O Oscar 2004 foi igual a todos os outros: Teve piadinhas idiotas, favorecimentos e o clima kitsch de sempre. ‘Um circo!’, no entender do cineasta Fernando Meirelles, que concorria ao prêmio de melhor diretor pelo filme Cidade de Deus. Teve as habituais falhas de som, dificuldades de tradução, merchandising de cerveja e comentários boçais na transmissão exclusiva do SBT. Logo de cara, Rubens Ewald Filho falava do ‘já meio acabado marido de Catherine Zetta Jones’, referindo-se ao ator Michael Douglas.
A diferença é que, em 2004, um filme brasileiro, Cidade de Deus, concorria ao prêmio em quatro categorias. Mesmo assim, a televisão tratou o evento como um show, um programa de auditório, esquecendo-se que o cinema é uma arte, deixando de lado a reflexão sobre este momento importante da produção cinematográfica nacional e ignorando a história que a trouxe até aqui.
É importante lembrar que o Brasil que vende lá fora, vende futebol, natureza e ritmos curiosos; vende mulheres bonitas, a criatividade de seu povo e a estética singular de sua miséria.
Por isso, O Cangaceiro – o primeiro filme nacional a ganhar um prêmio no exterior – vendeu mais do qualquer outro filme brasileiro. E por isso, 50 anos mais tarde, Cidade de Deus tornou-se o recordista em indicações para o Oscar, mesmo sem ter ganhado nenhum.
História recorrente
O Cangaceiro, dirigido pelo legendário Lima Barreto, explora de forma genial a musicalidade do brasileiro e a estética de nossa miséria, traduzida na figura heróica do cangaceiro, produto da pobreza no sertão nordestino. Se relevarmos os defeitos do filme – produzido por um cinema que até hoje anda à procura da sua identidade –. o que fica de O Cangaceiro é a capacidade brasileira de criar coisas realmente brilhantes quando se dispõe a mostrar suas entranhas – como foi o cangaço no século passado, como são as favelas atualmente.
Entranhas como as que vemos em Cidade de Deus, que reflete sobre as causas do surgimento das favelas, do tráfico de drogas e do aumento gradual da violência no Rio de Janeiro. A ferida social brasileira e a falta de opção dos jovens excluídos são expostas na tela de forma dramática.
Mesmo acusado de glamourizar a favela criando uma ‘estética da fome’, o filme de Meirelles é fascinante e nos faz sentir aliviados da nossa parcela de culpa pelas misérias brasileiras. Independentemente de supostas estetizações, tanto em Cidade de Deus quanto em O Cangaceiro podemos ver algumas de nossas mazelas denunciadas com muita inspiração.
O cangaço surgiu como conseqüência da pobreza e da fome no sertão nordestino. Da mesma forma que o tráfico de drogas nas grandes cidades do Sudeste é conseqüência do processo cruel de exclusão que coloca parte do povo à margem da sociedade. Os cangaceiros organizavam-se em bandos para saquear vilas e as fazendas da elite latifundiária. O traficante se organiza em quadrilhas para vender droga à mesma elite que o exclui. O nordestino pobre é o migrante que fugiu da seca e, ao chegar no Rio de Janeiro, foi conduzido a guetos como Cidade de Deus.
A história de pobreza e segregação se repete, tanto na vida real quanto no cinema. O Brasil que vende lá fora é o mesmo Brasil que padece aqui dentro, seja no sertão nordestino, como em O Cangaceiro, seja nas favelas, como em Cidade de Deus.
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Roteirista multimídia e editor de conteúdo do portal Webwritersbrasil.com (http://www.webwritersbrasil.com.br/)