‘Depois de 14 anos, a reforma ortográfica do português pode estar, finalmente, próxima de entrar em vigor. Aprovada em 1990 pelos oito integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), até hoje a reforma, que pode abolir o trema em tranqüilo e o hífen em pára-quedas (que ainda perderia o acento), ainda não saiu do papel. No Brasil, todos os passos burocráticos para a ratificação do acordo já foram dados. Estão a caminho em Portugal e Cabo Verde. Conforme um acerto feito em julho, a ratificação por parte desses três países será suficiente para implantar a reforma. Os outros cinco países – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste – poderão aderir depois.
A importância da reforma ortográfica parece difícil de se perceber à primeira vista. Afinal, é perfeitamente possível entender o português escrito em qualquer um dos países e as mudanças não chegam às expressões populares e gírias, que realmente fazem a diferença. Mas os defensores da reforma – entre eles o acadêmico Antônio Houaiss, já falecido, que participou da preparação da nova ortografia – apresentam um ponto indiscutível: hoje, o português é a única língua ocidental de alguma importância no mundo a ter duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, sem contar as versões de outros países. Inglês, espanhol, francês, alemão têm hoje uma grafia apenas.
LIVROS
Essa diferença dificulta, por exemplo, que o português possa ser uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU). Também cria problemas para o ensino do português como língua estrangeira.
Mas o maior problema apontado por especialistas é que a inexistência de uma grafia comum impede a livre circulação de livros e material didático entre os oito países. Hoje, uma publicação portuguesa tem de passar por uma revisão para ser lançada no Brasil, enquanto um livro de um autor latino-americano pode ser publicado ao mesmo tempo, com a mesma edição, na Espanha e em toda a América de língua espanhola – caso da mais recente obra do colombiano Gabriel Garcia Marquez, Memórias de Mis Putas Tristes.
‘Essas dificuldades atrapalham principalmente os países mais pobres. O Brasil, por exemplo, tem vários acordos de cooperação para alfabetização nos países africanos. Como a grafia é diferente, todo o processo é dificultado. O material didático ensina com uma ortografia diferente da usada no país, mas fazer uma nova versão fica muito caro’, explica Carlos Alberto Xavier, assessor especial do Ministério da Educação (MEC) que acompanhou toda a negociação da reforma, desde 1990.
Outro exemplo é o de publicações científicas. Nessa área, a unificação da grafia permitiria uma circulação maior de informações de tecnologia entre os oito países.
PESO BRASILEIRO
Quando foi feito, em 1990, o acordo da reforma ortográfica previa a ratificação de todos os países para entrar em vigor. Em julho de 2004, dada a dificuldade de alguns membros obterem as condições políticas para aprová-lo, foi decidido, num encontro em São Tomé e Príncipe, que bastariam três países conseguirem a ratificação em seus Congressos. O Brasil já o fez em 1995. Cabo Verde e Portugal estão em processo final e São Tomé já começou a encaminhar o processo. Por isso, a reforma pode passar a vigorar em pouco tempo.
Para isso, no entanto, o Brasil terá de fazer a revisão de toda a sua ortografia. A primeira mudança ocorrerá nos documentos oficiais. A Academia Brasileira de Letras (ABL), encarregada de revisar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, terá de fazer a revisão das cerca de 300 mil palavras da língua.
A sorte dos brasileiros, no entanto, é que as mudanças não afetam tanto a nossa ortografia quanto a portuguesa. Com mais 170 milhões de habitantes dos 215 milhões que formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o peso brasileiro é grande. Nada menos que 79% da população dos oito países onde o português é a língua oficial.’
Beatriz Coelho Silva
‘Filólogo é a favor da unificação da língua portuguesa, mas editores não’, copyright O Estado de S. Paulo, 2/01/05
‘As diferenças ortográficas não impedem a circulação de livros brasileiros nos países que falam português, mas a unificação da língua facilita sua disseminação entre outros povos. A opinião é do acadêmico e filólogo Evanildo Bechara. ‘Essa unificação aconteceu com o espanhol, o italiano e, em menor escala, com o alemão’, explicou. ‘Com o francês e o inglês não, porque são línguas hegemônicas, indispensáveis nas relações internacionais. Mas isso trouxe um problema: como não há correlação entre a grafia e a fonética, a mesma sílaba em inglês ou francês tem várias pronúncias, todas corretas.’ Bechara, que também é membro da Academia Portuguesa de Ciências, ressalta que essa unificação, à qual os brasileiros dão tanta importância, não parece ser prioridade dos portugueses. ‘Nos contatos com meus colegas de lá não se fala muito nisso.’
Os editores brasileiros estão atentos porque a unificação acarreta gastos na reedição de clássicos. Por outro lado, obras de escritores consagrados, como o português José Saramago, o angolano José Eduardo Agualusa e o brasileiro Jorge Amado, já são publicadas com a ortografia dos autores.
‘Os direitos de publicação, a distribuição, o vocabulário e sintaxe entravam mais a exportação de livros. Na ortografia é possível haver uma pacificação em cinco ou dez anos, o que não acontece com o sentido das palavras, que muda regionalmente nas línguas vivas’, diz o presidente da Nova Fronteira, Carlos Augusto Lacerda.
‘A cessão de direito de publicação se dá por língua e território. Posso publicar um autor em português só no Brasil. Para os demais países o contrato é outro’, completa o presidente do Grupo Record, Sérgio Machado. Ele vê desvantagem na mudança. ‘Vai implicar custos para adaptar textos clássicos à nova grafia e não resultará em ganhos, pois a exportação é parte ínfima do nosso negócio. Na reforma ortográfica de 1971, aumentou 20% o custo dos livros.’ A diretora da Gryphus, Gisela Zingoni, concorda. ‘Para literatura não faz diferença. Quem compra esses livros tem cultura para entender a ortografia portuguesa’, diz. ‘Talvez para livros didáticos haja problema.’
Já para o diretor da Lucerna, Evanildo Bechara, que é filho do acadêmico, a unificação facilita parcerias, mas não resolve o caso dos livros infantis. ‘As palavras têm significado diferente e as crianças daqui não entendem os textos de lá e vice-versa’, explica. ‘Aqui se fala ‘fiz um passeio legal’ e lá, ‘um passeio gira’.’
Para o presidente do Grupo Campus, Cláudio Rotmüller, o acordo beneficia mais Portugal que Brasil. ‘Enquanto somos um mercado de 170 milhões de pessoas, eles têm só 14 milhões.’’
Eduardo Martins
‘Iniciativa consagra diferenças irreconciliáveis’, copyright O Estado de S. Paulo, 2/01/05
‘O pretexto era unificar a grafia vigente nos dois lados do Atlântico, para facilitar a ação conjunta do Brasil e de Portugal nos organismos internacionais. No entanto, o propósito não só deixou de ser atingido como a semi-reforma (palavra que vai virar ‘semirreforma’) terminou, ao contrário, por sacramentar diferenças irreconciliáveis na escrita dos dois países.
Elimina-se o trema, mudam-se as normas para o uso do hífen, introduzem-se novamente no alfabeto as letras k, w e y (algum dia saíram dele?) e revogam-se alguns acentos.
A título de concessão, Portugal abre mão das consoantes mudas (Egipto vira Egito e objecto passa a objeto, como no Brasil), mas as conserva caso sejam pronunciadas (indemnizar e facto, por exemplo). O país mantém o som aberto na sílaba tônica seguida de m e n, como em prémio, económico, António e género, enquanto o Brasil escreverá esses vocábulos da maneira a que estamos habituados: prêmio, econômico, Antônio e gênero.
Esse parágrafo deixa clara a ilusão embutida na reforma: as palavras de dupla grafia superam as 2 mil e fazem parte, na quase totalidade, do universo das cerca de 10 mil utilizadas (com algum exagero) na linguagem jornalística ou técnica, por exemplo.
Veja abaixo algumas das principais modificações previstas pela reforma:
Alfabeto. O k, o w e o y voltam a fazer parte do alfabeto.
Dupla grafia. Portugal mantém o acento agudo no e e no o tônicos que antecedem m ou n, enquanto o Brasil continua a usar circunflexo nessas palavras: académico/acadêmico, génio/gênio, fenómeno/fenômeno, bónus/bônus.
Letras mudas. Como principal concessão ao acordo, Portugal elimina as consoantes não pronunciadas: ação (em vez de acção), batizar (em vez de baptizar), direto (em vez de directo), adotar (em vez de adoptar), objeção (em vez de objecção). Se a letra for pronunciada, porém, poderá ser mantida, como em facto, sector, carácter, amnistia, sumptuoso. O idioma dos dois países diferirá ainda em formas como excecional e excepcional, conceção e concepção, perentório e peremptório, assunção e assumpção.
Trema. Desaparece no u pronunciado após g ou q: linguiça, aguentar, frequente, consequência. Persiste, porém, nas palavras derivadas de nomes estrangeiros: mülleriano (de Müller), hübneriano (de Hübner).
Acentuação. a) Extingue-se o acento nos ditongos éi e ói abertos das palavras paroxítonas (a sílaba forte é a penúltima): ideia (e não mais idéia), assembleia, apoia, joia. O acento se mantém quando o ditongo está na sílaba final e vem seguido ou não de s: fiéis, herói(s), corrói. Repare na confusão: herói conserva o acento e heróico o perde e se transforma em heroico. b) O acento diferencial permanece em pôde (para diferenciá-lo de pode, com som aberto) e pôr (por causa de por, preposição), e se torna opcional em fôrma. Desaparece, porém, nas outras palavras em que existia. Assim, pára (verbo), péla (verbo e substantivo), pélo (verbo), pêlo (cabelo), pêra e pólo passam a para, pela, pelo, pera e polo. c) As palavras terminadas em ôo, ôos e êem perdem o circunflexo: enjoo (e não mais enjôo), voos, creem (e não mais crêem), deem, leem e veem.
Hífen. a) Mantém-se nas palavras compostas: arco-íris, norte-americano, ano-luz. O sinal cai, contudo, em compostos nos quais ‘se perdeu a noção de composição’. E o projeto cita paraquedas e paraquedista (hoje, pára-quedas e pára-quedista). Será difícil descobrir quais são os demais. b) Na prefixação, existe hífen sempre antes de h: semi-hospitalar, geo-história, sub-hepático. c) Se o prefixo ou pseudoprefixo termina por vogal e o elemento seguinte começa por r ou s, duplica-se a consoante: contrarregra, extrarregular, antissemita, ultrassonografia. d) Se o prefixo termina por vogal igual à vogal inicial do segundo elemento, existe hífen: anti-inflacionário, micro-onda, mega-ação, arqui-inimigo, contra-almirante, auto-ônibus. e) Se as vogais finais e iniciais forem diferentes, não haverá hífen: antieconômico, extraescolar, autoaprendizado, contraindicado, intraocular. f) Hiper, inter e super têm hífen antes de outro elemento iniciado por r: hiper-reativo, inter-relacionado, super-resistente. g) Circum e pan têm hífen antes de elemento iniciado por vogal, m, n e h: circum-escolar, circum-hospitalar, circum-murado, circum-navegação; pan-africano, pan-helênico, pan-mágico, pan-negritude. h) Ex e vice e os pouco usados sota, soto e vizo mantêm o hífen existente hoje: ex-presidente, ex-marido, vice-prefeito, vice-diretor, sota-piloto, soto-mestre, vizo-rei. i) Como atualmente, pós, pré e pró ligam-se com hífen a um segundo elemento ‘que tenha vida à parte’: pós-graduação, pós-tônico, pré-escolar, pré-natal, pró-africano, pró-europeu. j) O texto assinala a inexistência de hífen nas locuções e cita expressamente: cão de guarda, fim de semana e cor de café, entre outras.’
Deonísio da Silva
‘A viagem dos magos’, copyright Jornal do Brasil, 3/01/05
‘Ouro, incenso e mirra, esses foram os três presentes que os magos levaram ao Menino Jesus. Os magos não eram três e não eram reis. E provavelmente jamais existiram, mas têm nomes: Baltasar, Gaspar e Melquior. Suas fisionomias lembram as três etnias da humanidade conhecidas na época em que a lenda se formou.
Seus ossos, trazidos de Constantinopla para Milão no século V, ali ficaram até 1164, quando foram levados para a Alemanha. Hoje repousam num dos altares da catedral de Colônia.
De acordo com os Evangelhos de Lucas e Mateus, os únicos a descreverem as circunstâncias que presidiram ao nascimento e à infância de Jesus, ele nasceu saudável e ‘cresceu em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens’.
Mirra, palavra de origem semítica, fez escala no grego ‘mýrrha’ e no latim ‘myrra’, designando resina extraída de árvores originárias da África, utilizada na fabricação de perfumes e ungüentos. Com o tempo, devido ao fato de a mirra ser utilizada no embalsamento de cadáveres, formou-se no português o verbo mirrar, com o sentido de definhar, ganhar a aparência de defunto.
O outro presente foi ouro, do latim ‘aurum’, ouro, radicado em ‘aur’, palavra pré-romana que já designava o metal precioso. O gramático latino Sextus Pompeius Festus, que viveu no século I, já registra a forma popular ‘orum’, praticada pelos funcionários do Império Romano em suas províncias, inclusive em Portugal e na Espanha. Isso explica que em português seja ‘ouro’, em espanhol ‘oro’, em francês ‘or’, em italiano ‘oro’. Apenas o latim clássico conservou a inicial ‘a’. Todas as línguas-filhas apoiaram-se no latim coloquial.
Diz o Evangelho de São Mateus: ‘entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe; prostrando-se, o adoraram; e, abrindo seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra’. Nenhum dos outros três evangelistas registra o episódio.
Incenso veio do latim ‘incensum’, queimado, do verbo ‘incendere’, queimar, raiz do português ‘incendiar’, mas passou a designar substância resinosa aromática que, ao ser queimada, primeiramente em sacrifícios religiosos e mais tarde em cerimônias litúrgicas, ensejou significado específico a partir do odor penetrante que exala.
Reisado é palavra que se formou a partir de reis, plural de rei, do latim ‘rex’, mais sufixo ‘ado’. No Brasil designa dança dramática popular com que se festeja a véspera e o dia de reis, 6 de janeiro. Os reis em questão são os do presépio, numerados, nomeados e canonizados pela tradição cristã.
A celebração dos reis do presépio já era muito popular na Europa quando os portugueses trouxeram esse costume religioso para o Brasil. Na Península Ibérica ainda vigora o costume, consistindo de visitas a amigos e parentes. Pode ser espontânea ou formada por grupos organizados e vestidos com roupas que lembram as vestes do reis magos, cujas imagens o rei Dom José I enviou ao Brasil em 1752 e que estão hoje no Forte dos Reis Magos, em Natal, segundo nos informa Luís da Câmara Cascudo em seu Dicionário do folclore brasileiro.
Os magos viajaram de camelo, que em árabe é ‘jamal’. Predominou, entretanto, a forma grega ‘kamélos’, que resultou no latim ‘camelus’, de onde veio para o português. Animal indispensável aos povos do deserto, capaz de ficar oito dias sem beber, graças a seu reservatório natural, tem duas corcovas. Diz um samba, criado na Imperatriz Leopoldinense: ‘Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube… lá no Ceará’.
Os dicionários ainda não registram o verbo camelar, sinônimo de trabalhar muito.’
CÃES DE GUARDA
‘Obra promove um mergulho nos porões da imprensa’, copyright O Globo, 1/01/05
‘Cães de guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir. Boitempo Editorial, 408 pgs. R$ 45
Um episódio nunca me saiu da memória. Aos 18 anos, estagiário há apenas três semanas na reportagem policial do ‘Diário de Notícias’, recebo a missão de cobrir o julgamento de um padre enquadrado na Lei de Segurança Nacional sob a acusação de incitar moradores de uma favela a se rebelar contra uma ordem de remoção. Surpreso, pergunto ao chefe de reportagem por que o padre agira daquela forma. A resposta vem com a convicção que só certos chefes costumam demonstrar: ‘Ora, porque é comunista’.
O ano é 1972 e o general que comanda a presidência, Garrastazu Médici. Tempos obscuros que a História tem-se esforçado para devolver à memória nacional. ‘Cães de guarda – Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988’, da historiadora Beatriz Kushnir, realiza um mergulho neste passado recente, recuperando nomes, episódios, decretos e desenterrando espíritos que gostariam de continuar no limbo do esquecimento.
O livro de Beatriz, extraído de sua tese de doutorado em História na Universidade de Campinas (Unicamp), esmiúça a ação de jornais e jornalistas em cargos de chefia e o envolvimento de empresários com o regime militar. Põe o dedo em feridas que permanecem abertas e, por isso, causa desconforto a muita gente. Incomoda como os historiadores franceses que pesquisam o comportamento dos colaboracionistas na França ocupada pelos nazistas. Lá como cá, os manuais de boa conduta recomendam que se enalteça a bravura dos maquis na luta de resistência.
A autora se propõe a descer aos porões da consciência profissional de jornalistas e empresários de comunicação. Analisa matérias e editoriais do tablóide vespertino ‘Folha da Tarde’, do grupo ‘Folha da Manhã’, e o envolvimento de alguns de seus diretores com a Operação Bandeirantes (Oban), grupo paramilitar que participava da repressão à luta armada. Entrevista censores e mostra a rotina de trabalho desses servidores públicos. Lembra o concurso público realizado para censor, em 1977, que atraiu cinco mil candidatos. A demanda foi tamanha que a sempre atenta Faculdade Estácio de Sá abriu um curso preparatório, no Rio de Janeiro, para os candidatos a censor. As relações entre os secretários de redação e os portadores de tesoura e caneta vermelha assumiam um tom cordial e, às vezes, descambavam para lances prosaicos. ‘Assim vou perder meu emprego’, argumentou certa vez a censora Marina de Almeida Brum Duarte aos editores de ‘O Pasquim’, um dos semanários sob censura prévia.
O fato de ser historiadora facilita a investigação, embora por vezes a narrativa se abstenha de esclarecer que nem todas as pessoas citadas tomavam parte naquele imbroglio político. Os documentos contidos no livro ensinam às novas gerações que segmentos significativos da classe média apoiaram o golpe e boa parte da ditadura.
Após o mergulho nesses tempos sombrios, Beatriz tira suas conclusões sobre os profissionais da ‘Folha da Tarde’: ‘Os homens e mulheres que lá trabalharam (…) viveram a força do arbítrio não só nas prisões e mortes relatadas mas também naquelas sentidas na própria pele. Muitos também fizeram um pacto com os agentes da repressão. A trajetória da ‘Folha da Tarde’ espelha tanto as rupturas e mudanças no panorama brasileiro, como os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se adaptar aos percalços e às efervescências políticas daquele período’.
A análise poderia servir para a maioria dos grandes jornais brasileiros que se mantiveram em silêncio durante o regime militar. Há uma frase conhecida no meio jornalístico segundo a qual um jornal começa a morrer dez anos antes de seu fechamento. No caso da ‘Folha da Tarde’, visto nos anos 70 como o ‘Diário Oficial da Operação Bandeirantes’, nas palavras do veterano repórter Percival de Souza, é curioso que as rotativas tenham parado de rodá-lo em 1999, exatos 20 anos após a Lei de Anistia e dez anos depois da primeira eleição direta para presidente da República desde o golpe de 1 de abril de 1964. A esperança é de que aquele raciocínio simplista do chefe de reportagem dos anos 70 tenha ficado sepultado de uma vez por todas, não apenas para explicar ações de ‘grupos comunistas’ da época, mas para entender as rivalidades políticas e ideológicas que dividem o mundo no limiar do século XXI. JOÃO BATISTA DE ABREU é jornalista, sociólogo e professor-adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense’