Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tempos de ira

Na manhã do 11 de setembro de 2001, dia dos atentados da al-Qaida contra as Torres Gêmeas, um único americano vivo não estava na Terra. Era o astronauta Frank Culbertson, comandante da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Ele trafegava a uma altitude orbital média de 400 km do nosso planeta, junto com dois colegas russos.

A estação sobrevoava o Sul do Canadá rumo ao estado de Nova York quando a tripulação foi informada dos ataques pela equipe em solo no Cabo Canaveral. E foi através da escotilha de seu módulo que Culbertson avistou lá do alto a longa serpentina de fumaça emanando da única torre ainda de pé. “Foi horrível ver aquela fumaça a vazar das feridas do meu país”, escreveu ele mais tarde. “A dicotomia entre estar numa nave espacial dedicada a melhorar a vida na Terra e testemunhar a vida sendo destruída por atos tão terríveis abala a mente de qualquer um.”

Hoje, Culbertson precisaria dar as 15,7 voltas orbitais diárias da ISS para conseguir ver todas as feridas antiamericanas que irromperam no planeta nas duas últimas semanas. De Benghazi ao Cairo, do Paquistão à Indonésia, o mapa islâmico do Norte da África, da Ásia, da Europa e do Oriente Médio foi tomado por um surto de ira. Com uma dinâmica própria à medida que atravessa fronteiras, ele testa o Ocidente como um todo. À primeira vista, é difícil entender a força incendiária gerada por um filmete de quinta categoria, Inocência dos muçulmanos, cujo trailer de 14 minutos correu mundo pelo YouTube. Criado por um escuso cidadão da Califórnia, o filme tosco e asinino mais parece um pastiche sem humor de O ditador, do satirista britânico Sacha Baron Cohen.

Provocação deliberada

Usado como fomento para todo tipo de descontentamento popular, o vídeo deixou um rastro de mais de 30 cadáveres na primeira semana de protestos, reforçando o estereótipo de massas ignaras manipuladas por grupos extremistas. Convém lembrar que a desinformação manipulada não seria exclusividade dos povos do Islã. Com gradação diferente, os Estados Unidos têm a sua própria cota de ignorância popular direcionada: um terço dos eleitores da nação mais desenvolvida do mundo não acredita no evolucionismo e acha que Barack Obama é socialista, muçulmano e cidadão não americano.

O longo histórico de menosprezo do Ocidente pela fé islâmica, somado à movediça conjuntura política mundial, explica melhor por que o vídeo de um Maomé degenerado adquiriu potencial tóxico. Também evidencia o quanto andam embaralhados conceitos como liberdade de expressão, direito de opinião, lei, ordem, tolerância religiosa, segurança nacional.

Obama é presidente e nos deve desculpas, dizia o cartaz empunhado por um manifestante em frente à embaixada americana no Cairo. Em alguns países árabes, como no Egito, insultar qualquer uma das três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) é crime. Não espanta que para muitos muçulmanos recém-saídos de ditaduras, e que ainda tateiam com a noção de liberdade, seja inconcebível que a Casa Branca, vista como o magma do poder ocidental, não tenha o pequeno poder de impedir a veiculação de um mero filme. Segundo essa lógica, a não punição imediata do responsável pelo filme reforça a certeza de provocação deliberada. E a não censura do clipe no YouTube agrava a ofensa. “Nosso profeta nos é mais caro do que nossa família e nosso país”, explicou a um repórter do New York Times o manifestante do cartaz. “O Ocidente parece não compreender isso.”

As ideias de Mitt Romney

Ainda não será desta vez que os bípedes observados da órbita terrestre pelo astronauta Culbertson solucionarão a tensão entre o direito à livre expressão e a responsabilidade de cada um no uso desse direito. A prioridade, por ora, é apagar incêndios.

Barack Obama, ao assumir a presidência dos Estados Unidos em 2008, prometera trazer as relações com o mundo islâmico para um patamar de maior fraternidade e confiança. Não conseguiu. Hoje, enfrenta um labirinto bem mais complexo de crises entrelaçadas: conter Israel, que ensaia bombardear preventivamente as instalações nucleares do Irã, que é aliado da carnificina na Síria, cuja guerra civil se imbrica com a disputa intestina no Iraque, de onde os EUA bateram em retirada sem sair do atoleiro do Afeganistão, o qual, junto com o Paquistão, continua servindo de berçário para o terrorismo fundamentalista, que vive um surto de renascimento real. É esse emaranhado de pavios que se junta agora à fase mais decisiva da campanha eleitoral americana, até então dominada pela economia e temas sociais.

Seria desejável que tempos de ira revelassem estadistas à altura dos conflitos, mas nem sempre a História é tão generosa. Barack Obama tenta, a duras penas, consolidar sua biografia de chefe de Estado que comanda a nação através de crises múltiplas. Comparado ao adversário republicano que ele enfrentará nas urnas em novembro, é um alento ser ele o atual ocupante da Casa Branca. Mitt Romney, pela rala amostra de suas ideias e visão do mundo, parece carecer de estofo para sequer ser aprendiz.

Nota de rodapé: Em matéria de indignação desmesurada, a da duquesa de Cambridge não merece mais do que um rodapé. As imagens de seus seios expostos ao ar fresco e perfumado da Provence não existiriam se ela os mantivesse no único resguardo à prova de voyeurs – entre quatro paredes. Em 86 anos de vida não se conhece uma só foto de Elizabeth II com sequer uma mecha do cabelo fora de linha.

***

[Dorrit Harazim é jornalista]