que anunciava ‘Parque com 23 hectares para dar nova vida ao rio Leça’. Remetia o assunto para a página 29, toda ela ocupada com a apresentação de um projecto arquitectónico com estudo preliminar já concluído e com um cálculo de investimento situado que ronda os 1,5 milhões de euros. Zona para percursos pedonais e de bicicleta, praia fluvial, núcleo museológico, áreas arborizadas – tudo música celestial para quem, como a população de Ermesinde, se habituou a ter um rio praticamente morto a passar-lhe à porta. A página tinha, ao cimo, um mapa-infográfico com a zona de implantação no novo parque representada a cores. O título, a toda a largura, reforçava a ideia da chamada na primeira.

Só que a gente começava a ler e verificava que, afinal, se tratava de uma promessa feita na véspera, e no próprio local, por uma das candidaturas à Câmara de Valongo, nas próximas eleições autárquicas.

O leitor Abílio José da Cunha, de Ermesinde, viu, leu e não gostou. E escreveu, no dia seguinte, uma mensagem ao provedor, em que explicava o seu ponto de vista

‘Pela forma inusitada de chamada à primeira página, induzindo, nos leitores, tratar-se de um projecto concretizado e não de uma promessa eleitoral e pelo cuidado gráfico utilizado, com recurso a fotografias a cores, parece traduzir, neste período de pré-campanha (não oficial), um tratamento jornalístico daquela candidatura, senão privilegiado, pelo menos pouco rigoroso quanto à igualdade relativa a todas as outras candidaturas, facto susceptível de ferir o determinado pela Lei, nomeadamente o DL 85-D/75 de 26 de Fevereiro’.

Nesta sequência, o leitor apela para que o JN, ‘evitando o recurso a artifícios gráficos ou jornalísticos, procure desenvolver o seu meritório trabalho de informação com respeito pelo rigor, isenção e igualdade de tratamento das candidaturas autárquicas’.

Como se pode verificar, há duas questões distintas na chamada de atenção de Abílio José da Cunha a não referência ao facto de se tratar de uma promessa eleitoral; e o destaque conferido pelo jornal ao assunto.

O coordenador da secção do Grande Porto, que editou a peça, pronunciou-se sobre os dois aspectos. Reconhece que ‘o comentário do leitor é, sem dúvida, pertinente, sobretudo no que se refere ao facto de, pela forma como foi apresentado, o trabalho jornalístico poder induzir erradamente os leitores de que estamos perante uma ideia `concretizável´ e não, como é o caso, de uma iniciativa partidária que só vingará se o partido que a apresentou vencer as eleições. Devia, de facto, ter havido um maior cuidado em assinalar que se tratava de uma iniciativa partidária (sobretudo no título), embora essa referência conste do texto’.

Sobre o destaque dado ao assunto, o coordenador afirma que ‘a decisão foi editorial e, por isso, tomada conscientemente’. Entendeu que o projecto de despoluição do rio Leça (curso de água que atravessa mais do que um concelho) ‘constitui uma proposta interessante e, como tal, potenciadora de uma discussão sobre aquele valioso recurso natural’.

‘Os assuntos valem pelo seu conteúdo’, acrescenta o jornalista, ‘embora seja certo que em fase de pré-campanha eleitoral todas as decisões editoriais devam ser medidas em função desse contexto’. E faz notar que a secção que coordena ‘já deu, recentemente, igual ou semelhante destaque a projectos de outros partidos, com base no mesmo critério jornalístico’.

Dois breves comentários sobre este caso. O primeiro para dizer que o assunto (da despoluição e do aproveitamento paisagístico) é importante e todas as ideias e iniciativas para alterar a situação merecem ser destacadas. Venham de onde vierem. Ao jornal cabe avaliar e decidir, com equilíbrio e bom senso, o tratamento mais adequado. Mas ao dissimular a iniciativa partidária e criar a ideia de uma decisão tomada e não de uma promessa anunciada, comprometeu, em boa medida, a bondade que podia ter havido na tal decisão editorial. Não foi apenas uma questão de títulos, foi o ‘empacotamento’ que se fez do assunto. Não se dizendo claramente o que estava dentro do embrulho’, ampliou-se o risco de ludibriar os leitores. Ou seja, de lhe dar gato por lebre (sem desconsideração pela iniciativa partidária, que não está aqui em análise). Afinal, os tais dois aspectos distintos estão mais ligados do que pode à primeira vista parecer. Daí ser de sublinhar o agradecimento que merece o leitor de Ermesinde pela chamada de atenção que fez e o reconhecimento por parte do coordenador do Grande Porto de que o leitor tem, no essencial, razão.

PS – O ‘arrastão’ e os média o dito e o não-dito

O principal título de primeira página do JN de 20 de Julho (‘Arrastão na praia nunca aconteceu’) constitui a expressão de um caso muito raro no jornalismo notícia um não-acontecimento.

Como o leitor certamente se recordará, em causa estava o que se passou na praia de Carcavelos, no feriado de 10 de Junho, que a generalidade dos média noticiaram, baseados em fontes policiais, como um ‘arrastão’ de proporções gigantescas, visto que teria envolvido algumas centenas de adolescentes actuando de forma concertada. Também este jornal, na edição de 11 de Junho, colocava em título de capa ‘Arrastão: pânico na praia de Carcavelos’. Essa matéria foi tema da coluna do provedor no passado dia 10.

A investigação entretanto realizada levou a PSP a concluir que os jovens que se viam nas fotografias pretensamente ilustrativas do dito ‘arrastão’ estavam, afinal, a fugir das próprias forças policiais e que os poucos furtos então ocorridos bem como ‘incivilidades generalizadas’ não terão sido previamente organizados. Daí, pois, a manchete do JN ‘Arrastão a praia nunca aconteceu’.

O JN fez bem em dar destaque a esta recolocação dos factos no seu devido lugar, prática que, infelizmente, não foi seguida particularmente pelas televisões, que empolaram ao máximo o ‘arrastão’.

Este caso deveria levar os média a reconhecer que, em geral, actuaram de forma precipitada e não cuidaram de verificar uma informação tão delicada e mesmo incendiária. Em matérias como esta, a comunicação social não se pode colocar num papel de mera caixa de ressonância daquilo que quem tem ou toma a palavra lhe faz chegar. A complexidade deste tipo de fenómenos e os interesses neles envolvidos tornam ainda mais necessário aquilo que é básico no jornalismo a prudência, a verificação e a contrastação.

No caso presente, há ainda um outro aspecto que fica em suspenso assim como a construção deste pseudo-acontecimento foi manifestamente empolada e exagerada, também fica a dúvida se o apurado pela investigação policial não esvazia excessivamente a questão em jogo. Afinal, parece que não houve nada, não se passou nem passa nada. Será?

Uma boa causa não pode justificar todos os processos’