Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tecnologia da desinformação

Os fatos dos últimos dias no Oriente Médio são apenas um alerta para futuros distúrbios à medida que a democratização da mídia no Ocidente se depara com o despertar político no mundo árabe.

Os hoje marginalizados jovens do Facebook podem ter iniciado a Primavera Árabe, que desencadeou – alguns diriam “libertou” – vozes contrárias ao Ocidente e que durante muito tempo foram caladas por autocratas brutais. Mas agora é a vez do YouTube agitar a região. O trailer de um filme chamado A Inocência dos Muçulmanos colocou a região em chamas à medida que o filme se propaga na internet.

Bem-vindo ao nosso novo mundo, onde ninguém pode ser controlado – nem o Ocidente controla sua mídia social, tampouco os dirigentes árabes têm controle dos seus cidadãos libertados. Uma combinação inflamável.

Qualquer coisa, não importa o custo da produção, desde vídeos domésticos de cãezinhos até pornografia e blasfêmias pode ser colocada na rede sem ser supervisionada ou editada. No Oriente Médio livre, hoje os grupos antiocidentais ou são tolerados porque a maioria, incluindo os novos dirigentes, compartilham das suas ideias, ou porque os novos Estados democráticos ainda precisam ter pleno controle da violência que vai torná-los de fato soberanos.

O que é sagrado

Os antigos guardiões do poder que garantiam a estabilidade – desde Walter Cronkite (apresentador da emissora CBS, morto em 2009) da velha mídia tradicional, que exercia um controle editorial, até os ditadores do calibre de um Hosni Mubarak que governavam pela repressão – foram derrubados. (Embora tentem ainda afirmar: o general Martin E. Dempsey, chefe do Estado Maior dos Estados Unidos, que comanda a maior frota de aviões e bombardeiros do mundo, suplicou por telefone ao religioso que postou o vídeo – e que comanda uma minúscula congregação – para que desistisse da divulgação).

Os conflitos do futuro terão muito a ver com os abundantes fluxos culturais da economia da informação global e também com a escassez de recursos ou com a violação de território. Isto porque valores que competem entre si se amontoaram numa praça pública criada pelo comércio mais livre, a difusão da tecnologia e o alcance planetário da mídia.

Somente num mundo como este uma caricatura dinamarquesa provocativa ou um vídeo muito ruim no YouTube sobre Maomé poderia inflamar os fiéis e mobilizar os militantes em vastos e distantes espaços do mundo islâmico. Somente num mundo assim as autoridades chinesas procurariam amordaçar o artista Ai Weiwei, para verificar depois que ele está em contato com o mundo todo por meio do Twitter. E o Vaticano faria todo o possível para convencer o público cinéfilo de que o filme O Código Da Vinci não é o mesmo que a verdade eterna.

Esta praça pública global é o novo espaço de poder onde imagens competem e ideias são contestadas; é onde corações e mentes são conquistados ou perdidos e a legitimidade é estabelecida. É o espaço de atrito e fusão onde os bens comuns cosmopolitas estão sendo forjados.

Enviar navios de guerra carregados de armas para a região não conseguirá reparar o que o Facebook e o YouTube, carregados de mensagens, fizeram.

Nenhuma retaliação militar, ou ataques ainda mais violentos contra embaixadas e missões diplomáticas, conseguirá apagar esta realidade: o que é sagrado para os EUA (a liberdade de expressão, incluindo o sacrilégio) e o que é sagrado para o mundo muçulmano (a sua fé) são valores que se chocam e hoje competem no mesmo terreno virtual.

Defesa da fé

A questão vai além deste mais recente insulto à fé muçulmana, e alcança a mensagem da globalização forjada pelo Ocidente.

Embora seja verdade que o credo norte-americano “respeita todas as crenças”, também é verdade que aqueles que odeiam o islamismo, ou não respeitam nada, podem também se expressar. A boa e a má fé estão no mesmo nível na nossa cultura midiática democratizada.

Anos antes de Osama bin Laden idealizar o ataque às torres gêmeas em Nova York, Akbar Ahmed, estudioso paquistanês e ex-embaixador na Grã-Bretanha, captou a mentalidade de vitimização e autodefesa do mundo islâmico. Depois de uma longa viagem, passando por vilarejos distantes da fronteira entre Afeganistão e Paquistão onde o Taleban surgiu, ele afirmou que os devotos muçulmanos “sentem que não existe nenhuma salvação agora, nenhuma saída, nenhum lugar onde se esconder do demônio” da mídia ocidental, que chamou de “tropas de assalto do Ocidente”. Segundo disse, “eles sentem que quanto mais tradicional é uma cultura religiosa na nossa era midiática, maior a pressão sobre ela para ‘se render’ à falta de fé e ao secularismo da civilização global que emana do Ocidente”.

Para Akbar, “algo similar deve ter ocorrido no ano de 1258 quando os mongóis se reuniram em Bagdá para estraçalhar para sempre o maior império árabe da história. Mas, desta vez, a decisão será final. Se o Islã for conquistado, não haverá volta”.

Administrar uma aparente estabilidade neste novo mundo sem controle exigirá uma enorme habilidade para governar. O Ocidente não vai renunciar à sua defesa da liberdade de expressão – seja com o romance de Salman Rushdie Versos Satânicos (1988) ou com o vídeo A Inocência dos Muçulmanos postado no YouTube – que o Google bloqueou em alguns países. Muçulmanos, militantes ou não, também não renunciarão à defesa da sua fé.

Com o advento da democracia no mundo árabe, esta é uma nova realidade com a qual todos teremos de viver. Não vamos fingir que este conflito não é real. 

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[Nathan Gardels é editor chefe da Global Viewpoint Network e coautor do filme American Idol after Iraq: competing for hearts and minds in the globalmedia age]