Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alexandre Werneck

‘Artistas discutem a retomada de manifestações populares tradicionais e seu uso em novas obras

A história da cultura moderna brasileira é constantemente marcada por revisões da arte popular. O Modernismo revisitou a arte indígena (entre outras); o Tropicalismo, a arte popularesca; o Movimento Armorial quis criar uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular nordestina. Sempre surge um grupo de artistas letrados a observar a arte popular de antigamente e a reinventá-la, em novos cânones. Nas últimas semanas, dois produtos jogaram uma nova luz sobre esse mecanismo.

Primeiro, o discretíssimo lançamento do CD Responde a roda outra vez, uma pesquisa organizada pelo etnomusicólogo carioca radicado em Pernambuco Carlos Sandroni, numa revisão da histórica missão enviada ao Nordeste por Mário de Andrade em 1938, quando manifestações de arte popular foram documentadas em gravações e fotografias. O CD, lançado pela Petrobras, encontrado apenas em algumas livrarias, vai a algumas das cidades visitadas pela expedição 66 anos atrás e faz novas gravações, em um renovado retrato da cultura ‘de raiz’ do Nordeste.

O outro objeto é a microssérie Hoje é dia de Maria, dirigida pelo elogiadíssimo Luiz Fernando Carvalho, diretor do filme Lavoura arcaica e de programas famosos pela ligação com a cultura popular, como a novela Renascer e o especial A farsa da boa preguiça, de 1995, baseado na obra de Ariano Suassuna. Lançada com pompas de abertura das comemorações dos 40 anos da Globo, a série, encerrada na sexta-feira, um dos momentos mais inspirados da TV brasileira, trilha um caminho diferente do de Sandroni, reinventando e recriando a arte popular que utiliza para construir sua trama.

Claro, os dois produtos não são excludentes. Uma obra não renega a outra, e um trabalho como Maria chama a atenção à cultura popular. Mas os dois lançamentos sugerem a pergunta: por que a eterna recorrência da ‘arte de raiz’ geralmente ou acaba no modismo (como o do samba dos ‘neo-cariocas da gema’ e as redescobertas de Velhas Guardas) ou não permitem que a arte popular seja consumida por novas gerações in natura, exigindo a intermediação por artistas letrados?

Antônio Nóbrega, músico celebrado por recorrer ao resgate da arte popular, propõe uma explicação:

– A cultura popular não tem função explicitamente voltada para a exibição, ela tem uma função ritual. O ritual está no início do artístico, mas não é artístico. O que produzimos, hoje, artistas como eu e Luiz Fernando Carvalho e, antigamente, como Guimarães Rosa ou Villa-Lobos, é esse salto do primitivo para o artístico.

Carlos Sandroni conta que um dos pontos de partida de sua pesquisa para o CD veio quando se tornou professor da Universidade Federal de Pernambuco, antes de iniciar o projeto. Ele observou que a linha que separa o atual e tradicional é tênue.

– Entendi que aquilo que está nas gravações que ouvi em São Paulo (no Centro Cultural São Paulo, que guarda as gravações de 1938, feitas quando Mário de Andrade era secretário de Cultura do estado) e que está lá, museologicamente guardado, estava vivo no Nordeste, continuando com aquelas pessoas, num processo dinâmico.

Já Luiz Fernando Carvalho conta que a microssérie que dirigiu nasceu de sua ‘alegria de se deparar pela primeira vez, já adulto, com os contos populares recolhidos da oralidade popular brasileira por Silvio Romero e Câmara Cascudo’. Essas impressões somaram-se às pinturas de Cândido Portinari (que retratava o universo popular) e as cirandas (populares) recriadas por Heitor Villa-Lobos. Tudo isso tomou forma na peça de Carlos Alberto Sofredini adaptada pelo roteirista Luiz Alberto Abreu para a TV. Mas essa geléia geral de artistas que, cada um a sua maneira, já buscavam reencontros com a brasilidade foi filtrada pelas influências múltiplas de todos.

– Portinari era apaixonado por Velázques; Villa-Lobos, por Bach. Todos sabemos do enorme caldeirão cultural ainda em ebulição por estas bandas. Além do mais, acredito em um patrimônio genético do Brasil, suas histórias, suas raças, suas línguas, seus sons; tudo ainda vive, tudo me dá a sensação de que, como arquétipos, estão à espera de reencarnar para continuarem suas missões éticas e estéticas – diz Luiz Fernando.’



Daniel Piza

‘Uma derrota do populismo cultural’, copyright O Estado de S. Paulo, 23/1/05

‘Como se ainda fossem necessários mais exemplos, a minissérie Hoje É Dia de Maria, cujo capítulo da quarta-feira foi de uma beleza arlequinal, muito acima do naturalismo estereotipador que domina a TV brasileira, é prova de como os sabidões que mandam nos meios de comunicação e criação não se cansam de quebrar a cara. Esses sujeitos gostam de dizer para pessoas de talento, especialmente aquelas que não baixam a cabeça e não agem pelo manual, que qualquer forma de sofisticação é dinheiro jogado fora, que a inteligência acima da média é receita para o fracasso.

Muitas vezes eles conseguem barrar esses projetos ou, na maioria dos casos, esvaziá-los pouco a pouco, até substituí-los por sua cozinha básica de sexo, fofoca e sentimentalismo. Mas aí surgem obras como – para ficar na TV Globo, maior veículo de massa nacional – O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, e Hoje É Dia de Maria, de Luiz Fernando Carvalho, e mesmo exibidas em janeiro, tarde da noite, elas se tornam sucessos em todos os sentidos. Hoje É Dia de Maria teve nada menos que média de 36 pontos no ibope – ou seja, mais que a atual novela das sete – e isso sendo exibida depois do Big Bobo Brasil.

Em muitos outros campos impera esse pesquisismo, essa crença cínica de que um punhado de abonados semicultos sabe o que o ‘povo’ quer e não quer – como se o próprio ‘povo’ soubesse antes o que quer e não quer – e de que bastam para isso algumas enquetes para definir os ajustes na fórmula. A suposta elite brasileira está coalhada desse populismo cultural, dessa ‘nata’ que, como dizia Paulo Francis, adula a maioria quando na verdade a despreza. Diretores de gravadoras e emissoras, patrocinadores de eventos, produtores, editores, curadores – quase todos se arrogam poderes proféticos e são incapazes de desafinar o coro dos marqueteiros. Vi ‘n’ projetos promissores sendo descartados ou fritados por esse tipo de pensamento.

Não que seja exclusividade nacional; infelizmente, a praga é global. Outro dia citei o caso de Seinfeld, um dos maiores sucessos da TV mundial, que no começo só recebeu pareceres negativos – por seu humor ‘sutil demais’ – e foi mal aceito em pesquisas com grupos de espectadores, normalmente escolhidos e conduzidos para estranhar tudo que fuja ao convencional. Mas em países onde a demagogia dá o tom, como nos latino-americanos, os obstáculos são muito maiores. Logo, cada salto por cima deve ser muito comemorado.

ENTRANHAS CULTURAIS

Usar ironia no Brasil é complicado. O maior exemplo foi quando ‘defendi’ diploma obrigatório para escritores e recebi muitos emails de aprovação. Na semana passada, escrevi que o Sistema Piza de Avaliação (eu mesmo) já sabe há muito tempo que a educação no Brasil não dá nem muita disciplina nem muita criatividade. A revisão mudou para ‘Pisa’, avaliação internacional à qual me referi antes. Por sinal, leitores me pedem mais informações sobre o exame: vide www.pisa.oecd.org. Pior é a insinuação de alguns de que apontar a incultura de Lula é preconceito social. São os mesmos que não vão ao ponto central do texto, que era o descaso desse governo – como de quase todos os anteriores – em relação ao conteúdo da educação brasileira.

RODAPÉ

Evaldo Cabral de Mello faz com a história de Pernambuco o que seu irmão João Cabral fazia com a imagem do canavial: reescreve sobre o mesmo tema de tal modo que ele parece ser um novo tema. Em A Outra Independência (editora 34), volta ao movimento pernambucano de 1817-24 e critica a pecha de ‘separatista’ que a historiografia imperial – ainda hoje a oficial em muitos aspectos – atribuiu a ele e a outros, rejeitando a idéia federalista, americana, em nome da ‘unidade nacional’. Parte de uma observação de Roderick J. Barman (de quem já recomendei aqui a biografia da Princesa Isabel, infelizmente não traduzida) para demonstrar como os atritos e arranjos em Lisboa terminaram fazendo do Brasil o centro do Império joanino – e não um suposto desejo coletivo de um Estado unitário, tal como prega a escola nacionalista.

Por falar na diversidade nacional, fazia uns dez anos que eu não relia Erico Verissimo, então me deliciei com os dois livretos Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo, editados à parte agora pela Companhia das Letras, tal a fama das duas histórias, bem adaptadas para a TV por Walter Avancini (e que merecem, como Grande Sertão, um relançamento em DVD). O que distingue Erico – de quem também acaba de ser relançado Incidente em Antares, outro integrante do meu cânone do humor brasileiro (mas estragado na versão televisual) – dos outros autores nacionais de sucesso, mesmo o Jorge Amado dos primeiros romances, é a qualidade de sua caracterização: seus personagens são traçados de forma direta e ganham corpo à medida que o épico se desenrola. Em geral, o tom de saga converte os protagonistas em tipos, em heróis. Com Erico, não. E, apesar da abertura de Capitão Rodrigo ser tão memorável (sua entrada na cidade, com ‘aquele olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas’), Ana Terra é sua grande personagem, uma melodia triste e forte naquele mundo masculino. Erico foi um escritor natural e profissional – gênero que tanto faz falta ao Brasil.

DE LA MUSIQUE

Elvis Costello merece todos os aplausos, como os meus freqüentes, pela coragem e habilidade de discos com o quarteto Brodsky, Anne Sofie von Otter, Burt Bacharach e sua atual mulher, Diana Krall, além do subestimado North. Mas escutei agora Il Sogno, música instrumental que fez para o balé Sonho de uma Noite de Verão, contando com a colaboração do maestro Michael Tilson Thomas. Ele põe elementos de pop e jazz na estrutura sinfônica, mas o resultado, ao menos para quem não vê o balé, é monótono e altissonante demais.

CADERNOS DO CINEMA

O filme De-Lovely, que tem participação boba de Costello e mais ainda de Diana Krall, não tem nada de amável. Há pelo menos três motivos para fazer um longa sobre Cole Porter: sua vida foi muito variada, sua música é esplêndida e os cenários não são nada senão sofisticados. O filme de Irwin Winkler não satisfaz em nenhum dos quesitos. O roteiro é um fracasso, porque não se decide entre ser biografia e musical; logo, não dá desenvolvimento dramático à história nem reserva capricho para os números e canções. A maioria dos intérpretes trata Porter como cerveja, não champagne. Kevin Kline e Ashley Judd são dois atores experientes, mas não têm classe suficiente (para não falar daquele que faz o papel de Gerald Murphy, com cara e modos de Fred Flintstone) e Kline canta mal, muito mal. E o que era para ser humor inteligente fica com tom de Sessão da Tarde.

UMA LÁGRIMA

Para Jesús Soto, o artista venezuelano, conhecido pela ‘arte cinética’, em que a arte se funde com a ciência para produzir efeitos curiosos na percepção e ainda dar recado sobre o que Fernando Pessoa chamava de incerteza do ser. Em geral esse tipo de estética mais programática tende a ficar repetitiva, mas Soto soube se renovar e passou a criar instalações muito perspicazes, em que a relação com a vibração musical expandia a experiência para o campo das idéias.

POR QUE NÃO ME UFANO

Saca a imagem: Lula voando para o Fórum de Davos em seu Airbus de US$ 50 milhões, pouco depois de o Banco Central ter aumentado a maior taxa de juros do mundo, de o Tesouro ter arrecadado 10% mais devido também ao aumento de impostos, de o Congresso ter promovido outro trem da alegria, de o governo ter nomeado uma série de sindicalistas ‘amigos do rei’ para a direção de estatais – e de a imprensa ter noticiado que o investimento em saneamento e assentamento ficou bem abaixo da meta. O tempora…’



Olavo de Carvalho

‘Nada mais justo’, copyright O Globo, 22/1/05

‘Numa longa tradição que vem de Sócrates, a tarefa do filósofo é diagnosticar a desordem espiritual do seu tempo e tentar curá-la no microcosmo da sua própria alma, dando um exemplo que o ambiente em torno não seguirá de maneira alguma, mas que pode ser bom para as gerações seguintes.

O mal nacional brasileiro, do qual fui tomando consciência ao vê-lo refletido nas falhas da minha própria formação intelectual e pessoal, pode ser resumido na nossa incapacidade crônica de elevar-nos ao nível das preocupações essenciais da humanidade. A absorção maníaca das inteligências em miudezas eleitorais e administrativas, reforçada pela obsessão folclórica, pela bajulação populista do show business e por uma longa dieta de economicismo nas ciências sociais — tudo isso resultou num amesquinhamento provinciano da nossa esfera de interesses e na ruptura entre a cultura nacional e a história espiritual do mundo.

A cultura brasileira ocupa-se do Brasil, tão somente do Brasil, para o qual a ‘humanidade’ só existe como pano de fundo longínquo, evanescente e irreal, ou como imagem de riquezas materiais que cobiçamos em vão.

A urgência que sentimos de resolver os ‘nossos’ problemas contrasta com o nosso desinteresse pelos problemas fundamentais da filosofia, da religião, da moral. Quando os tocamos, é de passagem e tão somente pelo filtro do praticismo local e imediato.

Pesou muito nessa restrição incapacitante a influência da ortodoxia marxista, que relegava para a esfera do ‘individual’, indigno de atenção, tudo o que não dissesse respeito aos meios de produção e à luta de classes. A atrofia da inteligência nacional acompanha pari passu o crescimento da hegemonia marxista. Mas essa influência não teria efeito se não caísse em terreno propício. Quando Machado de Assis assinalou como traço predominante da nossa literatura o ‘instinto da nacionalidade’, sem notar que sua própria obra transcendia infinitamente esse círculo de interesses, não lhe ocorreu comparar tal estado de coisas com o que se passava simultaneamente nos EUA. Àquela altura os americanos já haviam ultrapassado a busca narcisista da ‘identidade’ e entrado em cheio na discussão de problemas universais, como se vê nas obras de Melville, Hawthorne, Charles Sanders Peirce e sobretudo Josiah Royce.

Nós, em vez disso, demos logo em seguida um passo atrás mediante a obsessão dos modernistas de 1922 com jibóias, macacos e tatus, como se uma identidade nacional pudesse nascer da fixação visual na paisagem física e não da acumulação e absorção reflexiva dos grandes feitos realizados em comum. A ruptura dos laços culturais com Portugal foi um crime de lesa-cultura. Realizando inconscientemente uma profecia de Hegel, nossos modernistas dissolveram a história na geografia. O desprezo pelo passado vem até hoje acompanhado, como num choque de retorno, do culto maníaco das ninharias distritais da semana, numa exuberante produção de biografias de sambistas, cronistas de futebol, malandros, prostitutas e, mais recentemente, terroristas queridinhos.

Tudo o que a humanidade produziu de valioso e sublime é, para o brasileiro, um fetiche para ser admirado de longe, com inveja rancorosa, e homenageado da boca para fora, justamente para que se mantenha à distância e não interfira na sacrossanta banalidade nossa de cada dia.

‘Cultura’, aqui, sempre foi um diletantismo supérfluo que só se justificava em razão de sua utilidade acidental para outros fins, seja de diversão pública e comércio, seja de ambição partidária. A ‘revolução cultural’ gramciana dos últimos quarenta anos, aplanando o terreno para o triunfo da estupidez federal que hoje celebra como intelectuais os Titãs e Mano Brown ao mesmo tempo que dispensa do conhecimento do inglês os candidatos à diplomacia, nos deu exatamente aquilo que pedíamos: a organização da incultura como fonte de subsídios estatais e instrumento de propaganda política. Jamais concebemos outra cultura senão essa, e ninguém podia realizá-la melhor que os petistas. O Brasil tem agora a política que sua cultura merece e a cultura que seus políticos desejam. Nada mais justo.’



Ivana Bentes

‘A pobreza criadora da folkmídia’, copyright Folha de S. Paulo, 23/1/05

‘Durante anos a televisão brasileira parecia refém de um imaginário caro a alguns grupos sociais, com uma restrição rigorosa para tudo o que fosse ‘popular’, nos vários sentidos da palavra: cultura popular, pobreza, popularesco.

Só muito recentemente, o popular foi saindo dos núcleos secundários da ficção, o ‘núcleo pobre’ das novelas, com suas lições de honestidade e conformismo, e adquirindo status de protagonista.

‘O povo quer se ver na TV’, o slogan dos programas de TV sensacionalistas que faziam uma sociologia à quente e involuntária desse mundo kitsch, brega, marcado por certo imaginário rural e que foram migrando e sendo adaptados para uma estética do ‘bom gosto’: de ‘Cidade Alerta’ a ‘Linha Direta’, do Ratinho ao Faustão, da mexicana Maria do Bairro à nordestina Maria do Carmo, programas muito distintos, mas com alguns conceitos e preconceitos partilhados, na passagem do ‘choque’ ao ‘padrão de qualidade’.

A televisão aberta foi criando um novo popular televisivo, combinando os elementos da cultura de massa (subcelebridades, triunfos científicos, teste de DNA, dramas eternos e crimes hediondos) com elementos da cultura popular pré-televisiva: o circo, a feira, a festa, o grotesco, as histórias de assombrações, o que restou do imaginário ‘rural’, gestando novos monstros chupa-cabras, ETs de Varginha e celebridades instantâneas.

Discursos afirmativos

Também o folclore urbano se renovou. Com a visibilidade social e o debate político em torno da pobreza, a televisão e o cinema descobriram novos sujeitos do discurso: pobres, subempregados, artistas precários, rappers, gente das periferias que têm uma fala sobre si e sua condição e exigem visibilidade, além de mudanças reais. Personagens que povoam as novelas, videoclipes, institucionais, filmes, não mais tão humildes e conformados ou como figuras do risco, mas como portadores de discursos afirmativos e de reivindicação.

É que certa pobreza urbana desabusada (a atitude política do hip hop, o funk hipersexualizado de Tati Quebra-Barraco ensinando que ‘não adianta senão eu esculacho, fama de putona só porque como teu macho’) e certo Brasil rural cult se tornaram objetos do desejo social, como potência do novo e signo de desmassificação. ‘Brasil Legal’, ‘Brasil Total’, ‘Turma do Gueto’, ‘Cidade dos Homens’ são programas de TV que encarnaram esse desejo de uma pobreza criadora.

Fascínio pela cultura popular, pelo ‘primitivo’ que alimentou vanguardas históricas e modernismos. Uma linha que no Brasil fundiu experimentação estética e folclore em ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, de Glauber Rocha, ‘Macunaíma’, livro e filme, no cinema marginal, nos antidocumentários sobre Carnaval e congada, chegando como tendência às bienais de arte.

Já a TV raras vezes avançou nesse terreno. A minissérie ‘Hoje É Dia de Maria’, de Luis Fernando Carvalho, é uma exceção, produto sofisticado de um novo momento da ‘folkmídia’, folclore + cultura de massa, entendida não como manifestações fossilizadas da cultura (o ‘conteúdo brasileiro’), mas como imaginário vivo, capaz de incorporar temas e estéticas transnacionais.

Um popular recenseado por Câmara Cascudo, Romero, Mário de Andrade que floresce em cenários inspirados em Portinari com elementos dos contos de fadas europeus, produzindo uma familiaridade dissonante. Rabeca e Villa-Lobos, prosódia caipira e teatro inventivo à Robert Lepage, caboclos e negros imersos numa visualidade feérica e luxuriante (‘A Viagem do Capitão Tornado’, ‘O Mágico de Oz’, ‘A Bela e a Fera’, este de Cocteau, são referências), atores contracenando com imagens metálicas de uma animação.

‘Hoje é Dia de Maria’ aponta um caminho possível, desde que não se confunda com o discurso de defesa da ‘identidade nacional’, retórica dominante no mercado que aposta em um nacionalismo institucional. Só assim o audiovisual brasileiro pode produzir uma outra iconografia de Brasil, mais arriscada e menos previsível, um folclore-mundo.

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Ivana Bentes é professora de cinema e coordenadora-adjunta da pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.’