Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os limites da linguagem, do mundo e da imprensa

A imprensa não se interessou ou, em alguns casos, sequer conseguiu
identificar na edição de 10 de janeiro da revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences
(PNAS)
uma pauta relacionada a um dos temas mais importantes do
pensamento do século 20: a nossa linguagem afeta nossa percepção do mundo?


O assunto foi profundamente investigado no âmbito da filosofia da linguagem
pelo austríaco Ludwig
Wittgenstein
(1889-1951) na primeira metade do século 20. Sua
abordagem inicial sobre esse tema foi apresentada em seu livro Tractatus
Logico-Philosophicus
, de 1922, no qual ele apresentou sua instigante
proposição 5.6: ‘Os limites de minha linguagem significam os limites de meu
mundo’.


No âmbito prático da ciência, mais especificamente na lingüística, em conexão
com a psicologia e a etnologia, esse mesmo tema tem sido abordado por meio da
chamada hipótese de Whorf, também conhecida como hipótese de Sapir-Whorf.
Apresentada inicialmente em 1921 por Edward
Sapir
(1884-1939) e reformulada por Benjamin Lee
Whorf
(1897-1941), ela afirma que cada uma das diferentes
culturas humanas tem seu próprio universo mental, o qual, por sua vez é expresso
e, portanto, condicionado por sua língua. A idéia dessa íntima relação entre, de
um lado, os planos da cultura e do pensamento e, de outro lado, o plano da
linguagem – para muitos, uma determinação – consiste no chamado relativismo
lingüístico.


A novidade sobre esse assunto é um reforço parcial da hipótese de
Sapir-Whorf: a conclusão de que ela é válida para o nosso campo visual direito.
Essa avaliação é resultado de um estudo que, segundo seus autores, seria o
primeiro a verificar a validade da proposição dos dois célebres lingüistas com
base na organização das funções das regiões do cérebro.


A pesquisa foi coordenada por Aubrey Gilbert, pós-graduanda do Instituto de
Neurociência Hellen Wills, ligado aos departamentos de psicologia e de
linguística da Universidade da Califórnia em Berkeley. A caloura, idealizadora
do empreendimento, trabalhou com o apoio de pesquisadores sênior: Terry Regier,
professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Chicago; Paul Kay,
do Instituto Internacional de Ciência da Computação, em Berkeley, um veterano
peso-pesado da pesquisa lingüística; e Richard Ivry, professor do Departamento
de Psicologia de Berkeley e diretor do Instituto de Ciências Cognitivas e do
Cérebro, na mesma universidade.


Pauta que faltou


A idéia-chave de Gilbert foi a existência em muitos idiomas, como o inglês,
de palavras distintas para denotar cores diferentes, como o azul e o verde, em
comparação com idiomas que têm um único termo relativo a todas as variações de
tonalidade dessas duas cores, como a língua indígena mexicana tarahumara.
Dispositivos especialmente preparados com variações de cores em imagens foram
usados para estabelecer relações entre percepção visual e interferências do
idioma.


Jornalistas que cobrem ciência não podem reclamar que a divulgação dessa
pesquisa tenha sido restrita ou hermética. O press-release Words
help determine what we see
, preparado por William Harms, da Universidade
de Chicago, com e-mails e telefone de contato, foi distribuído pela rede Eurekalert!, da American Association for the Advancement of the
Science (AAAS)
. O texto integral do paper, com indicação de
e-mails de Gilbert e de Regier, está disponível na web. [Gilbert, A.L., Regier,
T., Kay, P. & Ivry, R.B. (2006) Whorf hypothesis is
supported in the right visual field but not the left
, Proceedings of
the National Academy of Sciences
, USA, 103, 489-494]


O que com certeza mais prejudicou para emplacar na mídia esse estudo, que diz
respeito a uma das questões mais importantes da filosofia no século 20, foi
principalmente a falta de algum clichê em que ele pudesse ser enquadrado. Se
isso fosse possível, daria para conseguir – ou pelo menos se atrever – a
vendê-lo como pauta às instâncias de decisão editorial. Afinal, como rezam cada
vez mais as balizas decisórias da indústria cultural, o público-alvo precisa
fazer um esforço de compreensão homérico. E ‘homérico’ aqui pode se referir
tanto ao historiador grego Homero como ao personagem Homer
Simpson
.


Acrescente-se a isso o efeito da corda na casa de enforcado: trata-se de uma
profissão que tem uma auto-imagem de guardiã do interesse público, mas que tem
impulsionado a simplificação e o enxugamento crescente da linguagem, construindo
uma versão light da Novilíngua (Newspeak) de George Orwell
(1903-1950)
em seu 1984, inspirado, por sua vez, no livro
Nós, do dissidente soviético Yevgeny Zamyatin
(1884-1937),
que sentiu na pele os rumos de uma versão mais tosca desse
empreendimento destinado a reduzir o universo da linguagem, da qual dependem a
reflexão e a crítica.


E nada teria a ver com essa auto-imagem uma pauta com base na hipótese de
Sapir-Whorf ou na proposição wittggensteiniana ‘Os limites de minha linguagem
significam os limites de meu mundo’ (‘Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die
Grenzen meiner Welt’
) [Ludwig Wittgenstein, Tractatus
Logico-Philosophicus
(edição bilíngüe traduzida para o espanhol por Enrique
Tierno Galván). Alianza Editorial. Madrid. 1985, pág. 162]. (Postado em
2/2/2006)

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Jornalista, editor do blog Laudas Críticas