Os últimos episódios envolvendo os Estados Unidos e seus inimigos, mais uma vez, colocam a mídia no centro dos acontecimentos. A foto que mostra o embaixador americano na Líbia sendo arrastado, já morto, para fora do consulado, chocou a América, dividiu opiniões mundo afora e levou as principais emissoras de televisão americanas a justificar-se perante a opinião pública – que preferia não ter visto o que viu.
Não é difícil imaginar o impacto dessas imagens no emocional de uma nação que, desde 11 de setembro de 2001, não sabe mais o que é dormir em paz. No dia seguinte ao ataque em Benghazi (12/9), a jornalista Margaret Sullivan, ombudsman (public editor) do New York Times, escreveu um artigo respondendo às centenas de e-mails que chegavam ao jornal, protestando contra a decisão editorial de levar para a primeira página a dramática foto do diplomata, feita por um fotógrafo da agência France Presse e a única publicada, numa galeria de outras tantas ainda mais chocantes que foram deslocadas para o banco de dados.
Margaret referiu-se, principalmente, à reação de um leitora que parecia estar falando em nome de toda a nação, ainda não recuperada do tiroteio que duas semanas antes havia matado duas pessoas e ferido nove, em frente ao Empire State Building, em Nova York. As imagens de uma das vítimas sangrando até morrer numa das calçadas mais famosas do planeta provocou uma onda de protestos e debates que mobilizaram diferentes setores sociais e culturais da sociedade. E, mais uma vez, esta mesma sociedade vê-se diante de fotos e fatos que mexem com seus nervos e mentes. “It’s too much…”, queixou-se a raivosa leitora, para quem a descrição dos fatos já seria o suficiente para bem informar o público. Que o Times tivesse mais cuidado da próxima vez, se quisesse manter seus fieis leitores. Outras cartas se seguiram, no mesmo tom.
Primeira vítima
A decisão de publicar a foto do embaixador foi, com toda certeza, resultado de um consenso editorial. E Margaret lembrou isso, ao mesmo tempo em que perguntava aos seus leitores por que não reagiam com o mesmo rigor e sensibilidade diante de milhares de outras imagens do Times,e de toda mídia americana, mostrando os milhares de corpos mutilados pelas ações terroristas no Iraque e na Síria, só para citar alguns países com espaço permanente na mídia internacional.
O editor Ian Fischer, que fechou a primeira página de terça-feira (11/9), foi mais veemente: “Cobrimos centenas de guerras ao longo da nossa existência, mostramos a sua crueza em todos os seus sórdidos detalhes, exibimos para o mundo inteiro as fotos exclusivas de Kadafi sendo morto e martirizado. Ninguém reclamou. Posso entender que a foto de um diplomata americano naquela situação tenha um impacto mais forte, mas não se pode brigar com a informação e com os fatos, como eles se apresentam”.
Quem está certo, pergunta Margaret em seu artigo: o leitor que hoje protesta ou os editores compromissados com a informação e com a verdade? “Se a gente aceita a ideia que a vida de cada ser humano tem o mesmo valor e a mesma dignidade, por que nos chocamos com a foto do nosso embaixador e não mostramos a mesma sensibilidade quando se trata de cidadãos de outros países, igualmente vítimas do mesmo terror?”, pergunta ela.
Quarta-feira (12) à noite foi a vez do âncora de um dos principais programas da CNN, também acossada por centenas de mensagens protestando contra as imagens do embaixador morto, reservar uma parte do seu horário para defender a empresa e justificar a sua linha editorial em relação aos últimos episódios no consulado americano em Benghazi. Foi dito que a CNN entende a posição de seus telespectadores, conhece suas motivações, procura ater-se ao essencial em momentos assim, mas não pode transformar a verdade na primeira vítima dessa infame realidade.
Festa e foguetes
Vendo e ouvindo tudo isso recuei anos atrás, quando me vi escrevendo cartas a O Globo, Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo protestando contra a foto publicada em importante revista semanal, mostrando um já terminal Mario Covas urinando nas calças. Seu constrangimento diante da própria fragilidade física me emocionou, assim como me tirou do sério aquela foto que mal disfarçava uma intenção subliminar.
Covas estava com câncer de próstata, que tem na incontinência urinária uma de suas muitas sequelas. Não estava prevenido e não conseguiu segurar os efeitos de sua doença. Fiquei indignada, me perguntando que jornalismo era aquele, o que haveria de intencional por trás daquela decisão editorial. A revista não publicou minha indignação (que não foi a única), mas O Globo, JB e Estadão deram-lhes bastante destaque.
Agora, refletindo sobre esses últimos acontecimentos internacionais e o papel da imprensa sobre eles, fiz um passeio mental e emocional por situações semelhantes, aqui e lá fora, e as diferentes reações dos leitores. Que consequências teriam esses fatos para todos aqueles que, como nós, travam essa luta quase inglória por um jornalismo sério, justo e ético. O que é certo e o que está errado nesse processo?
Recuei para a mesma Líbia de poucos meses atrás. Ver, em tempo real, um Muamar Kadafi sendo linchado em praça pública não foi das coisas mais agradáveis de se ver e de se relembrar, mesmo sendo quem era. Mas a verdadeira Justiça não passa por aí. Entretanto, pouquíssimos foram aqueles que escreveram para seus jornais protestando contra aquelas chocantes imagens, como bem lembrou o editor do Times. Vi, isso sim, regozijo e foguetório, até na Times Square.
Jornalismo limpo
Não sei como aqui nos comportaríamos se nossa imprensa publicasse as imagens de um ilustre cidadão brasileiro em situação semelhante à do embaixador americano. Faríamos uma sádica fila nas bancas de jornais para ver e rever a cena? Escreveríamos para os jornais exigindo mais comedimento no uso das imagens? Ou simplesmente acharíamos que a vida é assim mesmo, enquanto uns nascem, outros morrem?
Não tenho respostas para essas perguntas. Mas faço aqui algumas provocações, tanto melhor se elas levarem às necessárias reflexões. Alguém se lembra de ter visto, em vídeo ou em fotos, a imagem de uma Jacqueline Kennedy dizimada fisicamente pelo câncer? Ou o pulmão do ex-presidente Ronald Reagan explodindo pelas balas que o atingiram num atentado em Nova York? Ou o corpo destroçado da princesa Diane, em meio às ferragens de seu carro, só para citar alguns poucos exemplos?
Ainda assim, ninguém deixou de ser bem informado sobre todas as circunstâncias que antecederam e precederam esses acontecimentos. Por que a mídia aceitou aqueles limites? Lembram das rotineiras cenas dos caixões desembarcando em aeroportos militares americanos com os corpos (ou o que sobrou deles) dos militares mortos na Guerra do Vietnã, sempre transmitidas ao vivo pelas principais emissoras de TV americanas? Comoviam o público americano. Era tão intenso o impacto que isso acabou forçando um amplo debate nacional sobre sua legitimidade. Venceu a opinião pública e essas imagens nunca mais foram divulgadas. Puseram um fim àquela cobertura. Mas, chocantes ou não, ninguém hoje duvida o quanto contribuíram para o fim daquela guerra.
Qual é o limite da informação, afinal? Devemos permiti-lo ou vale tudo para vender mais? Dizem que uma grande parcela da população brasileira gosta não só de samba, chope e mulher, mas também de sangue, muito sangue. O sucesso dos jornais ditos populares não parece desmentir essa versão. Trabalhei 19 anos em um deles e testemunhei as lutas internas de alguns editores para qualificar a informação que saía dos esgotos da cidade, diminuindo a sangreira, ocultando a porção diabólica do ser humano, buscando um jornalismo mais limpo. As vendas caíram a níveis preocupantes. Era preciso atender as expectativas do público, dar o que exigiam: cenas “mais reais”.
Eis um belo e proveitoso debate.
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[Magda Almeida é jornalista]