Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As lições de uma experiência em crise

Uma das mais badaladas experiências de jornalismo cidadão nos Estados Unidos está com o seu futuro ameaçado porque o seu criador, o jornalista Dan Gillmor, abandonou o projeto após reconhecer uma série de erros conceituais e operacionais.

O site Bayosphere, criado no inicio de 2005, não conseguiu atrair um número considerável de participantes, conforme Gillmor admitiu num texto divulgado em 25 de janeiro, no qual ele reconhece que faltou uma visão mais realista da participação de pessoas comuns na coleta e publicação de notícias de interesse comunitário.

O projeto Bayosphere foi criado por Gillmor para materializar as idéias que ele esboçou em seu livro We The Media (Nós, a mídia), sobre as mudanças que a internet está provocando na forma pela qual a informação afeta a vida dos integrantes de uma comunidade.

O público-alvo escolhido foi o dos moradores na região da baía de São Francisco, na Califórnia, onde se concentra a maior parte dos intelectuais da internet norte-americana e que possui um altíssimo índice de uso da banda larga por habitante. A estratégia editorial era focar em temas sobre novas tecnologias e nos assuntos comunitários, com Gillmor funcionando como principal motivador e provocador.

O cenário parecia ideal para uma experiência pioneira de informação participativa a partir da base social de uma comunidade. Mas o projeto não decolou, o número de colaboradores não aumentou e, um ano depois, o balanço é melancólico e o Bayosphere corre o risco de entrar para o cemitério de belas idéias da internet contemporânea.

Medidas preventivas

Os textos produzidos a propósito da crise no projeto de Dan Gillmor são a primeira grande oportunidade para avaliar o que existe de fantasia e o que há de realidade no chamado jornalismo-cidadão, uma denominação ainda sujeita a muitos questionamentos.

A constatação mais imediata é de que os erros de Gillmor eram inevitáveis, dado que se trata uma experiência numa área absolutamente nova, onde o conhecimento ainda é basicamente empírico e fruto daquilo que os anglo-saxões chamam de wishful thinking (tomara que aconteça, numa tradução absolutamente livre). O utópico seria achar que tudo daria certo já na primeira tentativa.

A segunda constatação é a de que o jornalismo cidadão ou comunitário não é um fenômeno do tipo plug and play (liga e funciona), como se fosse um software ou hardware instalado num computador. É um processo social que envolve aprendizado; mudança de percepções, comportamentos e valores; e, principalmente, da motivação para participar – um elemento que está fora do controle de responsáveis por projetos como o Bayosphere.

Gillmor, a exemplo de muitos outros adeptos do jornalismo-cidadão, acabou contaminado por uma visão idealista da participação de pessoas comuns na arena da informação. A idéia predominante era a de que dando as ferramentas e a oportunidade, a participação cidadã seria imediata e colaborativa. Faltou a percepção de que o processo passava também por áreas como sociologia, psicologia e política, capazes de poder explicar determinados comportamentos humanos.

A visão idealista do Bayosphere, um fenômeno que também contamina outras experiências de jornalismo comunitário espalhadas pelo mundo, acabou transformando a tecnologia na principal preocupação do projeto. A plataforma operacional desenvolvida por Gillmor e seu parceiro Michael Goff falhou na hora de administrar problemas como a exigência de identificação detalhada dos colaboradores, a necessidade de interferir nos textos para evitar agressões e difamações, informações falsas etc.

As medidas preventivas complicaram a participação das pessoas menos familiarizadas com a tecnologia, que acabaram desistindo para não mais voltar. O que teoricamente deveria melhorar o relacionamento entre as pessoas, funcionou ao contrário.

Pasteurização informativa

‘As ferramentas tecnológicas são importantíssimas, mas elas não substituem o trabalho de desenvolvimento de uma comunidade’, admite Dan Gillmor, que agora acredita que o ‘trabalho comunitário é tão crucial num projeto de jornalismo cidadão quanto a escolha das ferramentas operacionais adequadas’.

O mea-culpa do criador do Bayosphere serviu de pretexto para que vários outros adeptos do jornalismo-cidadão passassem também a rever idéias e expectativas. Willian Luciw alinhou sete itens  que podem servir como lista de checagem em futuros projetos de jornalismo-cidadão, visando evitar a repetição dos erros de Gillmor.

O texto está em inglês, mas vale a pena lê-los para se ter uma idéia do que não foi pensado até agora. Um dos itens destacados por Luciw, um executivo empresarial, é a possibilidade de que a correção dos erros cometidos pelo o Bayosphere ‘recuperar a paixão no exercício do jornalismo depois que o sistema industrializado dos jornais reduziu os jornalistas a operários de uma linha de montagem’. Os leitores perceberam esta pasteurização informativa e, em países como os Estados Unidos, estão se distanciando da imprensa convencional.

Dan Gillmor faz mistério sobre o que acontecerá com o Bayosphere nos próximos meses. No entanto, ele já arranjou um novo emprego. Está desenvolvendo o Centro de Jornalismo Cidadão, apoiado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e pela Universidade Harvard. [Postado às 15h02 de 3/2/2006]

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Jornalista e autor do blog Código Aberto, deste OI