Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para compreender a decadência anunciada

O roteiro é conhecido: o menino pobre bom de bola se destaca e é revelado por um grande clube, vai para o exterior, começa a ganhar fortunas, vira celebridade… e desmorona. E a imprensa, essencial para promover a fama, é também indispensável na construção da trajetória da queda.

O noticiário recente sobre o jogador Adriano repete a fórmula adotada desde que ele surpreendeu a todos quando, em 2009, após participar de um amistoso pela seleção brasileira, não retornou ao clube italiano onde jogava, foi dado como sumido e, ao reaparecer, declarou que não estava feliz com a vida que levava. Cometeu o supremo pecado de desdenhar daquilo que todos são treinados para exaltar. Com uma agravante: assumia seu desejo de retornar às origens, o que, no caso, significava retornar à favela onde havia sido criado e onde tinha suas raízes. A imprensa caiu em cima (ver “Adriano, ou a honra de ser inseto“), abusando do duplo sentido sobre a hipótese de o jogador “dar um tempo na carreira” e destilando ironias para falar daquela afrontosa decisão de trocar Milão pela Vila Cruzeiro, especialmente estigmatizada por ter sido o local do suplício do jornalista Tim Lopes, alguns anos antes.

A Vila Cruzeiro situa-se no Complexo do Alemão, palco de alguns dos mais sangrentos confrontos entre policiais e traficantes até a ocupação da região pelo Exército, em 2010, a realização de obras do “Plano de Aceleração do Crescimento” e, mais recentemente, a instalação de UPPs – malgrado o noticiário sobre uma morte aqui e outra ali.

Three strikes and you’re out

A carreira, provavelmente, deveria ter sido encerrada naquele momento, mas um atleta tem contratos, não é dono de sua vontade. Adriano seguiu errante e, mesmo tendo participado da conquista de títulos (os campeonatos brasileiros de 2009 pelo Flamengo e de 2011, pelo Corinthians), nunca deixou de estar sob permanente suspeita. Fora de campo, recuperando-se de uma cirurgia, teve o contrato rescindido com o clube paulista depois de inúmeras faltas a sessões de fisioterapia. De volta ao Flamengo, aceitou proposta que previa seu desligamento caso faltasse três vezes.

Three strikes and you’re out: a regra do beisebol segundo a qual o jogador é expulso na terceira falta inspirou a lei penal californiana de fama internacional, pela qual o indivíduo que comete três vezes algum delito é retirado de circulação.

No Brasil, por sorte, não somos tão implacáveis.

Adriano faltou três vezes, os jornais deram o previsível destaque a cada uma das faltas, houve entrevistas coletivas com pedidos de desculpa e recomeçaram as recriminações contra a presença do jogador “na favela”, lugar da vida viciosa, incompatível com a disciplina exigida para um atleta. Apesar de ser motivo para o desligamento sumário, a terceira falta foi perdoada e o jogador continua no clube, sob a condição de se submeter a tratamento psicológico. (Não consta que forçar alguém a esse tipo de tratamento, como se fosse uma espécie de pena, possa surtir algum efeito, mas os jornais não deram muita importância a isso.)

Assumir o fracasso?

Semana passada, o diário Extra (4/10)falou em “síndrome de Cinderela” para dizer que o jogador teria dupla personalidade, e a metáfora da carruagem que vira abóbora não poderia se encaixar melhor nesse percurso de “recaídas” à Vila Cruzeiro, ainda que ao volante de seu Mercedes-Benz reluzente.

(É claro que um dos leitores deu outra interpretação a essa história de “Cinderela”. Não surpreende: a caixa de comentários nas páginas virtuais são o lugar onde a estupidez coletiva escondida atrás de pseudônimos se concentra e se reproduz, especialmente quando se trata de matérias sobre crimes ou futebol.)

No Globo (5/10), o colunista Joaquim Ferreira dos Santos, do “Segundo Caderno”, ocupou excepcionalmente espaço no suplemento de Esportes para recomendar:

“Vai pra casa, Adriano.

“Já nos basta, boleiros fanáticos, o espetáculo de mau gosto de ver um dos heróis pátrios, o ‘cebolinha’ Ronaldo, ser submetido ao circo midiático de ter a barriga medida em praça pública.

(…)

“Você é a história clássica do garoto pobre que venceu na vida pelo próprio esforço, e isso sensibiliza as multidões, que acompanham a novelinha em busca de um bom exemplo para suas vidas. Só que agora você virou o outro espetáculo que a todos também fascina, o lado sádico das multidões, de ver o herói sendo devorado pelos leões dos vícios, da preguiça e da loucura. Estamos fartos de gente como a gente, fraca, cheia de problemas. Lembra daquela música do Cazuza, a de que nos nossos heróis morreram de overdose? Pois, então, chega de derrota.

“Poupe-nos do mau gosto, toca o barco para a Vila Cruzeiro e dá um tempo nesse circo de horrores. Deixa o mico para o Ronaldo carregar sozinho” [ver íntegra abaixo].

Pobre Ronaldo, que começou a descer a ladeira com aquele episódio nunca devidamente esclarecido da convulsão que teria sofrido horas antes da final da Copa de 98, em que atuou apático, irreconhecível, e de todos foi o mais derrotado. E depois foi engordando, ganhou o apelido de Ronalducho, foi alvo de todo tipo de piada, ainda mais quando se envolveu com um trio de travestis supostamente confundidos com prostitutas, num motel da Barra da Tijuca.

Se fosse simples voltar para casa, Ronaldo também deveria seguir esse conselho. Não precisaria se submeter a esse ritual de humilhação pública, não fosse ele essa espécie de embaixador brasileiro da próxima Copa. A questão é que o circo midiático não funciona sem os seus personagens. E os efeitos dessa engrenagem costumam ser devastadores, como provam as crônicas de Hollywood desde os primórdios do cinema.

Saber parar é para poucos. Parar quando ainda se tem idade para prosseguir é praticamente impensável. Voltar para casa, depois de sucessivas derrotas, é assumir definitivamente o fracasso.

O grão da dúvida

Ao pé de outra matéria sobre Adriano, o Extra publica o comentário de um especialista que dá uma pista sobre a dificuldade de se compreender uma situação como esta, quando se associam problemas de ordem emocional a algo de ordem moral. Conclui dizendo que o descontrole demanda tratamento, o que pode ser visto como uma simplificação funcionalista: tratar o sujeito para que ele corresponda ao que se espera dele. Mas a rejeição à condenação moral de uma conduta desse tipo certamente abriria espaço para uma abordagem que lançasse alguma luz sobre a turbulência que se instala no espírito de quem muda repentinamente de uma vida de privações para o luxo extremo que o sistema proporciona.

Como parte do circo, jornais e TVs jamais deixarão de cumprir esse papel de oferecer o herói decaído ao gozo sádico da multidão. Mas podem também, ainda que perifericamente, tentar instalar algum grão de dúvida nessa avalanche, para os poucos que conseguem escapar ao comportamento de manada. Também Hollywood está cheia de exemplos que se debruçam sobre a engrenagem que ajuda a mover.

***

Meu caro Adriano,

Joaquim Ferreira dos santos # reproduzido de O Globo, 5/10/2012

Eu vou ser curto e grosso, como aquela jogada que você fez contra a Argentina numa Copa América de não sei quando, em que você matou a bola, deu uma virada e, num voleio curto, estufou o barbante dos hermanos, tudo isso com um espaço de nada. Claro, não tinha nada de grosso, grosso aqui é modo de dizer, como sinônimo de economia de espaço e falta de nhenhenhém. Vou usar o mesmo espaço que você tinha ali naquela área, um quase nada, para te dar o recado de irmão.

Vai pra casa, Adriano.

Já nos basta, boleiros fanáticos, o espetáculo de mau gosto de ver um dos heróis pátrios, o “cebolinha” Ronaldo, ser submetido ao circo midiático de ter a barriga medida em praça pública. Vai pra casa, Adriano, e faz a dublagem daquela música do Ivan Lins. Aquela do começar de novo, ter amanhecido, ter sobrevivido, e por aí afora. Chegou a hora de trocar o hino do Flamengo por outra música. Alguma coisa mais suave, menos guerreira. Chegou a hora de baixar as armas e inventar outra brincadeira.

Acabou, meu caro, não dá mais para matar os argentinos e nem sequer os zagueiros do Figueirense. A pança pesa, tem a maldita da cachaça e tem todos esses fantasmas que se instalaram no poço mais sombrio da tua memória, e de lá não tem balde que tire.

Sai daí, rápido, meu caro Adriano, e deixa esse papel ridículo de levar esporro do Zinho, de virar personagem de anedota de jornalista e ser exemplo para os pais caretas mostrarem aos filhos como um garoto não deve jogar a vida fora.

Por onde anda aquele iate que você tinha na Itália, onde ficaram os carrões e todas aquelas joias de bicheiro abonado que você carregava no peito? Sai de mansinho para algum canto do mundo com todos esses babilaques otários que te são caros, garoto pobre que precisa demonstrar ter dado a volta por cima. Pega tudo e foge para o ponto mais alto do morro da tua comunidade, se homizia sei lá onde, na Pasargada que escolheres, com todas as cachorras e estupefacientes que lhe forem necessárias à felicidade. Mas, bicho, desiste de jogar bola profissionalmente. Esconde esse espetáculo deprimente das crianças na sala.

Você não chegou a ser um herói nacional, pois naquela Copa de 2006 deu chabu do mesmo jeito que todo o time, mas ganhou um campeonato brasileiro no Flamengo e poderia ficar sempre na memória dos torcedores como um raçudo, forte pra burro, rompedor de ferrolhos. Poupe-nos, portanto, desse espetáculo circense de acompanhar o seu boletim, como se fosse uma criança na escola, para saber quantas faltas lhe carimbaram esta semana na caderneta. Dê-se ao respeito, Adriano, e vai viver em paz com suas desgraças pessoais, se lhe for de gosto, ou tentar curá-las, na privacidade dos consultórios.

Você é a história clássica do garoto pobre que venceu na vida pelo próprio esforço, e isso sensibiliza as multidões, que acompanham a novelinha em busca de um bom exemplo para suas vidas. Só que agora você virou o outro espetáculo que a todos também fascina, o lado sádico das multidões, de ver o herói sendo devorado pelos leões dos vícios, da preguiça e da loucura. Estamos fartos de gente como a gente, fraca, cheia de problemas. Lembra daquela música do Cazuza, a de que os nossos heróis morreram de overdose? Pois, então, chega de derrota.

Poupe-nos do mau gosto, toca o barco para a Vila Cruzeiro, e dá um tempo nesse circo de horrores. Deixa o mico para o Ronaldo carregar sozinho.

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]