A revista Veja de 22/8 (edição 2.283) publicou (mais) uma capa apelativa.
Confesso que eu mesmo, afligido por incomodo e perigoso sobrepeso, bati o olho na “ginástica em gotas” e fiquei animado. Depois, pensei: “Não pode existir ginástica em gotas. É melhor olhar o que diz a matéria.“
Resumo: pesquisadores puseram camundongos a fazer “atividade física sobre rodas” (que a reportagem, como quem não quer nada, equipara a “esteira ergométrica”). A partir do 21º dia (novamente: “da décima semana no calendário humano”), os músculos dos bichinhos começaram a produzir o hormônio irisina em quantidade suficiente para acelerar o metabolismo do tecido adiposo e, portanto, fazer emagrecer.
Em dez dias, sem atividade física e ingerindo comida gordurosa em excesso, os camundongos perderam 2% do peso corporal … e aí entra mais uma das passagens manipuladoras da reportagem: “o que, entre homens e mulheres, equivale a uma redução de quatro quilos em seis meses”.
A seguir, o texto apresenta o seu álibi: “As experiências com a irisina em humanos devem começar a partir de 2013”. Imediatamente, para evitar que se instale a dúvida, aparece uma declaração com carimbo de CRM. “’Confirmados os resultados obtidos com as cobaias, estará deflagrada a maior revolução no tratamento da obesidade desde o tempo da descoberta dos anorexígenos, na década de 40’, diz o endocrinologista Antônio Carlos do Nascimento”.
É o oba-oba, que o texto não deixará de celebrar, “trocando em miúdos” (foi ato falho?): “Trocando em miúdos, a irisina é a ginástica em cápsula − ou em gotas”, etc.
Vendendo doença
No blogue Imprensa Saudável, o professor da USP Gustavo Gusso publicou carta enviada pelo também médico Leonardo Graever à Veja. Graever reagiu ao que saltou diante dos seus olhos: a capa anunciadora de uma impossível ginástica em gotas. Antes mesmo de ler a reportagem, ele concluiu:
“(…) Mesmo que a reportagem desfaça essa primeira impressão, e acredito que o faça [não faz], dada a competência de seus jornalistas, para quem passa pela banca de jornal e recebe o imprint semântico dessa capa, o mal está feito. No afã de vender a revista, os senhores estão fazendo apologia à preguiça, e sendo profundamente irresponsáveis quanto à educação em saúde do cidadão. Estão vendendo doença.” (Leia a íntegra aqui.)
Na edição seguinte, Veja publicou cartas laudatórias (entre elas as de dois médicos) e críticas. Não a de Graever. Publicou a do endocrinologista pediátrico de Natal Ricardo Fernando Arrais. A retórica é menos inflamada, mas o conteúdo, coincidente:
“Já vimos esses filme antes… Começa como um murmúrio vindo das primeiras pesquisas ainda em animais de laboratório (que, muitas vezes, não apresentam nem de longe os mesmos resultados em seres humanos) e logo toma corpo na forma de um burburinho, transformado, depois, em franca gritaria. Finalmente, a obesidade será vencida, e, melhor ainda, sem esforço! O velho problema de sempre, com o velho roteiro batido: caso a irisina tenha efeito similar em humanos, certamente será transitório, já que o metabolismo celular é regido por interações muito complexas. Estamos sempre à procura da ‘bala de prata’ que pode nos tornar ‘imunes’ ao ambiente de excesso de oferta e falta de atividade física. Não quero ser pessimista, mas, enquanto buscamos soluções para situações pontuais, a obesidade segue aumentando e a lei de Darwin, que seleciona os mais aptos ao meio ambiente, vai fazendo o seu trabalho. Diminui a expectativa de vida dos ‘poupadores’ de energia (sedentários) e privilegia os ‘gastadores’.”
As necessárias precauções
Em janeiro, no New York Times, as pesquisas sobre a irisina foram apresentadas não como uma forma de evitar exercício (ressalvando-se que há pessoas impossibilitadas de fazê-los), mas como um incentivo à sua prática. A reportagem se baseava em texto publicado na revista Nature.
No início de agosto, o mesmo NYT publicou nova reportagem, agora baseada em artigo da revista Science. Aparece no relato um cientista sueco, Sven Enerback. Ele especula que uma terapia capaz de pôr em ação no organismo células de gordura marrom – a que é queimada para produzir calor – poderia permitir queima de gordura branca, precipuamente indesejada, “à razão anual de cinco quilos ou mais”, lê-se em tradução publicada no portal Terra.
Mas, advertência que faltou na matéria da Veja, “uma terapia como essa não deveria ser usada como forma única de tratamento da obesidade”, e precisaria “ser acompanhada por uma mudança de estilo de vida e outras intervenções.”
Ou, como destaca um artigo (em inglês) da Escola de Saúde Pública de Harvard, e aparece de forma superficial na Veja, “camundongos, ratos e macacos não são pessoas. Para entender melhor como alimentos (ou algum outro fator) afetam a saúde humana, é sempre necessário estudá-los em seres humanos.”