Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um belo furo e o feio papel de quem não o deu

Não é todo dia, nem todo mês, nem todo ano que se encontra numa coluna assinada na grande imprensa brasileira qualquer coisa parecida com o que escreveu no Valor da terça-feira da semana passada o repórter especial Cristiano Romero.

Cristiano já foi correspondente em Washington. Ali deve ter se fartado de ler os comentários ao mesmo tempo contundentes e informativos que costumam sair nas páginas de Opinião dos mais respeitados jornais americanos – não raro com ataques diretos a figurões de governos.

Inspirado quem sabe nesse gênero de texto corrosivo, que é uma das glórias do bom jornalismo quando cada golpe desfechado por quem o assina tem o respaldo de fatos comprováveis, Cristiano produziu uma peça devastadora sobre o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães.

Sob o título ‘Muito além da diplomacia’, ele sustenta que o segundo homem do Ministério de Relações Exteriores ‘está infernizando’ a vida dos diplomatas brasileiros.

Fica-se sabendo de coisas de espantar. Nas palavras de Cristiano:

‘Samuel tem fixação por pequenezas. Além de distribuir a subordinados bilhetinhos (com cópia carbono) em que anota a tarefa delegada, ele tem patrocinado outras esquisitices. A mais patética: quando um diplomata muda de posto, tem que antes dar um pulo em Brasília para ler um livro, geralmente de economia, fichá-lo e entregá-lo ao secretário-geral’.

Mas não é só de esquisitices que se ocupa a coluna. O jornalista acusa Guimarães ‘e uma turma do BNDES, liderada por Darc Costa, vice-presidente do banco’ de terem criado uma situação ‘que pode terminar em vexame diplomático para Lula’ – e conta por quê.

O mais importante de tudo é outra coisa ainda. ‘Sem consultar ninguém’, revela o repórter, ‘o secretário-geral está preparando uma profunda reforma na carreira’, explicando em seguida do que se trata.

E como se trata de coisa séria, O Estado de S.Paulo, que tem horror a Guimarães por suas posições nacionalistas em geral e por sua militante oposição à Alca em especial, mais do que depressa foi atrás do furo de Cristiano.

‘Mudanças beneficiam ‘engajados’ no Itamaraty’, mancheteou no dia seguinte o jornal em matéria de meia página, com o subtítulo um tanto alarmista ‘Novas regras para a carreira diplomática podem comprometer prestígio no exterior’.

De autoria da repórter diplomática Denise Chrispim Marin, a matéria acrescenta novidades às da coluna. Como os títulos dos livros que os diplomatas em trânsito são obrigados a ler – um deles prefaciado pelo próprio Guimarães.

Em relação ao que interessa acima de tudo, o plano de reforma na carreira antecipado por Cristiano, a reportagem acrescenta que ‘a mudança conta com o aval do Palácio do Planalto e com as bênçãos do chanceler Celso Amorim’.

Pena – e ponha pena nisso – que só na matéria seguinte, ‘Embaixador é mais temido que o próprio Amorim’, a repórter tenha se lembrado de aludir ao furo — ainda assim de maneira oblíqua e sem citar o nome do colega que o deu.

‘Ontem, ao ver essa suspeita [a de que Lula escolheu Guimarães antes mesmo de escolher Amorim] estampada no jornal Valor Econômico, o Itamaraty tentou apagar o incêndio’, foi a esquiva saída encontrada pelo Estadão. Editorial, na edição de sábado, cita o Valor limpamente.

Enfim, ao contrário de Cristiano, Denise não informou algo de que poucos leitores sabem e que, no contexto, há de ter a sua importância: Amorim e Guimarães são co-sogros.

A Folha de S.Paulo foi a última a chegar à história, um dia depois do seu concorrente paulistano. A matéria ‘Itamaraty quer estimular carreira na África’, antetitulada, palavrosamente, ‘Com mudanças, secretário-geral pretende incentivar cargo de diplomata onde há dificuldade de preenchimento de vaga’, chega a ser engraçada na sua tentativa de fingir que a imprensa ainda não tinha dado nada sobre o assunto.

O texto abre com a informação de que Amorim decidiu criar mais uma subsecretaria-geral no Itamaraty – o que não é propriamente de esbugalhar os olhos do leitor, nem tem coisa alguma a ver com o título.

Só no segundo parágrafo diz que a nova subsecretaria ‘faz parte de um pacote de profundas mudanças que o secretário-geral do Itamaraty…’.

Nenhum crédito ao jornalista ou ao jornal que primeiro anunciou a ‘profunda reforma’. Coisa feia.

[Texto fechado em 6/3/04, às 19h31]