“Em tempos como os que vivemos, não pode ser descurado o máximo rigor na informação dada aos leitores sobre as medidas anunciadas pelo governo com incidência nas condições de vida ou de sobrevivência dos cidadãos. Sendo o rigor informativo uma qualidade que sempre se exige ao jornalismo de referência, a sensibilidade social naturalmente exacerbada face a notícias como as que por estes dias deram conta das intenções governamentais em matéria de novas medidas ditas de austeridade deveria obrigar a um esforço redobrado de atenção editorial à veracidade da informação difundida.
Foi o que não aconteceu na edição do PÚBLICO da passada quarta-feira, em relação às novas medidas anunciadas pelo ministro das Finanças. Ao contrário da generalidade da comunicação social, este jornal informou, erradamente, que o governo pretenderia incluir no próximo Orçamento do Estado um corte nas pensões dos reformados da função pública, quando o que foi anunciado foi a diminuição, entre 3,5% e 10%, de todas as reformas de valor superior a 1500 euros.
Como bem notou o leitor Carlos Vaz, desde o que se escreveu na capa do jornal (‘Um terço dos reformados da função pública será afectado pelos cortes’) ao que se noticiou no seu interior, ‘os títulos e os textos levam a pensar que os cortes nas reformas são para os reformados da função pública, quando na realidade vão (aparentemente) ser aplicados a todos os reformados que ganhem mais de 1500 euros’. De facto, o erro estava coerentemente presente ao longo das páginas dedicadas nessa edição ao tema ‘avaliação datroika’: a omissão dos reformados do sector privado como sendo parte do alvo da nova medida dirigida contra os pensionistas, enganando assim os leitores quanto ao seu alcance, era patente no texto de abertura, na infografia que o acompanhava e na peça especificamente dedicada à redução das reformas de valor acima do indicado.
Na edição seguinte, o erro foi corrigido, mas não assumido, o que só terá contribuído para agravar a confusão dos leitores que têm neste jornal a sua fonte privilegiada de acompanhamento da actualidade. Em duas discretas linhas a meio de uma peça intitulada ‘Recessão em 2013 obriga ao dobro da austeridade’, escreveu-se que está nas intenções do governo ‘um corte nas pensões entre 3,5% e 10%’, sem repetir o dado falso de que este visaria apenas os funcionários públicos, mas também sem qualquer explicação sobre a informação enganosa divulgada na véspera.
Mais um dia volvido e lá se pôde encontrar, na edição de anteontem, uma frase destacada ao alto da página 11, repondo a verdade de forma um pouco mais visível. E surgia, enfim, mas remetido para o final de um texto e de novo sem qual referência ao que se anunciara dois dias antes com destaque, um esboço de explicação do sucedido. ‘O ministro das Finanças’, escreveu-se, ‘não disse claramente que assim seria na passada terça-feira, mas o Governo acabaria por confirmar’ que a tal ‘redução’ das pensões abrangeria os reformados do sector privado.
Não tendo sido informado sobre o que se passou ao certo, presumo que o erro de interpretação do anúncio feito por Vítor Gaspar terá sido detectado na redacção do PÚBLICO logo na manhã de quarta-feira. Assim se explicará a publicação de uma pequena notícia, ao princípio da tarde desse dia, na edição on line, informando correctamente que a intenção do governo é a de impor um corte em ‘todas as pensões acima de 1500 euros’. Nela se antecipava já — sem nunca referir o erro patente na edição impressa — a justificação de que o ministro não se exprimira ‘claramente’, ao dizer que seria ‘aplicada uma redução às pensões correspondente à redução aplicada aos funcionários públicos em 2011’.
É uma explicação pífia, tal como a solução encontrada para tentar remediar um erro apenas imputável ao PÚBLICO. A frase do ministro não significa o que foi entendido por quem escreveu as notícias da edição de quarta-feira. Mesmo admitindo que pudesse gerar alguma dúvida, impunha-se então confirmar o seu sentido, antes de se avançar com uma interpretação contrária à que, já na noite de terça-feira, era veiculada por outros meios de comunicação.
Não tendo isso sido feito, impunha-se, pelo mínimo respeito devido ao esclarecimento dos leitores, que o erro tivesse sido claramente assumido na edição impressa, na qual surgira com grande visibilidade e cujos leitores, como bem sabem os responsáveis editoriais do PÚBLICO, não são necessariamente os mesmos da edição on line.
Que é conveniente reflectir sobre o que se lê ou ouve antes de redigir ou editar informações que deveriam suscitar dúvida ou perplexidade mostra-o outro caso ocorrido nos últimos dias. Na noite do passado domingo foi colocada no Público Online uma notícia intitulada ‘Hollande garante imposto extra para os ricos e promete poupar 33 mil milhões’, na qual se afirmava que ‘dez mil milhões” do valor a abater na despesa pública em França ‘serão obtidos com cortes na educação, justiça e segurança’.
Esta informação, falsa, era o exacto contrário daquilo que o presidente francês anunciara pouco antes numa entrevista televisiva, em que garantira que, tal como prometera na campanha eleitoral, esses sectores seriam poupados às medidas de congelamento ou redução de despesa e de pessoal. Bastaria, para o perceber, consultar os relatos sobre as declarações de Hollande em qualquer meio de comunicação francês. A notícia provocou protestos de vários leitores, que perguntavam se não há no PÚBICO quem saiba ler e traduzir francês, ou quem conheça o mínimo da actualidade política francesa para se inibir de publicar, sem verificação, uma informação que, a ser verdadeira, contrariaria as expectativas criadas por Hollande.
Victor Ferreira, editor do Público Online, explica que a notícia em causa resultou ‘fundamentalmente’ de ‘um despacho de agência publicado no domingo à noite’, e refere que o erro, que ‘terá sido motivado por uma deficiente interpretação das palavras’ de Hollande, ocorreu numa noite de fim-de-semana em que ‘as equipas de trabalho são mais pequenas’ e a actualidade nacional dominava as atenções — factos que importarão para o debate interno, mas que não são relevantes para justificar a falta de rigor. Omitir ou adiar a publicação de uma notícia é preferível a dar informações falsas.
Quanto à demora na correcção do erro — a notícia só foi alterada na tarde de quarta-feira, apesar de “ter havido leitores que assinalaram o erro na caixa de comentários’ —, o editor volta a invocar problemas de organização e excesso de trabalho (‘nem sempre há tempo e disponibilidade para regressar às notícias e ver o que dizem os leitores’), mas recorda que ‘os editores de comentários têm instruções’ segundo as quais ‘comentários que apontam erros devem ser sinalizados de imediato ao editor respectivo’. O que não foi feito, tendo a informação errada permanecido em linha até ele próprio regressar à redacção após os seus dias de folga e promover a correcção do erro.
Neste episódio acumulam-se, na minha opinião, várias práticas nocivas. Publica-se em ritmo de corrida informação de agência, sem verificar as fontes originais. Entrega-se a redacção a quem notoriamente não domina a matéria tratada e não sente necessidade de consultar quem a conheça. Desprezam-se os alertas dos leitores atentos. E, sobretudo, mostra-se como as duas redacções do PÚBLICO podem funcionar, incompreensivelmente, de costas voltadas, sem comunicarem entre si. Da notícia sobre a entrevista de Hollande publicada no jornal de segunda-feira (que terá certamente sido redigida quase ao mesmo tempo que o texto da edição on line), não consta a informação errada. E, no dia seguinte, um texto paginado com destaque na edição impressa relatava de modo claro e correcto as declarações do presidente francês, enquanto no Público Online permanecia (e permaneceria ainda mais um dia) a sua ‘interpretação’ deturpada. É caso para se dizer que nem se lêem os avisos dos leitores nem as notícias do próprio jornal.
A acrescer a tudo isto, que não é pouco, somam-se sinais de que há quem escreva sem saber o que diz e, pior, de quem edite textos ou feche páginas sem pensar duas vezes no que lê e sem detectar erros crassos. Só assim se explica (e refiro apenas alguns exemplos citados nos últimos dias por leitores mais indignados) que se possa encontrar uma referência às ‘invasões napoleónicas, no início do século XIV’ (página 26 da edição de 5 de Setembro), ou ao ‘tom alegadamente apologético’ — como se em português ‘apologia’ fosse o mesmo que ‘desculpa’ — atribuído por responsáveis do Partido Republicano dos EUA ao modo como a embaixada norte-americana no Cairo se pronunciou, em comunicado, acerca do filme sobre Maomé que tem vindo a incendiar as praças de países muçulmanos (página 23 da edição do dia 13). Ou ainda, para ir ao mais básico, que se tenha previsto para o passado (e quente) dia 2 uma temperatura mínima de cinco graus negativos em Lisboa (página 43 da edição dessa data). Os leitores merecem melhor.”