Quando foi lançado, há treze anos, o livro Notícias do Planalto teve repercussão extraordinária. Foi reimpresso duas vezes e chegou a vender mais de 70 mil exemplares, número consideravelmente elevado para o mercado editorial brasileiro. Num país com poucas publicações recentes de peso sobre a imprensa, tornou-se, quase automaticamente, uma das obras mais importantes do jornalismo da segunda metade do século XX, ao lado de A Regra do Jogo, de Cláudio Abramo; Minha Razão de Viver, de Samuel Wainer; Chatô, de Fernando Morais.
Ao contrário dessas obras, dedicadas a um personagem, Notícias do Planalto mostrava a evolução e o panorama da imprensa no momento, o funcionamento das redações e as relações com o poder – neste caso, a ascensão e derrocada de Fernando Collor de Mello. Foi inspirado em The Powers That Be, de David Halberstam, hoje uma obra clássica sobre quatro dos principais órgãos da imprensa americana, cuja estrutura Mario Sergio Conti seguiu.
Poucos livros receberam espaço tão generoso na imprensa e levantaram tanta polêmica, o que pode ser explicado pelo narcisismo da profissão e pelo tom crítico da obra. Na Fleet Street, a antiga rua da imprensa londrina, um velho ditado dizia que “cachorro não come cachorro”, numa referência ao hábito de não mencionar certas práticas dos jornais e, principalmente, de seus donos, num acordo tácito de autopreservação. Conti não seguiu essa tradição e mordeu com indisfarçável prazer muitas canelas expostas, mostrando as relações promíscuas de jornalistas e donos de empresas jornalísticas com políticos e figuras das altas esferas públicas, e uma intimidade nos contatos que é, no mínimo, pouco saudável. Seu livro, recheado de informações reveladoras sobre a prática do jornalismo, evitando o tom de denúncia, foi considerado uma verdadeira “CPI da imprensa”. Passou a percepção de que jornais e revistas, por afobação e incompetência, talvez com a única exceção da Folha de S. Paulo, compraram, sem verificar, as histórias do “caçador de marajás” e ajudaram a construir uma imagem sem base na realidade, para depois mostrarem empenho semelhante em desfazê-la.
Espaço em branco
Não faltaram críticas. Conti respondeu à acusação de que teria sido simpático aos patrões e hostil aos jornalistas, dizendo que o apoio a Collor não foi uma decisão imposta pelos donos da imprensa. Também foi escrito que alguns jornalistas teriam sido apresentados com menos destaque do que acreditavam merecer em episódios em que o autor aparece com mais realce – uma observação que pode ser o lamento de egos machucados.
Mais séria foi a crítica de que o autor fez descrições preconceituosas contra e a favor. Isto é, que teria usado o livro para acertar algumas contas. Segundo Conti reconheceria anos mais tarde: “Também disseram que protegi amigos e fui mais duro com outros. É claro que o livro não é totalmente isento, isso não existe”. E disse que tentou “manter uma equidistância” que alguns leitores não encontraram no livro. Afirma que não emitiu opiniões e deixou que o leitor analisasse e chegasse a conclusões. Mas, na seleção e narrativa de certos episódios que envolvem jornalistas, predispôs o leitor de maneira favorável a respeito dos “amigos” e desfavorável sobre os “outros”; se a escolha dos eventos tivesse sido outra, o leitor talvez chegasse a conclusões diferentes.
A segunda edição de Notícias do Planalto, em formato econômico, que fora anunciada há três anos, finalmente foi publicada. Permitirá o acesso a uma nova geração de leitores. Mas, comparada com a expectativa, plenamente justificada, da primeira edição, esta desaponta a quem esperava uma atualização das informações. Nos 20 anos posteriores ao governo Collor, houve importantes mudanças na imprensa e, certamente, em suas relações com o poder. A nova edição não cuida delas ou passa muito rapidamente por cima, o que deve ser lamentado por quem se interessa pela imprensa, pela política e pelas suas interações. Conti manteve o texto da edição original, “afora a correção silenciosa de erros, o corte de algumas sentenças verbosas e o acréscimo de notas de rodapé”, e foram eliminadas as ilustrações para baratear o custo. Foi, também, acrescida de um posfácio.
A leitura da nova edição indica que a correção silenciosa dos erros não foi suficiente, pois ainda sobrou um bom número. O livro afirma que, no início das mudanças do Jornal do Brasil, nos anos 1950, a proprietária, condessa Pereira Carneiro, foi a Londres para conversar com os diretores do The Times, “que anos antes haviam tirado os classificados da primeira página”. Na verdade, The Times só tiraria os anúncios da primeira página em maio de 1966, vários anos depois, não antes, do JB, que a partir de junho de 1959 só manteve na primeira alguns anúncios em forma de L. O mineiro Binômio não era humorístico, mas um semanário predominantemente político, fechado depois do golpe de 1964. O Globo foi fundado em julho de 1925, não em 1926. Foi com Merval Pereira, não com Evandro Carlos de Andrade, o famoso diálogo em que Roberto Marinho pediu a opinião sobre um artigo seu e quando o interlocutor perguntou se podia falar com franqueza, Marinho aconselhou: “Mais ou menos”. Octaviano Alves de Lima e conde Francisco Matarazzo não compraram juntos a Folha. Lima a comprou em 1931 e a vendeu em 1945 a um grupo do qual Matarazzo participava. A Folha da Tarde não anunciou um dia antes a morte de Eduardo Leite, o Bacuri, nem de Joaquim Alencar de Seixas, pela polícia; a FT tornara-se uma espécie de porta-voz das forças da repressão, mas nesses dois casos deu a notícia no mesmo dia que os outros jornais.
Cláudio Abramo não foi afastado da direção da Folha de S. Paulo em 1972 e mantido como colaborador; foi promovido a diretor nessa ocasião, mas sem comando direto sobre a redação. Ao afirmar que “os lucros provenientes da propaganda do governo federal não chegavam a 3% da renda publicitária da Rede Globo, da Folha e de Veja”, está confundindo, talvez para não repetir a palavra, lucro com receita. Quem propôs publicar em branco o espaço da coluna de Lourenço Diaféria na Folha, no episódio que levou ao afastamento de Cláudio Abramo em 1977, foi Ruy Lopes, diretor da sucursal de Brasília, não Carlos Caldeira Filho, um dos proprietários, embora este a apoiasse com veemência. Etcetera. Mas são erros menores, que não afetam a linha geral da obra.
Imprensa marrom
Quanto às sentenças verbosas, realmente, ficaram poucas. Na verdade, na primeira edição não eram excessivas; o livro era, e continua sendo, bem escrito e fluente. Notas de rodapé, só há uma, corrigindo informação errada sobre o comício das Diretas Já, na Praça da Sé de São Paulo, em 1984.
O posfácio da nova edição dá atenção especial aos “jovens repórteres que expuseram o governo de Fernando Collor”, que em sua maioria abandonaram a imprensa. Seu “denominador comum”, afirma, foi terem ido trabalhar em empresas que se dedicam a atender políticos profissionais, homens de negócio e instituições; agora são assessores de comunicação, relações públicas e publicitários. “Gerem gabinetes de crise contratados por gente de bens denunciada nos órgãos de imprensa nos quais antes trabalhavam. Quem antes apontava a dissonância entre o marketing e a realidade é hoje marqueteiro.” Conti menciona ex-repórteres que no passado publicavam denúncias e passaram a dar suporte a Roseana Sarney, Carlos Cachoeira, João Paulo Cunha, Ricardo Teixeira, Fernando Cavendish, Renan Calheiros, Daniel Dantas; outros entraram na propaganda política. Poucos adjetivos, mas é perceptível um tom de desaprovação.
O posfácio, porém, não diz o que aconteceu com outros repórteres, como Elvira Lobato ou Clovis Rossi, precisamente os que expuseram a farsa do “caçador de marajás”. Ou Etevaldo Dias, que aderiu a Collor. Ou Expedito Filho ou Ricardo Noblat. Se o tivesse feito, a abertura do posfácio, ao dizer que o “denominador comum” dos repórteres que contribuíram para a queda de Collor foi trabalhar como assessores, perderia força. Só alguns foram.
Se muitos repórteres experientes procuraram outras atividades, um fator determinante foi, sem dúvida, a profunda crise da imprensa no começo da década passada – a pior em mais de meio século, provocada em boa parte por inépcia empresarial –, que dizimou as redações. Quem procurar hoje em jornais e revistas os grandes repórteres da era Collor, encontrará poucos deles. Os primeiros alvos dos cortes nas folhas de pagamento foram precisamente os jornalistas com mais experiência e com os salários mais altos. A mudança de atividade ou de profissão nem sempre foi escolha deles, mas uma alternativa ao desemprego.
Nas páginas finais do posfácio, talvez as de leitura mais interessante e provocante, Conti revela uma visão pessimista da situação da imprensa. Observa que a “internet torna problemáticas a periodicidade e a identidade, pilares da manifestação jornalística, debilitando a sua confiabilidade”, e que a disputa da primazia pelo material inédito leva ao meramente ruidoso, quando não bizarro. Os órgãos de imprensa romperam seus ciclos diário, semanal ou mensal e, ao render-se ao ciclo contínuo, comportam-se como agências noticiosas e afrouxam os critérios de edição, com uma hierarquia conturbada. Os “sites” jornalísticos, diz, estão mais parecidos entre si do que os periódicos que lhes deram origem.
A abertura de espaço para a manifestação dos leitores, que já foi positiva, desandou na veiculação de comentários anônimos e mesmo criminosos. O resultado é um ambiente de Fla-Flu, prenhe de má-fé, insuflado por blogueiros linchadores ou a soldo de facções políticas e empresariais. Conti conclui que a internet é o futuro, mas, nesse aspecto, a regressão a esquemas de imprensa marrom é flagrante.
Análise de qualidade
Conti também afirma que o colunismo se disseminou na imprensa e mostra como, em contagem recente, a Folha dispunha de 113 colunistas. Se propicia mais diversidade e reforça o jornal, o colunista sai mais barato e tira o espaço do repórter, que precisa procurar fontes, entrevistar, viajar, pesquisar, editar; para escrever uma coluna basta um computador. Mais comentário, menos informação. Além disso, o colunismo enfraquece a própria voz da publicação. Conti observa que os grandes jornais internacionais não têm dezenas de colunistas, como os brasileiros.
Essa colocação lembra a famosa frase de C. P. Scott, o lendário editor e proprietário do então Manchester Guardian: “Comment is free but facts are sacred” (“a opinião é livre mas os fatos são sagrados”), que deu origem a um trocadilho, amplamente disseminado na Fleet Street, com a palavra “free” em inglês, que também significa grátis: “A opinião é grátis, mas os fatos são caros”. Lá como cá, sai mais barato trocar o repórter, caro, pelo colunista, mais barato.
A preocupação de Conti com o futuro da mídia não deixa de ter fundamento. Estamos ainda no início de uma revolução provocada pela internet e nada impede que os órgãos de imprensa a aproveitem para transferir a suas versões digitais as características de precisão, seriedade e confiabilidade das versões impressas. Existe crescente procura, que a internet não eliminou, pela informação e, principalmente, pela análise de qualidade que os grandes jornais e revistas conseguem produzir. Cabe a eles adaptar-se aos novos tempos.
Leia também
Jornalismo, o estado da arte – Alberto Dines
Notícias do Planalto, 13 anos depois – Lilia Diniz
Escândalos da República 1.2 – Mario Sergio Conti
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]