Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alberto Dines

‘Imaginando-se Getúlio Vargas, o presidente Lula levou sua retórica ao Nordeste. O resultado foi ainda pior do que os habituais ditirambos planaltinos. Empenhado em desviar as atenções do campeonato de denúncias que galvaniza o país, Sua Excelência não se importa com o que diz, desde que as repercussões levem o debate para longe do mar de lama que teima em infiltrar-se pelas frestas.

Lembrar o trágico Pai dos Pobres neste início do mês de desgostos é um recurso pobre. Pobre e inconveniente. A expressão ‘Mar de Lama’ surgiu na imprensa quando começaram as investigações do Inquérito Policial-Militar (IPM) instalado após o assassinato do major Rubem Vaz. Comparadas à dinheirama que até recentemente irrigava o partido do governo e a base aliada, as trapaças da Guarda Pessoal de Vargas são microscópicas.

Mas a que Getúlio refere-se Lula – o ditador pré-fascista do Estado Novo ou o Getúlio que passou o seu mandato como presidente eleito na corda bamba dos escândalos ? Como a agenda do périplo nordestino previa a inauguração de uma usina de beneficiamento de mamona no Piauí, Lula preferiu agarrar-se ao Getúlio ‘achincalhado pela imprensa que não se cansou de fazer editoriais contra a criação da Petrobrás’.

Besteirol histórico, provocação inútil. Nosso atual Gegê não leu a fabulosa campanha publicitária da sua própria Petrobrás no cinqüentenário da sua fundação baseada nos jornais de 1953 que saudaram a criação do monopólio do petróleo. Getúlio Vargas, apesar da áurea de populismo com que a posteridade o envolveu, foi estadista cuidadoso. Sua formação positivista recusava as bravatas empíricas, preferia os especialistas e, obviamente, as soluções técnicas.

A tal ‘revolução da mamona’ a que o presidente Lula se referiu, foi-lhe soprada por um amigo e como confessou num acesso de franqueza, pensou com seus botões ‘se é revolução é comigo mesmo’. Se Getúlio é o seu guru, o presidente Lula deveria convocar o ministro Roberto Rodrigues para brifá-lo sobre as melhores alternativas para o bio-diesel.

O ministro é agrônomo, conhece o assunto e, além disso, sabe fazer contas. A popularíssima mamona é anti-econômica para a produção em larga escala de óleo combustível. Para torná-la viável o governo teria que gastar uma fábula de dinheiro.

Existem alternativas mais interessantes mas como a soja foi diabolizada pelos tais ‘movimentos sociais’ que, como o presidente Lula, abominam a aritmética, seria lógico dar prioridade ao óleo de dendê (ou de palma), muito mais rentável e, por isso, mais compatível com o projeto de agricultura familiar. A ‘revolução do dendê’ além de atender à natureza do ex-líder sindical teria a vantagem de valorizar nossa culinária.

A grande verdade é que o governo está desnorteado e para disfarçar o descontrole improvisa soluções que só o agravam. Improvisação maior relaciona-se com o próprio presidente: neste momento, ele não é solução, é o problema. Precisa ser poupado. Nos manuais de governabilidade não existe nenhuma cláusula que obriga o Chefe da Nação a vestir uniforme de bombeiro, a não ser que tenha passado por treinamento especializado. Não é o caso.

Cada vez que Jacques Wagner, o ministro da Coordenação Política, é convocado para apagar um incêndio, o faz com perícia e tranqüilidade. Cada vez que Lula entra em cena, parece macaquinho em loja de louça. O tipo de emoção que involuntariamente injeta no ambiente torna tudo muito mais tenso. E o que o país precisa neste momento é uma baixa de voltagem.

Quando a crise chamava-se PT, circunscrevia-se à esfera partidária mas a crise evoluiu, dobrou, agora chama-se PT + PT (sigla da Portugal Telecom). Envolve o governo, envolve sobretudo a maldita e conspurcada área da telefonia com suas pegajosas ramificações nos fundos de pensão.

A Agenda Mínima proposta pelo empresários não pode ser tocada com destempero. O óleo que falta ao governo não é o óleo-combustível, é o óleo lubrificante. Aquele que desemperra as gavetas, aciona comandos e dá fluência às providências.

O óleo da mamona (ricinus communis), é o famoso óleo de rícino, o tradicional e infalível purgante da nossa farmacologia familiar. Além das excelsas virtudes laxativas, acalma os enfezados.’



Laura Greenhalgh e Fred Melo Paiva

‘Samba, futebol feijoada, caipirinha. E corrupção’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/08/05

‘Quatro correspondentes que vivem no Brasil se esforçam na tradução da intricada crise brasileira. Suas experiências são o retrado da República que teima em escorregar na banana

Juan Arias, 73 anos, jornalista e escritor, trabalha para o El País desde a fundação do jornal, em 1976. Foi por 14 anos correspondente na Itália, época em que também fez a cobertura do Vaticano. ‘Viajei com papas’, diz assim, modestamente, no plural. Depois assumiu o suplemento de cultura do diário e em seguida foi ombudsman. Há sete anos vive no Brasil, como correspondente desse que é o maior jornal espanhol e um dos mais importantes da Europa. Chegou ao Rio de Janeiro às vésperas da desvalorização do real, no segundo mandato de Fernando Henrique. Ganhou a cobertura da crise cambial como boas-vindas. Hoje se esfalfa na ‘crise do mensalão’. Tem tido muito trabalho. Como traduzir para o seu público as artimanhas do deputado Roberto Jefferson? Como explicar as traficâncias sem limites entre políticos de vários partidos e um publicitário? O que dizer sobre os recentes arroubos de oratória do presidente Lula? Impossível para Arias deixar de comparar a crise atual com o desmanche político provocado na Itália pela Operação Mãos Limpas, que ele viu de perto, como correspondente estrangeiro.

Você já acompanhou duas crises no Brasil – a cambial, em 1998, e a do ‘mensalão’. Há diferenças fundamentais entre os dois momentos?

Sim. Quando Lula ganhou, criou-se uma expectativa mundial. Sua vitória nos fez lembrar da ascensão de Felipe González, pelo PSOE, em 1982. O partido socialista mudou a cara da Espanha em 14 anos, ainda que ao término desse período o PSOE tenha se afundado em corrupção. Os espanhóis imaginaram que, com Lula, iria se dar a sonhada transformação social do Brasil com desenvolvimento econômico. Que o governo iria colocar no mercado de consumo esses 40 milhões de brasileiros que vivem à margem – enfim, era uma esperança. Meu país apostava no Brasil e, ao longo do primeiro ano do governo, tornou-se o segundo investidor estrangeiro no País. Em resumo, a vitória de Lula nos fez pensar que o Brasil poderia ser o laboratório da quarta via.

O que significa a ‘quarta via’?

Seria um caminho intermediário entre a via marxista clássica e a via socialdemocrata, com ênfase para experiências já testadas pelo PT, como a implantação do orçamento participativo. Esse caminho político deveria se abrir à participação da sociedade civil, dentro dos marcos do capitalismo. E a experiência poderia ser expandida para outros países latino-americanos.

Por que acharam que isso seria possível?

Porque o presidente eleito tinha o respaldo de um partido organizado, o PT. Um partido com base social, capital intelectual, um time de economistas e forte presença nas universidades. Assim surgiu a confiança de que Lula não iria provocar um crack econômico, mas, ao contrário, iria propor mudanças seguras para todos os estratos da sociedade. Lula encarnou a possibilidade de êxito de uma esquerda com os pés no chão.

E quando você começou a duvidar desse projeto?

Quando me dei conta de que a experiência começava a fracassar, depois de quase um ano de governo, propus uma série de artigos ao El País. Meus editores não acreditavam que o projeto fosse desandar e me perguntavam: ‘Você quer dizer que estávamos enganados?!’. O primeiro artigo crítico que escrevi chamava-se ‘As dez goteiras do governo Lula’. Analisava projetos sociais emperrados, entre eles o da reforma agrária, o da reforma educacional e o Fome Zero.

Qual foi a repercussão?

A pior veio do governo. Uma noite fui chamado em minha casa, por telefone, por um assessor do Planalto. Ele me fez críticas, pediu-me explicações, quis saber quais eram minhas fontes, disse que eu deveria tê-los chamado antes de ouvir outras pessoas. Respondi educadamente que não iria revelar minhas fontes, pois jornalistas não fazem isso. Mas senti um certo autoritarismo.

Houve outros episódios desse tipo?

Não. Pois bem, depois das goteiras, veio o Delúbio… Mas o Brasil é maior que a crise. É um país que tem humanidade, criatividade, mescla de raças, enfim, tenho admiração pelo povo. Também confio na democracia. Não há dúvida de que as instituições do País estão maduras.

Como você tem traduzido a crise para os espanhóis?

Com informação, dia após dia. O interesse é enorme. Uma vez o governo Lula disse que asseguraria direitos de propriedade aos favelados. Reportei isso ao El País. Foi considerado assunto tão relevante que deram uma chamada imensa na primeira página. Economistas de renome se manifestaram em artigos. Depois de seis meses, meus editores me pediram uma reportagem que mostrasse como o projeto do governo estava avançando. E eu lhes disse que seria impossível. Que o projeto nem começara a funcionar.

E os editores?

Ficaram perplexos. Também acompanhamos a escolha de Cristovam Buarque para o Ministério da Educação. Repercutiu como um sinal de que a educação seria ‘a’ prioridade do governo Lula. Como aconteceu na Espanha, Irlanda ou Coréia. Esses países colocaram a educação como centro de tudo e através dela aplicaram políticas redistributivas. Cristovam caiu, e educação não é ‘a’ prioridade.

Você era correspondente na Itália quando se deu a Operação Mãos Limpas. Uma operação desse tipo será inevitável no Brasil?

Vi a classe política italiana ruir. A democracia-cristã acabou com a Operação Mãos Limpas. O Partido Socialista, que chegava pela primeira vez ao poder com Bettino Craxi, em coalizão com os democratas-cristãos, também foi à derrocada. Por quê? Por corrupção. Naquele momento, a oposição estava com o Partido Comunista Italiano, mas não foram os comunistas que derrubaram a coalizão, e sim um juiz de direita. Também no Brasil não foi a oposição que denunciou a corrupção, mas políticos conservadores ligados ao governo.

E qual foi o saldo da experiência italiana?

Depois da limpeza ética na Itália, o que veio? Silvio Berlusconi! Meu receio é que o Brasil passe por um processo parecido. Que ao final de tudo venha gente pior. Sempre há margem para soluções menos democráticas, mais populistas…

Como você tem explicado que o PT, que fez da ética sua bandeira, atolou-se em escândalos?

A corrupção corrói o poder. Isso está acontecendo com o PT, como aconteceu com os socialistas italianos. Quem imaginaria Bettino Craxi no exílio, fugindo dos juízes, acusado até de corrupção pessoal? Partidos éticos se pervertem ao adotar a máxima maquiavélica: os fins justificam os meios. A esquerda se julga melhor que a direita e acha que pode fazer tudo em nome da ‘causa nobre’.

Qual é o impacto das notícias que saem do Brasil na Espanha governada pelo socialista Zapatero?

Zapatero esteve no Fórum Social, em Porto Alegre, aproximou-se de Lula na agenda do combate à fome e no interesse de ajudar a Venezuela. Para o governo espanhol, o que acontece não surpreende, pois sabe-se que políticos se corrompem. Mas, na opinião pública, a surpresa é grande. Tenho publicado um artigo por dia e meus leitores reagem pela internet. Dizem ‘que pena’ ou perguntam ‘até o Brasil?!’. Porque este país está na moda muito em função da imagem externa de Lula. O presidente até ganhou o prêmio Príncipe das Astúrias, uma das maiores honrarias do meu país.

Você nunca conseguiu entrevistar o presidente Lula?

Nunca. Participei da única coletiva que ele deu aos correspondentes estrangeiros. E só. Quando estava em Roma, escrevi artigos duríssimos contra Giulio Andreotti, líder da democracia-cristã. E recebi uma carta de próprio punho de Andreotti, agradecendo meu interesse pelos assuntos da Itália.Também escrevi textos duros em relação a Fernando Henrique. Não só não tive reclamações como sua chefe-de-gabinete me procurou para agendar uma entrevista com ele.

Como foi explicar que um assessor do PT foi pego com US$ 100 mil na cueca?

Em meu jornal não se pode escrever cueca. Tive de falar em ‘roupa interior’, mais formal. Sabe como eu deveria escrever ‘bunda’ para o leitor do El País? Ali, donde la espalda pierde su honesto nombre… (risos). Esta é a coisa maravilhosa do Brasil: sua espontaneidade sensual, absolutamente encantadora.

Mac Margolis, jornalista da Newsweek, considera-se correspondente especial não apenas porque é assim que está descrita a sua função no expediente da revista americana. Mas também porque tem 23 anos de Brasil, uma longevidade incomum para repórteres que em geral trabalham em esquema de rodízio mundo afora. Aos 50 anos, adotou o Rio como sua casa, virou ‘flamenguista sofredor’ e considera ‘uma lacuna’ o fato de não ter escolhido ainda sua escola de samba. Formado em Estudos Interculturais – programa que reúne História, Literatura, Sociologia, Religião -, foi também colaborador dos jornais Washington Post e Los Angeles Times, e da revista inglesa The Economist.

A crise política é um tema acachapante, que praticamente monopoliza o noticiário no Brasil, como se tudo o mais no País estivesse parado. Isso é um exagero da nossa parte?

Não. Aqui, uma crise política ainda pode ser paralisante. Talvez porque o retorno à democracia tenha apenas 20 anos, talvez porque seja um mercado emergente e ainda dependente da benesse do estrangeiro. Nesse contexto, uma crise sacode mesmo. É quase um clichê a América Latina comparar-se à Itália, no sentido de que ‘um dia chegaremos lá’ – cai o governo, mas a Itália continua. O Brasil, na minha opinião, está chegando lá. Foi o que tentei dizer na última reportagem que escrevi: apesar da crise, o Brasil continua. Tem alguns alicerces e instituições democráticas já muito sólidas. O escândalo está cada dia mais restrito ao reino político, e o bom andamento da economia sugere isso. É um outro Brasil a que estamos assistindo. Não foi assim no escândalo Collor, quando todo mundo estava preocupado com a fragilidade do processo democrático. Agora ninguém pensa na volta dos militares nem imagina uma guinada radical – mesmo que o presidente tenha mostrado recentemente uma queda para o lado populista, mergulhando no povão ao estilo Hugo Chávez. Aliás, isso me parece mais teatro do que uma opção real. Se ele quisesse ser isso de verdade, a reação do mercado seria instantânea e acabaria por corrigi-lo.

Aos olhos do estrangeiro, a crise é brava?

As perguntas-chave são duas: Lula está envolvido? Se está envolvido, isso altera o rumo que o Brasil tem tomado?

O escândalo atual é um resquício da República das Bananas?

Há dois Brasis que se colidem. Com certeza temos alguns comportamentos individuais que remetem à República das Bananas. Mas por outro lado existem instituições maduras que freiam isso. É um pouco espantoso que, a essa altura da história do Brasil, seja possível as pessoas circularem com malas de dinheiro em espécie e que um escândalo se dê assim. Isso acontece, porém, em um país que tem um dos sistemas bancários mais sofisticados do mundo em desenvolvimento – e com instrumentos igualmente sofisticados para flagrar tudo isso. O Brasil tem Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras); tem uma Receita Federal equipada para monitorar até movimentos miúdos de dinheiro; todo mundo tem seu CPF digitalizado e pronto para o cruzamento de informações. A pergunta é: como o esquema de corrupção pôde passar despercebido até que – bem ao estilo República das Bananas, bem ao estilo da Máfia – algum envolvido decidisse falar?

Você passa horas acompanhando os depoimentos da CPI?

Ah, sim. É o primeiro escândalo brasileiro tipo 24 por 7…

24 por 7?

É uma expressão que se usou muito para a Guerra do Iraque – 24 horas por dia, 7 dias por semana. A notícia instantânea, em tempo real.

O espetáculo o impressiona? Tem um modelo americano nisso…

O teatro é um pouco o do tribunal americano, de O.J. Simpson a Michael Jackson. Vale a pena frisar o detalhe da sala da CPI, muito diferente do modelo dos Estados Unidos, onde há uma arquitetura hierárquica em que inquisidores ficam em cima e inquiridos embaixo. Aqui é o contrário. Fiquei impressionado com o primeiro depoimento de Roberto Jefferson. Não só ele se sentava ao lado do relator como a certa altura colocou o braço no ombro dele, demonstrando uma coisa meio de clube, todo mundo entre amigos…

Como se desenrolaria um escândalo desses nos Estados Unidos?

A diferença é que lá já haveria alguém com contrato trilionário para escrever um livro. E já teriam saído livros instantâneos escritos por ghost writers – A Vida de Roberto Jefferson. Agora falando sério: nos Estados Unidos, as pessoas envolvidas não seriam tão cínicas. No Brasil, há uma palavra sempre presente nas minhas conversas e entrevistas: impunidade. Como o País se sofistica em todos os sentidos e ao mesmo tempo há tamanha corrupção? Impunidade. Esse seria o diferencial entre uma crise dessas nos dois países. Aqui há sempre o risco de tudo acabar em pizza.

Nos Estados Unidos existe alguma expressão similar a ‘acabar em pizza’?

Não… Não conheço…

O escândalo afeta a imagem de Lula no exterior?

É impressionante a boa vontade que têm para com Lula. Ele realmente virou uma celebridade internacional.

Será o Primeiro Mundo expiando sua culpa ao bater palmas para o pobre metalúrgico?

Pode ter menos a ver com Lula do que com o símbolo Lula. Porque ele virou mesmo o símbolo de um mundo que busca o antídoto político ao que Bush representa – mesmo que o próprio Lula não necessariamente se adapte muito a isso, ele preenche uma lacuna do imaginário estrangeiro. Penso um pouco em Lula como uma versão política de Paulo Coelho. É adorado. Transita com muita facilidade lá fora. Fernando Henrique também foi assim, mas Lula é impressionante.

Quando você noticia a corrupção brasileira para os Estados Unidos, isso atrapalha a imagem do País?

Gostaria de achar que não atrapalha, que as investigações também são parte de um Brasil diferente de uma República das Bananas. Além disso, as pessoas que realmente são donas do poder têm mil maneiras de se informar, e a imprensa é apenas uma delas. Nosso poder de criar imagem é muito menor do que se imagina. O Brasil tem um pouco de obsessão com isso. Quando se vê um elogio ao Brasil no New York Times é a glória. Quando se vê uma crítica é a tragédia. Não deveria ser nem um nem outro.

‘A jornalista Eleonora Gosman, argentina nascida em Buenos Aires, tem 25 anos de Clarín e dez atuando como correspondente no Brasil. Sua transferência para São Paulo tem a ver com a eficiente cobertura que tem feito do Mercosul, com todos os altos e baixos desse projeto de integração. Foi por esse mérito que desembarcou no Brasil em 1995, pouco depois de Fernando Henrique ter assumido seu primeiro mandato presidencial. Na semana passada, em um dos artigos que assinou, a correspondente comparou a rejeição social que perseguiu Evita Perón – e contribuiu para transformá-la em heroína dos ‘descamisados’ – à que hoje percebe em relação a Lula. O artigo, muito comentado nos dois países, é fruto de suas primeiras convicções face a uma crise com mil e um implicados. ‘Se nem os colegas brasileiros estão entendendo essa confusão toda, como posso me lançar em julgamentos?’, disse em entrevista ao Aliás. Embora mais ligada à cobertura econômica, Eleonora tem pensado muito no quanto os políticos se descuidam ao mergulhar de cabeça no poço viscoso da corrupção. ‘Eles não sabem que, ao final de tudo, as crises caem sobre a própria cabeça.’ Que o diga a sociedade argentina, que até hoje não perdoou os incautos que levaram o país à bancarrota.

Você entende a crise brasileira?

Os fatos atuais têm me feito lembrar da crise cambial de 1998, quando houve uma fuga de capitais imensa do País, um golpe de mercado diante das especulações de que o governo iria desvalorizar o real. Ali, a cobertura que fiz para o Clarín cresceu bastante. Em 1999, com o real já desvalorizado, o interesse pelo que se passava no Brasil era enorme na Argentina. Poderia surtir efeitos negativos em meu país. Agora, a crise é política. Claro que os argentinos estão ligados no que está acontecendo, mas até agora não há risco econômico para a região.

Então, você tem tranqüilizado seus leitores.

Tenho procurado reportar os fatos de uma situação difícil, mas não fora de controle. Pelo menos até agora. Há sinais disso, como a manifestação de apoio ao governo Lula feita por John Snow, Secretário do Tesouro dos EUA, esta semana em Brasília. Snow afirmou que não há crise econômica no Brasil nem razões para provocá-la. Esse recado é importante. O fato de a economia continuar bem por si só delimita a amplitude da crise política.

Mas o volume de denúncias e de recursos envolvidos não é impressionante?

Sim, o tema da corrupção está forte na imprensa. Mas é bom. Em certo sentido, o que estamos vendo é o desnudamento da classe política brasileira. Está se lavando a roupa suja, e isso vai melhorar o País. A questão é se os culpados serão julgados ou se, ao final, escaparão. O Congresso precisa fazer alguma coisa para revigorar sua imagem em relação ao povo brasileiro.

O que você tem feito para traduzir toda a complexidade do momento?

É difícil, mas lembre-se que os argentinos já tiveram de conviver com denúncias parecidas. Já tivemos o ‘mensalão argentino’.

Como foi o mensalão de vocês?

Foi no governo De la Rua, em meados de 2000. Era uma propina que se pagava aos parlamentares para comprar seus votos no Congresso. Isso foi o que provocou a saída do vice-presidente Carlos ‘Chacho’ Alvarez, autor das denúncias. O escândalo volta às manchetes porque os implicados estão sendo julgados neste momento. Esse tipo de esquema não é novo para os argentinos e, por já ter rendido uma crise imensa, deveria servir de referência para os brasileiros. Sempre é bom estudar o que acontece com o vizinho.

Os parlamentares envolvidos foram cassados?

Os parlamentares até poderiam ter perdido o mandato, mas isso não aconteceu naquele momento porque praticamente a instituição inteira estava envolvida. Lembre-se que o governo era resultado de uma coalizão da esquerda com a centro-direita. Assim, o caso prosseguiu na Justiça. O preço maior que De la Rua pagou foi a renúncia de Carlos Alvarez, que liderava a ala de esquerda. Em seguida, veio a crise econômica e acabou de vez com o governo.

Isso pode se repetir no Brasil?

Não posso afirmar isso. Começa que a biografia de Lula é diferente da biografia de De la Rua. Este era um presidente que vinha da centro-direita. Nunca teve o apoio popular que Lula tem. A sustentação de De la Rua precisou do apoio da esquerda peronista, trazida por Carlos Alvarez, e do reconhecimento de ter sido um bom prefeito para Buenos Aires. Não tinha a base popular sobre a qual Lula se sustenta.

Os argentinos têm aquele sentimento de que políticos são todos iguais?

Sim. Na passagem de 2001 para 2002, quando a crise econômica estava aguda, as pessoas repetiam o bordão ‘vão todos embora’ para os políticos. O nível de descrença era muito grande. E ainda não acabou.

Não acabou?

Não. Nem com os logros do governo Kirchner, como a renegociação da dívida argentina. Há uma dualidade muito grande em relação aos parlamentares e aos governantes, um processo de desencantamento com marcas profundas.

Que efeitos a crise terá sobre o relacionamento Brasil-Argentina?

Estamos em ano de campanha eleitoral na Argentina, e isso ocupa boa parte da cobertura de imprensa. Porém, o Brasil mantém seu lugar de destaque no noticiário. As pessoas de lá estão olhando para cá, mas não há a sensação de uma crise sem controle. Para ser sincera, também não creio nisso. Há muita denúncia para pouca prova.

Verdade?

Há inconsistências. No início da semana, o deputado Roberto Jefferson deu a entender que o presidente Lula tinha conexão com o esquema. Hoje está defendendo o presidente. O que é isso? Devemos ter cuidado com o que escrevemos. Tenho procurado me ater aos fatos, já que o quadro é complexo. Mas lá de Buenos Aires me chegam pedidos do tipo ‘diga o que você pensa, dê sua opinião’. Pois se até os jornalistas brasileiros estão confusos, por que eu haveria de me precipitar em julgamentos? Hoje penso uma coisa, amanhã, outra, e assim vou construindo idéias.

Que idéias?

Acho que a crise não vai andar muito mais. Porque são muitas as estruturas de poder envolvidas nela. Essa história de ‘cheiro de orégano’, de mercado que não quer dar o golpe de mercado, de Jefferson que fala uma coisa hoje e outra amanhã, tudo isso tem de ser considerado. A crise vai se arrastar até as eleições do ano que vem.

Os seus leitores entendem o que significa o ‘cheiro de orégano’?

Comemos pizza na Argentina, mas não entendemos o sentido figurado de ‘cheiro de orégano’. Em termos políticos e culturais, não existe essa pizza no meu país.

Tem certeza?

Na Argentina, não existe a possibilidade de você brigar sério com alguém e logo depois sair para jantar ou tomar um cafezinho. Argentinos brigam para valer. Transpondo esse traço cultural para a política, vê-se que a repactuação é algo raro em meu país. Daí a dificuldade de explicar o ‘cheiro de orégano’.

Esta semana você publicou uma matéria no Clarín comparando Lula a Eva Perón.

Não os comparei propriamente. Tratei da rejeição das elites em relação a Lula, algo parecido com o que ocorreu a Eva Perón.

Mas Lula e Evita têm biografias diferentes. Evita nasceu pobre, Lula, miserável.

Sim, mas tanto um como outro ascenderam a um lugar que não lhes pertence. Evita não passou fome, porque isso não poderia acontecer na Argentina de seu tempo. Mas era chamada de prostituta. Era hostilizada pela oligarquia dos fazendeiros. Hoje vejo algo semelhante. Há uma forte rejeição a Lula, é algo de pele. Basta ver como o presidente é mostrado nas charges dos jornais. O fato de não falar inglês é algo que incomoda muita gente, no entanto, Kirchner não fala inglês, Menem tampouco. E não eram cobrados por isso.

Você acha que Lula, como ocorreu com Evita, corre o risco da tentação populista?

Ah, não sei o que Lula poderá fazer. Ele pode ou não se apresentar para a reeleição, por exemplo. Se ele se apresentar, talvez queira se apoiar nas classes populares e tentar fazer delas seu maior eleitorado. Lula é uma figura complexa… Seu governo também é uma mistura de coisas. Mesmo na economia, o governo adota de forma ortodoxa certas políticas liberais, mas, ao dar fortes subsídios a setores da exportação, ele se afasta do liberalismo econômico.

Como tem sido o seu relacionamento com o governo Lula, como correspondente estrangeira?

Difícil. Não há comparação com o relacionamento que tive com o governo anterior. Demorei dois anos para conseguir uma entrevista com o ministro Palocci, dois anos para falar com o ministro Furlan, e isso considerando todos os interesses em comum de Argentina e Brasil.

Mas o presidente Kirchner também não gosta de dar entrevistas?

O que também é ruim.

O escocês Andrew Downie, de 38 anos, trabalha para três das mais importantes publicações do mundo – a revista Time e o jornal The Christian Science Monitor, ambos americanos, e o jornal inglês Daily Telegraph. Downie veio para a América Latina porque queria viajar. Morou primeiro no México, onde se tornou jornalista. Enviado para o Haiti pela agência de notícias Reuters, trabalhou junto com Larry Rohter (o correspondente do New York Times recusou-se a dar entrevista para o Aliás, alegando não querer se manifestar sobre o governo, que tentou expulsá-lo do País). Desde 1999 no Rio de Janeiro, Andrew Downie é um ‘estrangeiro que resiste, tomando chá com leite várias vezes ao dia’. Ao traduzir para o inglês o livro Garrincha – Estrela Solitária, de Ruy Castro, acabou caindo na tentação da brasilidade. Virou Botafogo.

Você tem conseguido entender o quebra-cabeça que compõe a crise brasileira?

Para qualquer pessoa é muito difícil entender tudo. Imagine para quem fala outro idioma. Olha só o nome do escândalo: mensalão! Como traduzo isso para o inglês? Bom, o que fiz foi transmitir ao leitor que o símbolo do escândalo é a mala. Disse que há pessoas sacando dinheiro, mas tanto dinheiro que precisam carregar em malas. É uma imagem que todos podem entender, porque todo mundo já viu uma mala cheia de dinheiro – pelo menos em filme.

Você mencionou também a cueca cheia de dinheiro?

Claro! O meu editor pegou essa parte do texto e colocou lá no alto da matéria, para ficar com mais destaque. O problema é que, sendo americano, ele traduziu cueca como samba-canção. Americano só usa samba-canção, muito mais que cueca… Aí eu expliquei: ‘Não, não, cueca não é samba-canção. Se você bota dinheiro dentro do samba-canção, o dinheiro vai cair…’.

O Primeiro Mundo ainda vê o Brasil como República das Bananas?

Quando sugiro a corrupção como assunto a ser publicado na imprensa internacional, digo o seguinte: ‘Tem um escândalo grande aqui no Brasil, há políticos flagrados em atos de corrupção, uma CPI está investigando os indícios’. O editor não fala para mim, mas fica óbvio o que ele pensa: ‘O que há de novidade nisso? Isso não é notícia’.

Você acha que o País é corrupto – não apenas seus políticos, mas também o seu povo?

Não dá para dizer isso, porque há muitas pessoas aqui lutando contra a corrupção. Mas vejo no Brasil uma coisa que presenciei também no México: as pessoas não enxergam a conexão entre pagar um suborno de R$ 50 ao policial de trânsito e um político roubar. Para mim, são dois atos de corrupção.

O que acha dos nossos políticos?

Há muitas pessoas capacitadas no Brasil. Mas poucas delas entram na política. Há empreendedores de nível tal que pode ser comparado com qualquer outro país do mundo. Nos Estados Unidos e na Europa, entra-se na política para servir ao país. Mas aqui poucas pessoas entram na política com esse objetivo. Não sei quem falou originalmente, mas achei interessante o que disse um político escocês: ‘Qualquer pessoa que queira ser político deveria ser automaticamente proibida de ser político’.

O escândalo afeta a imagem do País no exterior?

Obviamente que sim. Lula e o PT foram tidos como exemplo para a América Latina – representavam uma nova chance para a região. Agora a esperança está acabando. Quem mais acredita no PT como partido limpo?

Você tem ficado muito tempo assistindo à CPI?

Esta semana acompanhei o depoimento do Dirceu contra… Falar ‘contra’ parece partida de futebol, mas… acompanhei José Dirceu contra Roberto Jefferson. Mas não fico o tempo todo na frente da TV. Se ficar, aí é que complica o assunto…

Você acaba de publicar uma matéria no Christian Science Monitor em que compara a CPI ao Big Brother. Pode explicar a sua tese?

Primeiro, a CPI tem cobertura da TV por quase 24 horas ininterruptas, muitas delas ao vivo. Os políticos sabem que estão sendo filmados e fazem o seu show. Basta ver Roberto Jefferson para entender isso. No reality show há pessoas fazendo performances para a câmera diante de um grande público. No final, uma delas vai cair no paredão. É justamente o que vemos: o Brasil inteiro assistindo à CPI, comentando, rindo, ficando espantado. E há pessoas que são eliminadas. De vez em quando um Genoino cai, um outro renuncia, um Delúbio cai.

Como você explicou os personagens deste nosso Big Brother?

Eu não falei de todos os personagens, porque pouco importa isso para os americanos ou ingleses. Falei de Jefferson, que é o pivô da crise. Aliás, vou te falar uma coisa… Não sei quem fala a verdade, não sei quem está mentindo. Estava com um fotógrafo brasileiro em Cuiabá quando Jefferson fez todas as acusações. Perguntei a ele: ‘O que você achou?’. Ele me disse: ‘Está na cara que ele está falando a verdade’. Voltei para o Rio e consultei outro amigo. E ele: ‘Está na cara que ele está mentindo, né!’.

O escândalo tem nos apresentado histórias um tanto ridículas – Roberto Jefferson de olho roxo, Karina Somaggio pelada na Playboy, gente com dinheiro na cueca.. .

Se fosse ficção, ninguém iria acreditar…

Aos olhos dos ingleses, por exemplo, o que isso parece?

Estou há 15 anos na América Latina, então, para mim, não é grande surpresa. Mas tenho certeza de que, para um britânico, é cômico. Não dá para inventar essas coisas! Se fosse ficção, seria ficção de quinta categoria.

Na Europa, como um escândalo desses seria tratado por oposição e situação?

Acho que a apuração seria mais ou menos do mesmo tipo. A diferença é que tudo seria muito mais chato.

Chato?

Sim. Porque é difícil imaginar um deputado alemão com dinheiro na cueca ou a secretária de um pivô do escândalo no Parlamento inglês nua na Playboy… Essas coisas dão um tom brasileiro à crise. Na Europa tudo teria cores menos fortes, as histórias seriam menos interessantes. Veja que os tentáculos do escândalo são inúmeros e levam a caminhos surpreendentes. Você pega uma trilha e acha o homem da cueca, toma outra e encontra sei lá o quê. Você lembra do Jader Barbalho? Houve um escândalo com ele que foi dar em uma fábrica de rãs. Este é um país divertido.’



Mario Sergio Conti

‘Crise: ‘reality show’ e Constituinte’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/08/05

‘Reduzidos à condição de bestas, assistimos ao lento desmoronar de um sistema político

É de Aristides Lobo a frase famosa (e incisiva, e verdadeira) de que o povo assistiu bestializado à proclamação da República. Hoje, assistimos bestializados ao tumultuado teatro das CPIs, à exposição frenética de negociatas, ao desmanche de reputações até ontem tidas como ilibadas.

Reduzidos à condição de bestas, assistimos a algo maior: o desmoronar de um sistema político. É um esboroamento lento, que não começou com o governo Lula, mas a partir dele se acelerou. Ele começou com a própria Constituição de 1988, que permitiu o surgimento de partidos de aluguel. As legendas podres vendem seus horários gratuitos na televisão aos partidos mais fortes, que os usam para enxovalhar seus adversários.

Legislando em benefício próprio, as sucessivas legislaturas blindaram a pocilga do financiamento dos partidos. As campanhas eleitorais ficaram caríssimas. Elas são balizadas por institutos de pesquisa de opinião pública, orquestradas por marqueteiros (que sem sobressalto algum vendem Maluf numa eleição e, na seguinte, Lula) e financiadas por um empresariado espertalhão que, antes mesmo da posse do eleito, já está cobrando as duplicatas vencidas. Na forma de nomeações de operadores seus na máquina do Estado, de concorrências viciadas e tráfico de influência.

Esse é o sistema político, corrupto de cima abaixo. Claro que há exceções, partidos que são exceção (no momento não me ocorre nenhum), mas o arcabouço geral impede que a representação política se realize. Entre uma eleição e outra, os eleitos fazem o que bem entendem. O que é pouco. No caso do Congresso, os parlamentares se limitam a tentar emplacar pífias emendas ao Orçamento da União, atendendo os pleitos de sua clientela, a buscar a nomeação de apaniguados no Estado e a participar das chamadas votações decisivas, geralmente emendas constitucionais. Nas três atividades, o lubrificante costuma ser a corrupção.

Na oposição, o PT se comportou como antípoda desse sistema. Lula foi o mais extremado na crítica, ao menos na oratória, quando disse que havia 300 picaretas no Congresso.

Na campanha eleitoral, a crítica foi abandonada em favor do cortejo das legendas de aluguel, do recurso aos esquemas vigentes de financiamento e da contratação, a peso de ouro, de agências de publicidade, que demonstraram por á mais bê que o partido se tornara respeitável. Ou seja, que se adaptara ao sistema político e econômico.

Ao chegar ao poder, a direção do PT aprofundou e radicalizou o processo de adaptação. Daí os delúbios e suas malas, os genoínos e suas cuecas, os dirceus e seus emprego e casa para a ex-mulher, a dinheirama sacada das contas dos valérios e os sujeitos, ainda indeterminados, que abasteciam os valérios. O afã petista foi o de recém-convertido. Foi tamanho o seu empenho que o PT explodiu, implodindo com ele o sistema político.

Como os cacos do monstro ainda estão voando em todas as direções, é difícil fazer previsões. Mas ao que parece só há dois caminhos possíveis, ambos sujeitos a chuvas e trovoadas. O primeiro é o da recomposição do sistema político, que pode vir sob rótulos diferentes: conciliação, pizza, acordão, abafamento. O segundo é o de aproveitar o embalo para destruir o sistema político e, sobre os seus escombros, criar algo melhor.

Mesmo o caminho da recomposição implica investigação e punições. Investigação que, cada vez mais, se espalha no sistema político como fogo na Amazônia. Investigação que, cada vez mais, se aproxima do presidente, a despeito do cerco que foi formado ao seu redor. É impossível, por exemplo, que o Planalto se recuse a esclarecer quem pagou, em dezembro de 2003, a dívida de R$ 30 mil que Lula tinha para com o PT. Parafraseando Saint-Just, o revolucionário francês: ninguém é presidente inocentemente.

E punição que padece de um problema de legitimidade. Como um Congresso que elegeu para sua presidência um varão de Plutarco, Severino Cavalcanti, e tem os seus maiores partidos (PT, PSDB, PMDB, PFL) implicados na roubalheira, pode ter coesão e credibilidade para punir?

Ainda que com essas dificuldades, a estratégia da conciliação pode ser levada a termo. Ela resultará na cassação de um punhado de parlamentares e na condenação de alguns malfeitores. Foi o que ocorreu quando da destituição de Fernando Collor. O mundo da política oficial se dará por satisfeito. E tudo voltará a ser como antes. Pouco a pouco, aparecerão novos pc farias, novos delúbios, outros valérios. E os políticos se aliarão a eles. E construirão novos esquemas. E cacifarão um candidato providencial. Haverá, então, mais escândalos.

Escândalos que, como observou Andrew Downie, correspondente no Brasil do jornal americano Christian Science Monitor, têm a mecânica dos programas de telerrealidade, que no Brasil foram batizados com o nome bizarro de reality shows. Um bando de aspirantes a celebridades são fechados num ambiente esdrúxulo (no caso o Congresso), se dividem em facções, se engalfinham e, para a satisfação dos baixos instintos da galera, são paulatinamente eliminados. Os que sobrevivem são contemplados com a possibilidade da reeleição.

Essa solução tem uma decorrência inevitável. O desinteresse pela política. Como o voto é obrigatório, crescerá o número de brancos e nulos. A carreira política, igualmente, tenderá a atrair não os abnegados, os imbuídos de espírito público, ou aqueles que pretendem melhorar a situação de determinada classe. Não, ela deverá atrair os que querem se arrumar da noite para o dia, sem trabalhar.

A segunda via é a da convocação de uma Assembléia Constituinte. É um caminho mais complicado. Também com ela há o problema da legitimidade. Quem a convoca, o presidente, o governo, o Congresso? E com quais objetivos? Na verdade, quem convoca uma Constituinte soberana é a soberania popular, que se expressa nas ruas. Dito de outro modo: ela não pode ser convocada a frio, pela ordem que se desmancha. Uma Constituinte soberana é expressão da soberania popular, que se manifesta nas ruas. Mas não, como é da nossa tradição, em passeatas carnavalescas e bem-humoradas. E sim no exercício de um direito fundamental: o de se revoltar e enfrentar a ordem estabelecida.

Com a Constituinte, haveria a possibilidade de, mais que costurar atabalhoadamente os retalhos de um sistema político falido, erigir um novo, à altura das necessidades da Nação.

Para que isso aconteça, as dificuldades são imensas. Elas podem ser sintetizadas.’



Luciana Nunes Leal, Wilson Tosta e Guilherme Evelin

‘PT suaviza autocrítica e ataca ‘estratégias oportunistas da direita’’, copyright O Estado de S. Paulo, 7/08/05

‘O Diretório Nacional do PT aprovou ontem uma autocrítica branda aos erros cometidos pelo partido no escândalo do mensalão. Em resolução aprovada em reunião de que participaram 61 integrantes do diretório, o partido defende ‘apuração rigorosa’ e ‘punições, inclusive no âmbito partidário’, mas prefere concentrar ataques ‘às estratégias oportunistas da direita que quer abreviar o mandato popular, legal e legítimo do presidente Lula’.

O documento, escrito pelo Campo Majoritário, tendência que comanda o partido e à qual estão vinculados os principais dirigentes petistas envolvidos com o esquema financeiro do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, foi classificado de ‘pífio’ e ‘extremamente tímido’ pelo deputado Chico Alencar (PT-RJ), um dos integrantes da ala esquerda do partido.

A resolução do Diretório reconhece que o PT ‘passa por um dos momentos mais delicados da sua história, afetado por uma crise que emergiu de dentro da sua própria estrutura’. No seu sétimo parágrafo, menciona que ‘o PT não pode deixar de assumir seus próprios erros’. Mas faz questão de ressaltar que ‘também está em curso um processo difamatório montado contra a totalidade do PT e suas lideranças e contra o governo, que visa aniquilá-lo’. ‘Este processo pretende retirar o partido da cena pública’, assinala o documento, lido na reunião pelo secretário-geral do partido, deputado Ricardo Berzoini, um dos seus co-redatores, ao lado do assessor especial da Presidência, Marco Aurélia Garcia.

Ao ser aprovado, em votação que contou com a participação de 56 integrantes do diretório, o texto teve o voto de 29 integrantes do Campo Majoritário. Mais severas na expiação de culpas do partido, duas outras resoluções preparadas pelas correntes de esquerda não tiveram votos suficientes para serem aprovadas. Um documento, apresentado em conjunto pela Articulação de Esquerda e pelo Movimento PT, teve 14 votos, enquanto outro preparado pelo Bloco Parlamentar de Esquerda e pela Democracia Socialista conseguiu 11 votos. Um quarto texto, preparado pelo grupo trotskista O Trabalho, teve dois votos.

‘O documento é parcial. O Campo Majoritário está resistindo a fazer a autocrítica dos seus métodos e dos seus próprios erros’, disse a deputada Maria do Rosário (RS), candidata do Movimento PT à presidência do partido. Derrotada na discussão sobre o mea culpa petista, a esquerda obteve pelo menos uma vitória: o Campo Majoritário desistiu de pedir o adiamento das eleições internas, mantidas para 18 de setembro.

As resistências do Campo Majoritário – em particular do grupo vinculado ao ex-ministro José Dirceu e ao ex-tesoureiro Delúbio Soares – a um reconhecimento abrangente de culpas já haviam surgido na reunião da tendência realizada na sexta-feira, quando as propostas do presidente do PT, Tarso Genro, para um amplo processo de depuração interna foram recebidas com frieza. As desconfianças voltaram a emergir na reunião do Diretório, realizada em clima tenso por causa das incertezas em relação ao que ainda pode vir a surgir dos documentos guardados pelo empresário Marcos Valério.

O deputado Chico Alencar chegou a propor um ‘pacto de franqueza’, em que todos abrissem seu grau de envolvimento no esquema Valério-Delúbio. ‘Não podemos ficar reféns de fatos que nos atropelam’, pediu. A proposta teve a adesão de Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência da República. ‘Vamos acabar com a hipocrisia. Todo mundo é responsável, por erro ou por omissão’, disse Marco Aurélio.’