Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A hipocrisia do discurso do ódio

Os judeus exercem excessiva influência sobre a política externa americana. Os gays são muito promíscuos. Os muçulmanos cometem muitos atos terroristas. Os negros praticam muitos crimes. Cada uma dessas afirmações é mal formulada. Todas elas, de uma maneira tosca, referem-se a um problema ou a uma preocupação real. E cada uma viola as leis contra o discurso de ódio. Em grande parte do que chamamos mundo livre, só pelo fato de escrever este parágrafo, eu poderia ser preso.

Libertários, conservadores culturais e racistas há anos se queixam dessas leis. Hoje, porém, o problema é global. Os governos islâmicos, enfurecidos com um vídeo contra os muçulmanos que provocou protestos e distúrbios em seus países, exigem saber por que insultar o profeta Maomé significa liberdade de expressão, mas vilipendiar os judeus e negar o Holocausto não é. E não temos uma boa resposta para isso.

Se vamos pregar a liberdade de expressão em todo o mundo, temos de praticá-la. E anular nossas leis contra o discurso de ódio. Os líderes muçulmanos querem que ampliemos essas leis. Na Assembleia-Geral da ONU, eles fizeram pressão para tornar mais drástica a censura. O presidente do Egito declarou que a liberdade de expressão não deve incluir o discurso “usado para incitar o ódio” ou “dirigido a uma religião específica”.

“Ódio racial”

O presidente do Paquistão insistiu que “a comunidade internacional qualifique como crime atos que colocam em risco a segurança mundial pelo abuso da liberdade de expressão”. O presidente do Iêmen exigiu uma “legislação internacional” para pôr fim ao discurso que “renega as crenças de nações e calunia seus ícones”. O secretário-geral da Liga Árabe propôs um “sistema legal internacional” que vincule todos os países, destinado a “criminalizar o prejuízo psicológico e espiritual” causado por expressões que “insultam as crenças, a cultura e a civilização de outros”.

O presidente Barack Obama, embora condenando o vídeo, reagiu a essas propostas com uma defesa tenaz da livre expressão. A presidente da Suíça concordou, ao afirmar que “a liberdade de opinião e de expressão são valores fundamentais garantidos universalmente que devem ser protegidos”. O debate entre Ocidente e Oriente, entre respeito e pluralismo, não é uma crise. É uma etapa do progresso global. A Primavera Árabe libertou centenas de milhões de muçulmanos do atraso político da ditadura. Eles estão assumindo a responsabilidade de se governar e de se relacionar com outros países. Estão debatendo e nos contestando. E devem, porque somos hipócritas.

Do Paquistão ao Irã, até a Arábia Saudita, Egito, Nigéria e Grã-Bretanha, os muçulmanos escarnecem da nossa retórica sobre liberdade de expressão. Apontam para as leis europeias que proíbem questionar o Holocausto. Na rede CNN, o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, alfinetou o entrevistador Piers Morgan, ao questionar: “Por que na Europa é proibido realizar qualquer pesquisa sobre esse fato? Você acredita na liberdade de pensamento e de ideias ou não?”.

Na terça-feira [9/10] o embaixador do Paquistão na ONU afirmou ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas: “Estamos conscientes do fato de que existem leis na Europa e em outros países que estabelecem restrições, por exemplo, ao discurso antissemita, à negação do Holocausto ou à difamação racial. Temos de reconhecer que a islamofobia e a discriminação religiosa são formas de racismo e devem ser tratadas como tal. Caso contrário, esse será um exemplo de uma política de dois pesos e duas medidas. A islamofobia precisa ser tratada na lei e na prática de maneira similar ao antissemitismo”.

Ele está certo. Leis aprovadas na Europa proíbem qualquer expressão que “reduza a importância”, “banalize” ou “coloque em dúvida” os crimes nazistas. Hungria, Polônia e República Checa estenderam essa proibição para as atrocidades comunistas. Essas leis estabelecem penas de até cinco anos de prisão. A Alemanha acrescentou mais dois anos para quem “desdenhar da memória de uma pessoa falecida”.

As leis que tratam do discurso de ódio vão além. A Alemanha pune qualquer pessoa acusada de “insultar” ou “difamar segmentos da população”. A Holanda proíbe “ofender um grupo de pessoas em razão de raça, religião, crença, orientação sexual ou deficiência mental, psicológica ou física”. É ilegal “insultar” esses grupos na França ou “difamá-los”, em Portugal, “denegri-los”, na Dinamarca, e “mostrar desdém” por eles, na Suécia. Na Suíça, é ilegal “rebaixá-los” com um “gesto”.

O Canadá pune quem “intencionalmente promove o ódio”. A Grã-Bretanha proíbe “palavras ou comportamento insultuosos” decorrentes do “ódio racial”. A Romênia proíbe a posse de “símbolos” xenofóbicos. O que essas leis produziram?

Reação pública

Examine as condenações mantidas ou aceitas pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Quatro suecos que distribuíam folhetos que qualificavam a homossexualidade de “perversão” e “moralmente destrutiva”. Um britânico que expôs na sua janela um pôster de 11 de Setembro proclamando “Islã fora da Grã-Bretanha”. Um francês que escreveu um artigo contestando a tecnologia do gás tóxico num campo de concentração nazista.

Veja os acusados liberados pela corte. Um dinamarquês “acusado de ajudar e incentivar a difusão de comentários racistas” ao produzir um documentário em que três pessoas “fazem comentários abusivos e pejorativos sobre imigrantes e grupos étnicos”. Um homem “acusado de incitar a população a odiar”, na Turquia, “criticando princípios democráticos e seculares e exigindo a introdução da lei islâmica”. Um turco “acusado de difundir propaganda” e “criticar a intervenção dos EUA no Iraque e o confinamento em solitária do líder de uma organização terrorista”. Dois franceses que escreveram um artigo num jornal “descrevendo o marechal Pétain de modo favorável, ocultando sua colaboração com o regime nazista”.

Além desses, você encontrará outros processos. Um pastor sueco acusado de violar leis que interditam o discurso do ódio em suas pregações contra a homossexualidade. Um sérvio acusado de discriminação por afirmar que “somos contra qualquer reunião de homossexuais nas ruas de Belgrado”.

A história que mais me agrada é a de um francês, que usou o artigo 10.º da Convenção Europeia de Direitos Humanos para se defender. Denis Leroy é cartunista. Uma das suas caricaturas representando o ataque ao World Trade Center foi publicada num semanário basco, com o título “Todos nós sonhamos com isto… O Hamas realizou”. Condenado a pagar uma multa por “aprovação do terrorismo”, Leroy afirmou que a sua liberdade de expressão tinha sido violada.

O tribunal considerou que, por meio do seu trabalho, ele tinha glorificado a violenta destruição do imperialismo americano, manifestado apoio moral aos que cometeram os ataques de 11 de Setembro, comentando e aprovando a violência contra milhares de cidadãos e depreciado a dignidade das vítimas.

Apesar da circulação limitada do jornal, o tribunal observou que a publicação da charge provocou uma reação pública capaz de incitar a violência e teve impacto sobre a ordem pública no País Basco. A corte decidiu que não houve violação do artigo 10.º.

Registros espantosos

Como podemos justificar ações como essas e, ao mesmo tempo, defender cartunistas e produtores de vídeos que ridicularizam Maomé? Ou censuramos ambos ou nenhum dos dois. Podendo optar, eu me coloco ao lado de Obama. “Os esforços para restringir a liberdade de expressão”, alertou o presidente nas Nações Unidas, “podem rapidamente se tornar instrumentos para silenciar os críticos e as minorias oprimidas”.

Esse princípio, confirmado pelos registros espantosos de processos envolvendo violações de leis contrárias ao discurso de ódio, deve ser defendido. No entanto, primeiro, precisamos estar à altura dele.

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[William Saletan é pesquisador da Century Foundation; artigo publicado na Slate]