O aumento espantoso da criminalidade no Brasil, com o registro mais recente de extermínios coletivos, como o de seis adolescentes na Baixada Fluminense na primeira quinzena de setembro – só comuns a países como os Estados Unidos, onde a venda de armas é liberada – coincide, paradoxalmente, com campanhas ainda pontuais pela sedimentação de uma cultura de paz contraditoriamente tão pouco difundida pela mídia brasileira. Esse comportamento midiático contribui para manter o jornalismo como uma profissão cercada de sobressaltos e perigos.
As estatísticas somadas no Google falam em 529 jornalistas vítimas de violência nos últimos cinco anos e registram 105 assassinatos em 2010, contra 66 em 2011. Apesar de tudo, aprendemos a nos defender dos matadores e políticos viciados? Ou reduzimos a intensidade de denúncias de irregularidades locais, regionais, nacionais? Passamos a nos conformar, como qualquer cidadão comum?
Quanto mais politizada a sociedade mais politizada sua mídia. Quando a politização da mídia se excede e começa a trilhar pelo radicalismo, quase sempre os veículos perdem audiência, justamente o fator determinante para a sustentação comercial deles: quem vai comprar espaço num veículo que ninguém quer apreciar?
Jornal sem sustentação
Talvez movida por esse fator, raramente encontramos na história da imprensa brasileira um veículo que seja mantido exclusivamente por seus leitores. É nesse ponto que a parcela de publicidade dos governos pesa tanto na balança comercial da mídia. E a pergunta – quais os veículos que recusam publicidade, seja ela de que lado for, venha de onde vier? – acaba caindo no vazio. Estamos falando de aprender a caminhar no fio de uma navalha: quem se habilita?
Também é nesse ponto que entra a força do mercado: que tipo de imprensa tem a aceitação do mercado? Uma imprensa conformada, que aceita a violência do ou contra o vizinho como parte da sua postura normal? Uma imprensa reativa, capaz de combater a violência independente da sua origem? Uma imprensa aguerrida, capaz de abrir caminhos ao desenvolvimento social da comunidade?
Já tivemos no Brasil um tipo de imprensa aguerrida. Infelizmente, ela não se sustentou. Construído a partir de uma experiência partidária apoiada em grandes causas políticas e sociais, o semanário Em Tempo teve uma breve sobrevivência, nos anos 1970, com a repressão da ditadura militar a todo vapor, tão curta – menos de um ano – quanto fulgurante: rapidamente sumia das bancas, ora retirado pela censura, ora pela avidez dos leitores. Você pergunta: se o jornal era tão bom por que não permaneceu? Não tinha sustentação comercial e os idealistas que o compunham eram pessoas de carne e osso, alimentavam-se diariamente e não moravam debaixo da ponte. Ou seja: tinham contas para pagar, como qualquer outro cidadão.
Ascensão da socialdemocracia
Na verdade, foram centenas de jornalistas originários dessa experiência que puseram suas vocações na mochila e saíram do mercado. Uns por falta de maior consistência vocacional em seu idealismo. Outros porque descobriram ter escolhido equivocadamente essa profissão. Posso dizer sem medo de errar: nem um décimo dos jornalistas de diploma foi absorvido pelo mercado desde a criação dos cursos universitários da área. Você pode questionar isso: o mercado midiático no Brasil não se expandiu na mesma proporção da oferta/qualificação de mão de obra. E as mídias alternativas, por que não sobreviveram? Essas mídias alternativas, como O Pasquim e o semanário Movimento, não deram origem a talentos como Ziraldo e Raimundo Pereira? Onde foi parar o leitor-consumidor dessas mídias?
Essas médias alternativas originaram um consumidor volátil, que também comprava livros de escritores considerados então malditos com livros, textos, poemas e até os quadrinhos de Henfil vendidos nos bares, restaurantes, nas praças por pessoas como eu, Mário Augusto Jacobskind, Ignácio de Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu e tantos outros: cessada a luta em favor das liberdades de expressão, a campanha contra a ditadura, o consumidor volátil evaporou-se e deixamos de vender esses livros e jornais.
Nesse ponto, você pode até questionar a qualidade desses produtos, mas a migração desse consumidor gerou um boom, uma expansão mercadológica que precisa ser averiguada por pesquisas ainda por fazer. Recordo-me das acrobacias usadas por membros do CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia para retirar um desses textos do presídio político da rua Frei Caneca, onde estavam 50 presos políticos já condenados a 50, 210 e até 350 anos de prisão.
Escrito em papel bíblia pelo preso político Gilney Amorim, do Acre, ele foi retirado em dez partes, passando pelas varreduras feitas na portaria escondido na genitália de uma ativista da anistia – uma manobra tão ou mais arriscada do que aquela que permitiu, mais de três décadas antes, ao preso político Arthur Koestler tirar da prisão, na Espanha, seu Zero e o Infinito, graças ao qual o mundo tomou conhecimento que os presos em celas individuais se comunicavam na cadeia através do código Morse.
Foi Gilney Amorim quem primeiro previu a ascensão da socialdemocracia no Brasil, ocorrendo isso depois a vitória de Fernando Henrique Cardoso à presidência da República. O texto resgatado de Gilney Amorim, transformado em livro, é outra raridade que você pode adquirir em www.estantevirtual.com.br.
Tudo era proibido – menos proibir
Claro, esses semanários sobreviviam na defesa de uma causa – a liberdade de expressão –, combatiam a repressão política da ditadura e o fato de estarem permanentemente na mira da censura funcionava ao mesmo tempo como sua morte e sua vida. Tanto o ato de escrever para jornais alternativos como o de publicar livros com qualquer referência ao período repressivo vivido pelo país era suficiente para cair na malha fina da censura.
Vivi isso na pele em 1977, quando a Editora Cátedra, liderada pelo escritor e romancista Moacir Lopes, promoveu o lançamento do meu livro de contos intitulado Proibido numa livraria do Recife. O encontro para autógrafos estava marcado para as 17 horas, na então Livro Sete, do inesquecível livreiro da liberdade, Tarcísio – então a maior livraria-ponto de encontro cultural da cidade, no centro. Quando os leitores chegaram, a polícia da repressão já havia passado lá e apreendido toda a edição – 3 mil exemplares. O prejuízo foi tão grande que a editora não teve condições de imprimir outra edição nem para vender às escondidas, atividade comum à época.
Hoje, quando reflito sobre isso a primeira reação é a gargalhada, que foi substituindo a indignação inicial. Por que? Além da excelente capa de Rolemblat com duas cabeças, bocas fechadas, só havia um conto, que dá titulo ao livro, mostrando a cidade de um certo país onde tudo era proibido – menos proibir.
Impunidade faz recrudescer número de assassinatos
Não se tratava de imolação, atitude suicida praticada por ativistas políticos em algumas partes do mundo no pós-guerra. Repórteres de pequenos e médios jornais do interior do Brasil não tinham consciência histórica dos seus atos, da força de suas matérias para o restabelecimento da normalidade política, da sua radicalidade fatal; ao romper com os limites fixados por forças políticas locais, cidadãos comuns, representantes religiosos ou repórteres, principalmente nas décadas de 60 e 70, foram abatidos por balas assassinas pintadas com a certeza da impunidade.
É impossível não registrar que a revitalização da imprensa brasileira, pequena e média do interior, com os jornalistas exercendo brancaleonicamente seu papel social de fiscais da aplicação correta dos recursos públicos – papel constitucional que deveria ser, de antemão, exercido pelas casas legislativas, câmaras de vereadores e assembleias estaduais – acabou se convertendo em pretexto que os transformou em alvo de bandidos vestidos de políticos partidários. Essa sede de vingança a denúncias feitas pelos jornalistas mais conscientes e ativistas políticos veio a ocorrer com maior frequência depois de 1964, a partir de quando o sistema político passou a abastecer os cofres públicos, tornando os cargos uma importante fonte de renda, quer pelos honorários em sua maioria astronômicos, quer por orçamentos e liberalidades sedutores da corrupção.
No ranking dos piores países da América Latina onde predomina a impunidade, segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ), o Brasil figura em 11º lugar, o México em 8º e a Colômbia em 5º lugar. É essa impunidade que tem feito recrudescer o número de assassinatos de profissionais da imprensa, fato paradoxal ao mundo globalizado em que, nas redes sociais, não é difícil identificar posicionamentos de agentes políticos convivendo o mesmo espaço apesar dos seus conteúdos notavelmente conflituosos.
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[Reinaldo Cabral é jornalista e escritor]