Eis dois problemas próprios das sociedades livres. O primeiro é como conciliar o direito à plena expressão com a proteção dos indivíduos e grupos humanos contra as manifestações que – a seu ver – os ridicularizem, ofendam ou, no limite, instiguem contra eles a intolerância. O segundo problema é como distinguir, caso a caso, a intenção deliberada de ultrajar do exercício legítimo da crítica a crenças, atitudes e costumes, ainda que venham a ferir os sentimentos dos criticados. São bons problemas, esses. É melhor tê-los do que viver sob regimes ou culturas – que ainda predominam em amplas áreas do globo – nos quais o único direito assegurado de expressão é o de ser a favor da verdade dominante. Mas deve-se reconhecer também que o sistema de liberdades, conquanto precioso, pode ser pervertido para servir à propagação do ódio.
Ironicamente – ou não – é o que está na ordem do dia nos dois primeiros países que erigiram a liberdade como supremo valor político e cívico e com isso criaram a era moderna: os Estados Unidos, desde a sua constituição, em 1776, e a França, desde a Revolução de 1789. Ambos estão às voltas com as consequências de ações cujos autores tinham o direito de praticar, mas, por tê-las praticado, merecem o repúdio das pessoas civilizadas de qualquer quadrante. No episódio mais escabroso, o egípcio-americano Nakoula Basseley Nakoula, um cristão copta residente na Califórnia e condenado por fraude bancária, escreveu, produziu e distribuiu um vídeo abjeto – A inocência dos muçulmanos – que faz do profeta Maomé um personagem pornográfico. Como se sabe, um trailer de 14 minutos da fita foi parar na internet, convulsionando na semana passada o mundo islâmico, da Tunísia à Indonésia. Na Líbia, um ataque ao consulado dos EUA em Benghazi matou, entre outros, o embaixador americano.
Hoje, dia sagrado para os muçulmanos, temem-se novas explosões de fúria. Na quarta-feira, o tabloide satírico francês Charlie Hebdo (fundado em 1969, fechado em 1981 e relançado em 1992) publicou uma série não menos infamante de caricaturas de Maomé. O editor do pasquim, Stéphane Charbonnier, alegou tratar-se de uma crítica aos protestos dos dias anteriores. É um reincidente: em novembro passado mandou às bancas uma edição, “preparada” pelo Profeta, intitulada Charia Hebdo, em alusão à sharia, a lei islâmica. Desde então está sob proteção policial. É de lembrar que, há sete anos, desenhos de Maomé com um turbante em forma de bomba, publicados por um jornal dinamarquês, provocaram tumultos que deixaram mais de 100 mortos. Perto das baixezas do vídeo americano e dos cartuns franceses, aquelas caricaturas podiam passar por uma denúncia cáustica do fanatismo terrorista – embora seja imperdoável considerar o Islã uma cultura homicida por definição.
Na realidade, são três expressões de islamofobia – a aversão aos árabes e demais muçulmanos, compartilhada pela direita religiosa americana e por setores crescentes da população laica europeia. (Em 2009, o editor anterior do Charlie, o comediante Philippe Val, que se dizia de esquerda, foi nomeado diretor da emissora estatal France Inter pelo presidente Nicolas Sarkozy, depois de engajar o semanário na defesa do projeto que bania o uso de véus nas escolas públicas do país.) Além de insuflar o sentimento antiárabe – pelo que associações islâmicas na França pretendem processar o tabloide –, tanto o vídeo como as caricaturas foram feitos com a intenção insana de infligir sofrimento aos muçulmanos, ao humilhar o fundador de sua fé. Invocar a liberdade de expressão para justificar atrocidades morais a centenas de milhões de pessoas atenta antes de tudo contra os valores da contemporânea civilização ocidental.
É verdade que a cultura de massa nos países islâmicos está impregnada de mensagens antissemitas. Porém, deste lado do mundo, pessoas decentes, de qualquer credo ou nenhum, não podem aceitar que se pratique a mesma infâmia contra os seguidores de Maomé. A censura decerto é inconcebível, mas o incitamento ao ódio, quando caracterizado, deve ser punido como o crime que é.