Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os dispositivos que constituem o dispositivo

Em um conjunto de ensaios publicado em 2009, intitulado O que é o contemporâneo? E outros ensaios, o filósofo italiano Giorgio Agamben empreende um esforço teórico que se funda no questionamento a respeito dos mecanismos de gestão e produção que capturam os desejos e as ações humanas e caracterizam o pensamento político moderno. A reflexão de Agamben inicia com uma releitura do dispositivo, conceito desenvolvido pelo pensamento de Michael Foucault, embora o filósofo francês não tenha elaborado mais profundamente sua definição. Em entrevista concedida em 1977, Foucault fala brevemente sobre o que é o dispositivo:

“Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um conjunto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos. […] Assim, o dispositivo é um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e por eles são condicionados” (Foucault apud Agamben, 2009: 28).

A partir dessa ideia basilar sobre o dispositivo, Agamben desenvolve uma reflexão sobre sua origem no termo grego oikonomia que, adaptado ao latim dos padres da Idade Média, transformou-se em dispositio, do qual se origina o termo dispositivo. A oikonomia diz de um conjunto amplo de práticas, saberes e instituições cuja função é gerir, controlar e orientar os pensamentos e as ações do homem. Da sua relação com a oikonomia, temos que o dispositivo diz daquilo através do qual uma atividade de gestão e produção se realiza, sem fundamento no ser – “Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito” (Agamben, idem: 38).

“Oeclipse da política”

Dessa investigação a respeito da origem do termo, Agamben chama de dispositivo tudo aquilo (linguagem, conceitos, ideias, discursos, instituições públicas e privadas, lugares, objetos etc.) que de alguma forma oriente, determine, controle e assegure práticas, comportamentos, opiniões e discursos dos homens, ou seja, tudo aquilo que capture o desejo, a atenção e a sujeição dos homens. Agamben também divide o mundo em duas grandes categorias, a dos seres viventes e a dos dispositivos. É da relação entre os homens e os dispositivos, é do processo de subjetivação no qual o dispositivo atua, que surge uma terceira categoria, os sujeitos. “Na raiz de todo dispositivo está, deste modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo” (Agamben, idem: 44). Mas os dispositivos não capturam a atenção e os desejos dos homens apenas pela intenção pessoal de felicidade, mas também porque são os dispositivos que oferecem meios através dos quais cada homem se sente sujeito integrante de uma comunidade, e é o sentimento de pertença que garante alguma ordem e manutenção dos modos de produção e funcionamento da sociedade.

Agamben faz uma crítica ao excesso de dispositivos reguladores da sociedade moderna capitalista que, como já havia apontado Foucault, visam à criação e manutenção de homens dóceis, mas livres, que possuem identidade e liberdade de sujeitos justamente no processo de subjetivação dos dispositivos, pois apenas enquanto produzir subjetivação o dispositivo também governa, de outra forma o dispositivo se torna apenas um exercício de violência (idem: 46). No entanto, na sociedade capitalista em que vivemos hoje, o excesso de dispositivos tem provocado o processo inverso: o de dessubjetivação, que significa que ao invés de os dispositivos processarem um novo sujeito, geram apenas formas espectrais de sujeitos – violentam.

“As sociedades contemporâneas se apresentam assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não correspondem a nenhuma subjetivação real. Daqui o eclipse da política, que pressupunha sujeitos e identidades reais (o movimento operário, a burguesia, etc.), e o triunfo da oikonomia, isto é, de uma pura atividade de governo que visa somente à sua própria reprodução” (Agamben, idem: 48).

Dimensões técnicas, tecnológicas e discursivas

Em suma, o excesso de dispositivos está criando uma sociedade caótica e ao mesmo tempo apática, uma sociedade na qual seus integrantes não se sentem mais seguros e estão cada vez mais respondendo a padrões de comportamento negativos, como o isolamento, a depressão e a violência. E o próprio governo, que antes se valia dos processos de subjetivação e do corpo social dócil que estes geravam, agora não mais consegue exercer controle sobre as respostas das sociedades aos dispositivos excessivos, e a conduz à catástrofe.

Agamben procura, nesse ensaio, estabelecer a origem da noção de dispositivo e ampliar seu campo de ação, desvinculando-o de contextos exclusivamente institucionais. O dispositivo pode assumir tantas formas e conteúdos quanto o homem é capaz de produzir e apreender – o conceito é desenvolvido em diversas áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Educação e o Direito –, e engloba um conjunto possivelmente infinito de objetos materiais e um conjunto certamente infinito de relações sociais balizadas por inúmeros dispositivos abstratos. Mas o aspecto mais relevante do dispositivo, seja ele material ou abstrato, é o efeito ideológico que provoca.

No campo da Comunicação, o dispositivo é igualmente objeto de reflexões teóricas que abordam as relações estabelecidas entre a sociedade, as tecnologias, a linguagem e os processos de comunicação, como os franceses Maurice Mouillaud (1997), cujas reflexões recaem sobre o jornal impresso como dispositivo, e Jacques Aumont (1993), que desenvolve o conceito em análise da imagem; e também Jairo Ferreira (2006), pesquisador dos agenciamentos do visível e do dizível promovidos pelos dispositivos midiáticos. Vale reforçar também que o conceito de dispositivo na comunicação e na mídia engloba suas dimensões técnicas, tecnológicas e discursivas.

O dispositivo e a instituição

Em artigo publicado no livro O Jornal: da forma ao sentido, do qual é também organizador, Mouillaud (1997) destaca que o dispositivo não deve ser considerado apenas enquanto um suporte técnico por meio do qual os discursos jornalísticos são enunciados, posto que também age orientando os modos de interpretação dos discursos que inscreve e ainda influencia de maneira determinante os vínculos estabelecidos entre os receptores (indivíduos então assujeitados) e tal conteúdo discursivo.

Assim, o jornal impresso opera um processo de subjetivação distinto do operado por um programa televisivo ou uma fotografia jornalística – mesmo que sejam todos dispositivos constituintes do mesmo grande dispositivo da informação e do jornalismo; mesmo que o conteúdo seja exatamente o mesmo. A forma do dispositivo, escreveu Mouillaud (idem: 35), “é sua especificidade, em particular, um modo de estruturação do tempo e do espaço”. O autor ainda define o dispositivo como o lugar físico ou abstrato no qual o texto se inscreve, sendo que texto engloba toda e qualquer forma de inscrição, seja linguagem, ícone, som, gesto etc.

Sobre o caráter institucional do dispositivo, embora afirme que ele pertença invariavelmente a ambientes institucionais, Mouillaud (idem) sustenta que ambos possuem certa autonomia entre si, posto que uma instituição pode permanecer a mesma (ou ao menos manter sua função e identidade social) utilizando-se de dispositivos diferentes, enquanto um dispositivo pode operar o mesmo processo de subjetivação acolhido em outro lugar institucional. Entretanto, o autor afirma que ambos são indissociáveis na medida em que só se atualizam um pelo outro.

Estratégias de relações de forças

No livro A Imagem, Aumont (1993) desenvolve uma ampla pesquisa de análise da imagem, abordando desde os processos físicos, orgânicos e psicológicos ocorridos no momento da formação da imagem pelo olho humano, até os aspectos do imaginário e do subjetivo relacionados ao espectador e à recepção, desenvolvendo também reflexões sobre a imagem propriamente e sobre a arte. Nesse trabalho, o autor dedica um capítulo para pensar o dispositivo, e o define como um conjunto de elementos e materiais que abrangem “meios e técnicas de produção de imagens, seu modo de circulação e eventualmente de reprodução, os lugares onde elas estão acessíveis e os suportes que servem para difundi-las” (Aumont, idem: 135).

Embora também enfatize a dimensão técnica do dispositivo, Aumont diferencia esta, que agiria no sentido de melhor apresentar a imagem ao espectador, da sua dimensão sócio-simbólica, responsável por legitimar o ato de “ir ver imagens” (idem: 173). Aumont referia-se, nesse trecho, especificamente às imagens cinematográficas, mas pode-se fazer a mesma consideração para os demais tipos de imagens e demais tipos de situações cotidianas nas quais o dispositivo orienta e legitima o acesso, o contato e o uso que o homem faz das imagens-experiências que compõem seu universo e o constituem como sujeito. “O dispositivo é o que regula a relação do espectador com a obra. Tem necessariamente efeito sobre esse espectador como indivíduo” (idem: 188).

Apesar de estudarem o conceito em objetos distintos (embora ambos pertençam ao universo da comunicação), Mouillaud e Aumont compartilham o entendimento do dispositivo como uma matriz orientadora dos modos de interpretação e produção de sentido, ou seja, ambos os teóricos enfatizam esse lugar privilegiado ocupado pelo dispositivo: entre o ser vivente e o sujeito, produzindo sentidos e mediando vínculos subjetivos. A construção de sentidos, por sua vez, é resultado também da construção de vínculos sociais que o dispositivo opera (Aumont, 1993): o contexto sócio-cultural co-determina os sentidos que os dispositivos promovem. Entende-se, então, que dispositivos são estratégias de relações de forças que condicionam o saber, e são também condicionados por ele; são, afinal, mecanismos de gestão e produção de sentidos, de saberes e de subjetividades.

O enunciador e o destinatário

Destaquei até aqui algumas considerações sobre o jornal impresso e a imagem como dispositivos de comunicação que assujeitam o indivíduo porque ambos são constituintes do grande dispositivo que é o jornalismo –“Os dispositivos se encaixam uns nos outros.”, escreveu Mouillaud (1997) –, que opera processos de subjetivação por meio de um discurso próprio, construído este de texto e imagem.

Há ainda um terceiro dispositivo que compõe o discurso jornalístico: o de enunciação. Segundo o argentino Eliseo Véron (2004), não existe produção de sentidos sem enunciação, compreendida pelo autor como os modos de dizer. O discurso jornalístico utiliza mecanismos enunciativos justamente para garantir inteligibilidade aos fenômenos sociais dos quais trata, e garantir que esses discursos signifiquem para seus consumidores. Seguindo o raciocínio de Véron, temos que o discurso jornalístico só consegue estabelecer vínculos com os demais grupos sociais porque recorre a modos de dizer (dispositivos de enunciação) diversos para conquistar grupos distintos de receptores.

Para Véron (idem: 217, 218), o dispositivo de enunciação é formado por um enunciador, cuja imagem expõe a “relação daquele que fala ao que ele diz”, ou seja, aos olhos dos receptores determinados discursos só poderiam ser produzidos por certo enunciador; por um destinatário, que assume a “imagem daquele a quem o discurso é endereçado”; e pela relação entre esse enunciador e esse destinatário, que “proposta no e pelo discurso”.

Texto e imagem

Pensar essa relação triádica que conforma o dispositivo de enunciação é também pensar no processo de produção e circulação do discurso jornalístico: basta tomar qualquer título jornalístico como exemplo para rapidamente identificarmos a figura do enunciador e do seu destinatário e vislumbrar, ainda que superficialmente, porque ambos conseguem estabelecer essa relação de assujeitamento. Pois o discurso jornalístico é um discurso reportado, cuja produção é orientada para alcançar o outro, mas não qualquer outro, por isso existem as linhas editoriais e os públicos-alvo.

O discurso jornalístico é todo construído para que essa relação dê certo: ele dialoga com discursos individuais e sociais já estabelecidos; aborda questões que interessam senão a todos, sempre a muitos; e vai buscar no novo, no acontecimento do dia, referências aos quadros de conhecimento compartilhados pelos receptores aos quais se dirige, ou seja, embora trate do novo, reproduz conceitos e ideias antigos firmemente enraizados no imaginário coletivo. Ao se apropriar de discursos primários e se utilizar de quadros de conhecimentos de outros para produzir um novo discurso sobre certa realidade, o jornalismo adquire uma enunciação de autoridade, que opera com maestria o processo de subjetivação do indivíduo, provocando um sentimento de identificação e pertença nesse receptor, que passa então a legitimar como verdadeiro o discurso jornalístico sobre a realidade.

Além disso, é preciso atentar para o fato de que o discurso jornalístico está imerso no universo discursivo, não apenas porque é também discurso, mas porque se relaciona e negocia com outros tipos de formações discursivas constantemente. Isso significa que o discurso jornalístico trata de uma realidade que já é apreendida de antemão por meio de outros tipos de dispositivos: por exemplo, quando o jornalismo relata algum acontecimento da esfera política e recorre ao discurso produzido por membros daquela esfera, ora, é claro que aqueles indivíduos estão assujeitados a dispositivos vários que servem ao sistema político. Observo isso apenas como constatação de que não há experiência humana que aconteça sem gestão de algum tipo de dispositivo, e menos ainda no âmbito do discurso.

Ao pensar os dispositivos de texto e imagem, que juntamente com a enunciação conformam o discurso jornalístico, considero-o como um dos mais complexos dispositivos de comunicação que opera um processo de subjetivação ao passo que age orientando o olhar da sociedade e construindo um saber que, por via das enunciações de autoridade e por ser legitimado socialmente como uma forma de discurso sobre o real, se impõe como único, mascarando ou mesmo descartando outras possibilidades de verdade.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1993. Acessado (download) em: http://search.4shared.com/q/ACA/1/A+Imagem+-+Jacques+Aumont

FERREIRA, Jairo. Midiatização: dispositivos, processos sociais e de comunicação. In: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

MOUILLAUD, Maurice; Porto, Sérgio Dayrell (Org.). O Jornal:da forma ao sentido. Brasília: Paralelo 15, 1997. Acessado (download) em: http://www.4shared.com/office/ui0wX-GM/Captulo_2_-_O_Jornal__da_forma.htm

VÉRON, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004.

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[Carolina Pompeo Grando é mestre em Jornalismo, Florianópolis, SC]