Este livro reúne reflexões dos pesquisadores Carlos Alberto de Carvalho e Mozahir Salomão Bruck que foram, em oportunidades distintas, apresentadas à comunidade do campo comunicacional em eventos científicos da área. Oferecê-los reunidos nesta publicação cumpre o objetivo de, além de articular os textos resultantes dos objetos e atenções específicas dos dois estudiosos, proporcionar ao leitor reflexões desenvolvidas por eles, perspectivadas aqui a partir do Jornalismo e os cenários em que este se desenvolve, mas também cria, e os complexos processos operacionais e de produção de sentido em que a prática do Jornalismo institui e se realiza.
Por isso mesmo, a estruturação adotada tenta refletir essa visada multipontual: transita pelos cenários epistemológicos do Jornalismo, no Capítulo I, em que se alerta para o fato de que mesmo não constituindo um apanhado minimamente representativo do estado da arte nas pesquisas, o objetivo é o de tentar compreender algumas dimensões deste importante ator midiático em suas relações sociais e nas suas estratégias textuais – narrativas e discursivas. A dimensão epistemológica do Jornalismo é percebida por meio da problematização dos aspectos teórico-nocionais que têm prevalecido nos estudos que se dedicam ao Jornalismo. Pergunta-se em que medida as teorias que buscam compreender o jornalismo estariam operando conceitualmente a partir das próprias dicotomias e simplificações típicas dos processos de produção das notícias, ou melhor dizendo, da maneira como são elaborados e postos em circulação os muitos produtos jornalísticos, dos quais a notícia é apenas a parte mais visível.
Assumimos, enfim, que o desafio, sendo ele epistemológico, é buscar entender em que medida as “pistas” ou sugestões dadas pelos operadores midiáticos estariam sendo trabalhadas pelos pesquisadores a partir da ausência de um questionamento de suas próprias validades ou, ainda, de suas limitações. Talvez o reverso de tal discussão se apresente no artigo seguinte em que refletimos sobre o alheamento do campo profissional jornalístico às noções e saberes produzidos no âmbito acadêmico-teórico. O que se tenta mostrar é que mesmo que os estudos jornalísticos se atenham a aspectos de forte indicialidade advinda do exercício da profissão, os mesmos geralmente são desconsiderados pelo profissional jornalista. Tal abordagem valeu-se das notações e manifestações das entidades de classe que, reiteradamente em congressos da categoria, defendem a formação em nível superior para atuação profissional, como assim também desconhecem que os estudos e pesquisas acerca do jornalismo há décadas vêm oferecendo possibilidades de entendimento acerca das complexidades, conflitos e contradições próprios do campo jornalístico.
Olhar atento
A atenção ao domínio discursivo do Jornalismo substancia o Capítulo II. Ao ocuparmo-nos das estratégias narrativas e discursivas do campo jornalístico, o norte de nossas reflexões aponta para o desejo de compreender as marcas textuais para além da tradição que as situam quase exclusivamente no campo dos gêneros ou estilos jornalísticos – notícia, reportagem, informação, opinião, entrevista – as preocupações com a natureza dos textos que circulam a partir das mídias jornalísticas e que são reapropriados por seus fruidores. Se de um lado, a argumentação pode ser compreendida como condição, é preciso pensá-la também como estratégia de assimilação e adesão ao discurso jornalístico.
Aqui, também uma oportunidade para refletir-se sobre o trabalho do jornalismo que se dedica às narrativas de trajetórias de vida, ou seja, a empresa biográfica. Os traços de uma ingenuidade biográfica, como ao modo de Bourdieu, reforçam a perspectiva de uma abordagem do mundo fundada na utopia da possibilidade de sequestro do que se convencionou chamar de real para instalá-lo em uma narrativa.
A terceira parte, por fim, se propõe a enfrentar os enfeixamentos e entrecruzamentos resultantes dos modos de agir, ver e fazer saber presentes na tessitura jornalística do cotidiano – uma tessitura que não é urdida apenas a partir de jogos de linguagem, que como buscou-se evidenciar nos capítulos anteriores, trazem sempre as marcas sociais, já que a linguagem é parte integrante e mesmo força motriz para as mudanças que as sociedades promovem, tendo nas formações discursivas formas privilegiadas para a percepção das modificações que atingem as mais variadas instâncias da vida coletiva. O jornalismo se realiza por meio de jogos estratégicos também de outras ordens, que envolvem encenações de papéis – como a atribuição que as próprias mídias jornalísticas fazem a si de atuarem com objetividade, isenção, imparcialidade e outros elementos já largamente analisados como “mitos”, como discursos que não resistem a análises mais cuidadosas sobre c omo interesses políticos, culturais, econômicos e tantos outros interferem nas modalidades de construção da informação noticiosa. Jogos de intensos arranjos e rearranjos táticos dos actantes e que se desenrolam especificamente no “campo” do jornalismo ou por meio dele.
Fazendo uma metáfora em relação ao próprio objeto deste livro, mais do que um dizer, quer esboçar-se como um modo particular de olhar para o ambiente noticioso/jornalístico. Daí resulta que, apesar de entendimentos peculiares e relevos resultantes dos interesses particulares de cada um dos autores, o livro se estabelece a partir de aproximações observáveis nos estudos desenvolvidos por ambos nos últimos anos.
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Prefácio
Muniz Sodré
Neste Jornalismo: cenários e encenações, de Carlos Alberto Carvalho e Mozahir Salomão Bruck, a palavra “cena” adquire, de modo bastante original em estudos de mídia, um estatuto teórico. Em termos estritamente semânticos, ela tem a ver com a parte principal de um palco, mas depois se amplia culturalmente para designar as subdivisões de uma peça teatral e, mais ainda, em literatura, para as situações evolutivas de um enredo. O que fazem aqui os dois autores? Fazem de cenário e encenação vetores teóricos para dar conta da variedade das pesquisas em jornalismo em planos discursivos diferentes, ou seja, no plano implícito da armação conceitual (que designam como epistemologia), no do discurso jornalístico e nos “jogos” textuais, que vão das biografias às reportagens.
Se fosse possível resumir em uma frase as “encenações” levantadas por Carlos Alberto e Mozahir para caracterizar esses planos discursivos, ficaríamos tentados a permanecer na noção de jornalismo como o operador simbólico das linguagens constitutivas da grande narrativa polifônica sobre o estar-no-mundo quotidiano.
Mas os autores visam, além disso, ao esclarecimento de princípios teóricos subjacentes à reflexão sobre o jornalismo, para tentar distingui-los das dicotomias presentes na prática da produção de notícias. E têm razão: todo e qualquer empenho científico dispõe-se, além da produção de uma teoria em acordo com a experiência, a explicar as noções correntes sobre a natureza do objeto analisado. É fato sabido o quanto a teoria do jornalismo costuma misturar a reflexão conceitual com o seu próprio senso comum corporativo. Daí, a preocupação epistemológica dos autores.
Mas nos interessa particularmente neste texto a idéia de cenário/ encenação, porque alude de modo mais instigante do que o referimento à ciência –– uma vez que aí seria a mídia como um todo o objeto teórico, e não apenas a prática jornalística –– à construção jornalística do acontecimento, portanto, à elaboração do que, no quotidiano, se apresenta como ética social imediata.
De fato, sabemos o quanto o prestígio da imprensa escrita decorre de um compromisso histórico, publicamente “encenado”, com a ética do liberalismo. Cabe-lhe, desde os começos do regime republicano europeu, assegurar ao cidadão a representatividade de sua palavra, de seus pensamentos particulares, garantindo assim a sua liberdade civil de exprimir-se ou manifestar-se publicamente.
Essa função, que é a virtude intrínseca (a “arethe”) da imprensa, lastreia eticamente o pacto comunicacional implícito na relação entre os meios de comunicação e a sua comunidade receptora. Com a prática competente desta virtude, o jornalista justifica historicamente a sua narrativa factual, garantido pela credibilidade que, em princípio, lhe seria outorgada por sua condição (moral) de testemunha primeira dos fatos.
Direção dada
A História tem mostrado, entretanto, o quanto é difícil justificar-se eticamente. Dentro do próprio círculo discursivo da filosofia, registra-se a dúvida poderosa de Wittgenstein (no Tractatus), para quem a ética, a religião, a arte, o reino do pessoal e a metafísica dizem respeito ao que não se pode dizer, ao que transcende o mundo. Textualmente: “O sentido do mundo deve ficar fora do mundo. No mundo, tudo é como é e acontece como acontece: nele não existe nenhum valor… Pois tudo o que ocorre e tudo o que é o caso é acidental (T., 6.41). Por isso, é impossível que existam proposições de ética. As proposições não podem expressar nada mais alto (T., 6.42).”
Mas, atenção: o que Wittgenstein está dizendo é que a ética não se pode dizer, mas se pode mostrar. A ética provém do desejo de dizer algo sobre o significado último da vida, sobre uma finalidade ou um valor absoluto. Embora a proposição ética seja inútil, a existência do enunciado ético mostra tendências “virtuosas” da mentalidade humana, que apontam para os limites da linguagem ou os limites do mundo tal como se nos apresenta.
É também numa virtude que se apoia o produtor de conhecimento do social, o pesquisador acadêmico. Que virtude? A do bem comum, implicado no desenvolvimento de um conhecimento universal sobre a sociedade, portanto, o incremento da racionalidade do social. Mas quando um sociólogo analisa um acontecimento ou um fenômeno social qualquer, seu protocolo de linguagem deve, em princípio, distingui-lo da abordagem que um jornalista faria do mesmo objeto. Ele se obriga a comunicar que seu saber provém de uma “ciência”, apoiada numa experiência de “campo”.
Tal é a garantia epistemológica do pesquisador, do dito “cientista social”. Existe, claro, a subjetividade do cientista social, mas esta deve ficar em segundo plano diante de uma objetividade legitimidade pela reflexão implícita nas condições da análise.
O discurso jornalístico prescinde dessa posição epistemológica, o jornalista não é obrigado a mostrar as condições teóricas de seu relato ou de sua análise. Basta-lhe, no máximo, citar de forma coerente as suas fontes informativas. Ele não tem de lidar, como o pesquisador, com os problemas da relação entre sujeito e objeto ou entre sujeito e sujeito, menos ainda com a grande finalidade (ética) de estabelecimento de um Bem universal. Basta-lhe afinar-se narrativamente com o Bem comunitário.
É essa “afinação” o parâmetro da encenação jornalística que, diferentemente da encenação literária da língua, mira a sociabilidade visível dos sujeitos sociais. Nessa linha, as negociações em torno da enunciação dos acontecimentos, as restituições biográficas da memória coletiva, as tentativas de escapar da superfície dos fatos parecem caminhar resolutamente na direção de uma eticidade a ser ainda pesquisada. O livro de Carlos Aberto e Mozahir Salomão é uma boa medida da complexidade da tarefa. [Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]
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[Carlos Alberto de Carvalho é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e Mozahir Salomão Bruck, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais]