[do material de divulgação da editora]
Convidado a relatar o ofício do jornalismo para a série ‘O que é ser’, da Editora Record, Ricardo Noblat não se prendeu ou se limitou a ensinar a profissão a jovens estudantes. Contador de histórias de mão-cheia, ele rememora no livro O que é ser jornalista passagens de sua vida profissional e pessoal, e indica as influências que o ajudaram a escolher e a moldar a profissão: do cordel declamado em praça pública à poesia moderna; do new journalism de Truman Capote ao realismo mágico latino-americano. Um verdadeiro ‘Manual de Redação’ preenchido com a experiência de quem cobriu, entre tantos outros marcos históricos, o drama da morte do ex-presidente Tancredo Neves, o surgimento e a derrocada de Fernando Collor e a ascensão do primeiro líder de esquerda do país, Luiz Inácio Lula da Silva.
Como repórter e chefe de redação, Noblat trabalhou em Veja, Jornal do Brasil, Manchete e, mais recentemente, no Correio Braziliense. No Correio, promoveu uma reforma que transformou o jornal num dos mais respeitados do país, mas também viveu um dos piores momentos de sua vida: foi ameaçado de morte e seus filhos sofreram agressões.
‘A tarefa de tentar contar a verdade é uma das mais perigosas porque ela contraria interesses de poderosos. O que eu passei em Brasília, e que está relatado no livro, nada mais é do que conseqüência do exercício da profissão’, afirma Noblat.
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O que o levou a escrever este livro? E por que em primeira pessoa?
Ricardo Noblat – A editora lançou a série memórias profissionais O que é ser. Fui convidado a escrever sobre a profissão de jornalista. Acredito que jornalista só escreve livro quando recebe uma encomenda ou se vê obrigado a fazê-lo. Porque ele acaba se dedicando tanto à profissão, que sobra pouco tempo para escrever coisas que possam ter uma durabilidade maior. Em primeira pessoa, porque é a proposta da coleção de contar suas experiências e falar da trajetória profissional e, à medida que você conte, reflita sobre o exercício da profissão e a preocupação de dar dicas, sugestões, idéias. Foi o livro que mais me deu prazer em escrever porque gosto de contar histórias.
O livro relata momentos pessoais difíceis – como ameaças a seus filhos – um efeito colateral de seu ofício de jornalista de ‘dizer o que acontece’. Como vê a atividade dos jornalistas hoje no Brasil?
R.N. – Esta coisa de dizer a verdade – ou pelo menos o que a gente imagina que seja a verdade, pois não existe verdade absoluta – foi e sempre será uma atividade muito perigosa, e se você se debruçar sobre a história do jornalismo isto está mais do que demonstrado. A organização Repórter sem Fronteiras, muito respeitada, faz todos os anos um levantamento dos jornalistas não só assassinados, mas perseguidos, exilados, presos. Enfim, a tarefa de tentar contar a verdade é uma das mais perigosas que existem porque ela contraria interesses muito poderosos. O que eu passei em Brasília e que está relatado no livro nada mais é do que conseqüência do próprio exercício da profissão. Não foi nada de excepcional, nem de original, nem de notável em relação ao que acontece com um jornalista.
Mas você enfrentou um governador (Joaquim Roriz, do Distrito Federal) e não se curvou mesmo quando foi ameaçado, acabando por pedir demissão do Correio Braziliense em solidariedade ao presidente do jornal, Paulo Cabral…
R.N. – Há momentos na vida, e isto acontece em qualquer profissão, em que você não pode transigir. Não são nem muitos momentos na vida, são apenas algumas situações cruciais para reafirmar seus valores e princípios ou abdicar e fraquejar diante deles. Naquela situação, em novembro de 2002, era óbvio para mim que permanecer no Correio Braziliense significava ter que fazer um jornalismo, a partir da saída do Paulo Cabral, completamente diferente do que se fazia, na contramão do que se fazia. Foi uma atitude natural, nada de excepcional, nada de heróico. Foi apenas uma conseqüência lógica de um comportamento que sempre tive nos meus 37 anos de profissão.
Qual o momento político, de bastidores, que mais lhe marcou como jornalista?
R.N. – Foi o maior furo que eu não dei! Era editor do Jornal do Brasil, em Brasília, e todos estávamos prontos na redação para cobrir a posse de Tancredo Neves como presidente da República. Na antevéspera da posse, o Marcelo Pontes, então editor de política do JB, me ligou do Rio com a informação de que Tancredo estava doente. A informação lhe fora passada pelo dono do jornal, Nascimento Brito, que a ouviu de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Tentamos checar a veracidade da informação, sem sucesso. Pois um dia antes da posse – Tancredo, cheio de dores, acabara de assinar na Granja do Torto os atos de nomeação dos ministros – o Aloisio Alves, nomeado ministro da Administração, me ligou à noite para confirmar a história. Acredito terem sido os dias mais nervosos do século passado: o primeiro presidente civil doente, o então presidente João Figueiredo recusando-se a passar a faixa presidencial ao vice eleito, José Sarney, e um ministro do Exército tentando articular um golpe… Naquele momento houve informações desencontradas, um show de erros jornalísticos, fontes se fechando e, até a quarta operação de Tancredo, um tom otimista. É como digo no livro: acho que em certa medida acreditamos na maioria das mentiras que nos pregaram porque queríamos acreditar nelas… Como minha Tia Zezinha, acreditando que o Papa João XXIII não morreria simplesmente porque não queria que ele morresse.
No livro você diz que teve muitas influências na maneira de escrever: histórias contadas por suas tias; o avô linotipista; a literatura de cordel no Mercado de São José, no Recife; o realismo mágico latino americano; e o new journalism. Acredita que o jornalismo hoje no Brasil perdeu a ‘literatura’, está mais objetivo e oficial?
R.N. – Acho que se perdeu muito em apuro literário; noutras palavras, hoje se escreve sem a imaginação, sem a criatividade, sem liberdade, sem a ousadia que já se escreveu. E acho que os jornais, principalmente, têm uma agenda de assuntos que deriva cada vez mais das fontes oficiais. Já disse isso mais de uma vez: a mídia sempre defendeu a privatização das empresas estatais, e isto aconteceu principalmente no governo Fernando Henrique. Acho que já passou da hora, estamos atrasados, em matéria de privatizar o noticiário dos jornais, um noticiário excessivamente dependente das fontes oficiais, das pautas que são ditadas pelas fontes oficiais. E por oficiais não digo apenas as fontes do governo, falo das instituições no geral. Existe muito pouco de conteúdo nos jornais afora isso.
Como é estar hoje longe da grande imprensa e produzindo um blog?
R.N. – É uma experiência de março para cá. Havia sido convidado a escrever uma página semanal sobre política no jornal O Dia, do Rio de Janeiro, mas com duas semanas já notei que, como a página era publicada sempre aos domingos, havia muita notícia que ia morrendo. Aí um colega do jornal sugeriu ‘por que você não faz um blog?’. Até então nunca tinha entrado em um desses na vida. Então comecei a dar as notas que sabia que morreriam antes do domingo. Com a entrada de uma nova diretora em O Dia, minha página no jornal foi extinta, então resolvi acabar com o blog. Ao anunciar seu fim, vários leitores postaram mensagens, os amigos me deram o conselho para continuar. Continuei. Mas confesso que sem muito entusiasmo. Comecei a me entusiasmar mesmo com o que estou fazendo de dois meses para cá, quando passei a medir sua audiência.
Quais amigos pediram para o senhor manter a coluna na web?
R.N. – Amigos como o ex-ministro da Justiça Fernando Lyra, o jornalista Paulo Henrique Amorim, alguns políticos. Agora, o blog ‘pegou’ – a audiência diária chega a 15 mil pessoas – e o grande desafio é como transformá-lo em um negócio, porque não me rende um tostão.
Os jornalistas ainda confundem muito ‘o que deve acontecer com o que desejam que aconteça’?
R.N. – Acho que este é um dos maiores defeitos e tentações que nós jornalistas temos: confundir o que a gente quer que aconteça com o que vai acontecer. Ficou claro, e é exemplo notável e muito recente, o episódio das fotografias do jornalista Vladimir Herzog publicadas pelo jornal Correio Braziliense e republicadas por praticamente todos os jornais brasileiros. O que aconteceu ali? Os jornalistas do Correio encontraram três fotos nos arquivos da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, fotos que estavam dentro de um envelope sem identificação. Acreditaram que aquelas fotos eram do Herzog, até com razão, pois eram muito parecidas com a imagem que se tinha dele. Então, procuraram pessoas que pudessem confirmar que aquelas fotos eram verdadeiras, mas a única pessoa que confirmou foi a viúva. Ainda assim, ela reconhecia apenas uma das fotos; uma segunda foto ela achava muito parecida e uma terceira ela estranhava muito porque era uma imagem em que aparecia uma mulher e que o suposto homem lembrava muito pouco o ex-marido. Foi basicamente a única fonte em que o Correio Braziliense confiou.
Se você estivesse à frente do Correio cometeria este erro?
R.N. – É difícil responder… Eu diria que não aconteceria até porque já passei pelo episódio que resultou na famosa manchete do Correio Braziliense ‘O Correio Errou’. Virou manchete porque no dia anterior tínhamos dado uma reportagem errada, sobre o suposto envolvimento do ex-secretário da presidência da República, Eduardo Jorge, na maracutaia com o Banco do Brasil. Quando descobrimos o equívoco, propus ao Paulo Cabral, e ele concordou, dar o erro como manchete. Para mim este foi um episódio muito marcante e completamente novo no jornalismo brasileiro, tanto que nunca vi uma manchete tão premiada e um erro tão celebrado como aquele: nós ganhamos naquele ano (2000) o prêmio Esso e também o Cláudio Abramo pela melhor contribuição ao jornalismo.
No livro você escreve que ‘no Correio aprendi a transformar erros em acertos, basta confessá-los e esforçar-se para não repeti-los’…
R.N. – Não só se esforçar para não repeti-los, mas admitindo com toda a clareza que você errou. O leitor entende isso, principalmente em um jornal diário que tem poucas horas para entregá-lo e a margem para cometer erros é muito grande. O jornalista tem grande dificuldade de admitir seus próprios erros. Os donos de jornais e revistas, os patrões, partem de uma concepção equivocada de que admitir erro desvaloriza e desacredita o veículo.
O que pensa do Conselho Federal de Jornalismo?
R.N. – Acho perfeitamente dispensável porque já temos uma legislação muito draconiana, aliás da época do regime militar. Ela por si só basta, ou melhor, já é um excesso. Nossa legislação já é rigorosa em punir os jornalistas e veículos que errem gravemente e que cometam crimes.
Quando a imprensa vai dar notícias das mazelas do Judiciário sem medo de conseqüências ‘de um juiz de primeira instância’?
R.N. – Vai demorar muito! Se é que um dia ela irá se debruçar com rigor sobre elas. Porque a imprensa morre de medo de responder a processos. É crescente o número de ações contra jornalistas e jornais, que podem implicar multas muito pesadas. Não sou contra os processos judiciais ou punição à imprensa, mas isto inibe muito a instituição e faz com que ela tenha muito receio de investigar as mazelas do poder judiciário.
Você diz também que ‘jornalistas reproduzem nas redações as brigas pelo poder que cobrem lá fora’. Muitas vezes estar com a verdade e narrá-las significa perder o emprego. Não deveria ser diferente ou é assim no mundo todo?
R.N. – Principalmente no jornalismo em centros de poder, como é o caso de Brasília, o jornalista acaba tomando partido de determinadas fontes de informação. Vi muito isso quando trabalhei no Jornal do Brasil, de 1982 a 1989, quando do fim do regime militar, começo da chamada Nova República e redemocratização do país. Os jornalistas valiam mais ou menos a depender do número de fontes que tinham. E ao ter informantes qualificados, muitos destes profissionais fizeram mais o jogo da fonte do que serviram aos interesses dos leitores.
Como está o primeiro presidente de esquerda do país?
R.N. – O desempenho do governo é muito ruim, medíocre. A maioria dos ministros não tem correspondido ao que se espera deles ou ao que o presidente Lula espera. Imaginava-se que do ponto de vista econômico, embora sem muita margem, se desse uma ênfase maior aos problemas sociais. Hoje se vê uma política econômica muito mais rígida e ortodoxa do que no governo anterior. Receio que este governo venha representar ou a ser percebido como uma grande frustração. Mas isso não implicará uma derrota do Lula quando tentar a reeleição, porque eu também não vejo qualquer candidato de densidade eleitoral e carismática tão forte quanto o Lula. Além disso, a economia está dando sinais de recuperação, ainda que tímida.