Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A vil agressão, um ano depois

Quem fosse fazer um balanço objetivo do que aconteceu desde que, um ano atrás, Ronaldo Maiorana me agrediu, chegaria a um resultado de causar perplexidade: o agressor está livre e desimpedido, enquanto o agredido sustenta uma batalha judicial com 12 processos instaurados contra si pelo agressor e seu irmão, Romulo Maiorana Júnior. Como esse absurdo se tornou possível? A justiça continua a caber no retrato que dela fez Franz Kafka em O Processo?

Talvez seja necessário reavivar a memória dos cidadãos para o que aconteceu no dia 21 de janeiro de 2005. O advogado e empresário Ronaldo Maiorana, com 19 anos a menos do que eu, me agrediu por trás, sem me dar a menor condição de defesa. Estava acompanhado por um subtenente e um sargento da Polícia Militar, seus seguranças particulares. Depois de agredir com a cobertura dos dois capangas, me ameaçou de morte, aos gritos, diante de 150 pessoas aproximadamente, num restaurante sofisticado, que funciona nas dependências de um parque público, onde a Secretaria de Cultura do Estado tem sua sede. Fez, aconteceu e saiu incólume, sem a menor perturbação.

Na verdade, fizera o que planejara, para antes e depois da agressão. Não se importou com o escândalo que provocou, horrorizando pessoas de bem, cidadãos pacatos e civilizados, que procuram aquele local para se confraternizar. A opinião pública, razão de ser da principal empresa da qual o agressor é um dos donos, o Grupo Liberal (só no nome), não importa. Uma vez que os veículos do império de comunicação omitiriam o fato, ele não existiria. E, existindo, seria carregado pelo vento da desmemoria coletiva. Ou das conveniências cúmplices por parte daqueles que podiam ter se oposto à infâmia, a fim de que ela não ficasse impune.

Mas logo uma tese jurídica depravada foi inoculada na mente dos desavisados: Ronaldo Maiorana me agredira para vingar a honra de sua família, ultrajada por uma campanha sistemática e agressiva do Jornal Pessoal. Nessa paródia de mau gosto, que teve seu mais tonitruante eco nas dependências outrora mais nobres da OAB, inverteram-se os papéis: este nanico virou Golias e o mamute se travestiu em David.

Os Maiorana já não suportavam os efeitos devastadores da campanha do Jornal Pessoal, que atingem todo o Estado, o país e o exterior (naturalmente, em função de sua parceria com a Rede Globo de Televisão). No desespero, o mais jovem dos Maiorana cometeu o ato fatal, em relação ao qual, conforme sentencia o presidente paroquial da Ordem, ninguém tem nada a ver. Afinal, trata-se de rixa familiar, a ser resolvida no braço e na faca. Quem dá mais tratos à inteligência que se arranje. Ou se lixe, literalmente, entre mesa, cadeiras, talheres e o chão sobre o qual foi atirado.

O vinho e o vinagre

A história seria cômica não fosse, antes de tudo, trágica. O pior da sua dramaticidade está em que, pela omissão e conivência dos que se deviam investir na função de defensores da verdade e da decência, pode, como as mil mentiras de Goebbels, o chefe da propaganda nazista, se transmutar naquele tipo de verdade difusa que, mesmo sendo inverossímil, torna-se crível. O que era circunscrito aos estritos limites da ‘rixa familiar’ virou patologia social.

Já vimos a reconstituição literária do fenômeno. Vou dar um só exemplo, talvez o mais doce que posso dar: o romance Jean-Christophe, do pacifista Romain Rolland. Com sua narrativa límpida e precisa, o autor vai juntando as peças de um quebra-cabeça irracional, que acaba por se afirmar. Ele é a bestialidade e a brutalidade, mas esse crescendo de animalidade foi tão progressivo que parece ser natural. Os homens de bem – e, sobretudo, o homem comum – só se apercebem do mal quando ele já se estabeleceu. É o que, metaforicamente, explica o nazismo para os alemães, um povo de gênios (Bach, Mozart, Beethoven) que se curvou à irracionalidade.

Qualquer pessoa que reconstituir as origens e os passos constitutivos do antagonismo entre o Jornal Pessoal e o Grupo Liberal, a partir da minha saída da empresa, da fundação do JP e da sucessão de 17 processos contra mim propostos perante a justiça por três dos oito integrantes da família, não terá dificuldade alguma para desfazer a versão tendenciosa apresentada pela dupla ‘Rominho’ e Ronaldo.

Nossas divergências não são de hoje nem surgiram depois que deixei o Grupo Liberal. Já tinha muitas delas quando o fundador do império ainda estava vivo. Em duas ocasiões o rompimento foi inevitável. Na primeira, Romulo Maiorana me levou de volta para sua empresa. Na segunda, não pôde repetir o gesto porque morreu antes. Quem testemunhou sobre sua intenção foi a própria esposa. Mesmo que nossos caminhos não voltassem a se cruzar, Romulo jamais me processaria, como fizeram seus filhos. A confirmação é, novamente, da mulher e legatária. Logo, nesse aspecto, seus sucessores não foram fiéis à herança.

Talvez não tenham podido ser, haveria de dizer um advogado de acusação (a mim, claro). O motivo? Ressentido, invejoso ou qualquer outro sentimento ruim que me atribuam, eu teria me tornado mais agressivo. Em parte, isso é verdade. Mas a radicalização não se deve a meus maus bofes: ela acompanhou a medida do desprezo pela opinião pública dos veículos do Grupo Liberal sob o comando dos sucessores, sobretudo do principal executivo da empresa depois do pai, Romulo Júnior.

Romulo pai se cercava de representantes dos vários segmentos da sociedade, que ouvia antes de tomar uma decisão mais grave ou conseqüente. Fazia seu comércio e seu jogo de pressão, mas mantinha a marca jornalística do seu negócio. Por isso o seu jornal era mais eclético e democrático. Por isso ele se curvava a certas contingências, quando eliminá-las implicaria acabar com a própria razão de ser da sua empresa, que é o jornalismo, traduzido na divulgação dos fatos.

Os filhos acham que sua vontade tem força de lei. Podem revogar a anterior com uma nova vontade. Não se vexam de um dia criticar com crueza a Companhia Vale do Rio Doce, arrastando opiniões para uma campanha sistemática contra a empresa, e no dia seguinte abrir tapete vermelho para ela, sem qualquer rito argumentativo de passagem. Num dia o jornal abriga matérias de denúncia contra a direção do Banco da Amazônia e no outro dia a instituição se torna celestial. A mesma alquimia é usada contra a Rede/Celpa: vinagre num dia, vinho no outro.

Trópicos hostis

A pedra de toque da mutação é o movimento do caixa registrando publicidade. Como a empresa não dá guarida à mais leve suspeição sobre a honorabilidade dessa movimentação volúvel, quem mata a cobra e mostra o pau comete ato de lesa-majestade. Esse tem sido o crime permanente do Jornal Pessoal: revelar o motivo que inspirou a alteração do humor dos donos da comunicação no Pará, que, em hipertrofia de poder, julgam-se também os donos do Estado, fiadores de qualquer decisão que lhes interesse. A coleção deste jornal está à disposição para comprovar o que aqui se diz.

Por que o JP tem dado combate maior a O Liberal do que ao Diário do Pará? Ora, porque O Liberal é muito mais poderoso. Numa época em que o dono do Diário era mais poderoso do que o seu próprio jornal, eu combati o governador Jader Barbalho. E pelas páginas de O Liberal, até um ponto em que o dono, Romulo Maiorana, em 1986, não suportou as pressões e me entregou numa bandeja, como um João Batista despido de santidade. Ele jogou a toalha. Eu apenas mudei de trincheira.

Desde então, o Grupo Liberal se tornou um poder como não fora antes e não houve nenhum depois, mesmo se se considera a história da Folha do Norte. De vez em quando, relendo a folha de Paulo Maranhão, me surpreendo com a publicação em suas páginas de artigos que atacam o jornal, seus aliados ou seus interesses. Como isso foi possível? Simples: o articulista pagou pela inserção. Uma vez faturada a matéria publicitária, Maranhão despejava suas setas de fogo verbal e começava (ou recomeçava) o fogaréu da polêmica.

Os veículos da segunda geração Maiorana se tornaram um cemitério de polêmicas, um reduto hostil a qualquer coisa que sugira restrição às verdades da casa, reais ou artificiais, constatadas no mundo ou geradas nos laboratórios internos. Esses Maiorana são autores de interditos proibitórios de aplicação que pretendem ampla, geral e irrestrita. A desobediência ao cânone da casa é punida no círculo do inferno de Dante (naturalmente, em versão condensada), destinado ao silêncio, ao frio, ao congelamento. Os réprobos são mortos em vida. Como o poderoso império pode tudo, os de espinha dorsal menos rija se curvam à sua vontade. Daí a falta de gramíneas do Grão-Pará.

Como não é este o caso do Jornal Pessoal, um ano depois da vil agressão vejo-me no papel do terrível e injusto ofensor, a ser punido por não ter cumprido a ordem real do agressor: de calar-me. Adaptando Descartes a estes trópicos hostis, teimo em acreditar numa nova divisa: falo, logo existo. Continuarei a existir. Ou, pelo menos, continuarei tentando existir.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)