“Há casos em que uma reclamação diz tudo o que tem de ser dito. A mensagem que o leitor Paulo Belém me remeteu, expressando a sua indignação pelo conteúdo do título principal da capa do jornal na passada quinta-feira ('Um enorme aumento de impostos' substitui recuo na TSU) é um bom exemplo. 'Leio o Público desde que há Público e não me lembro de uma capa assim', começa por dizer o leitor, para acrescentar: 'No dia em que se noticia o maior aumento de impostos de sempre em Portugal, num momento particularmente grave no país, e quando, por esta razão, se espera da imprensa uma atitude particularmente íntegra, vigilante, assertiva, precisa, objectiva e lúcida, o meu jornal de sempre oferece-me um título absolutamente vergonhoso'.
Feita a acusação, Paulo Belém passa a explicá-la: 'Não é preciso ser especialista na área para perceber que a capa do Público é um verdadeiro embuste. É claro como a água que a medida da TSU não tinha grande impacto no défice (cerca de 500 milhões de euros). Era apenas a concretização do lastro ideológico da política deste governo. A ser levada por diante seria apenas a parte 1 de um pacote mais vasto que, de uma maneira ou de outra, iria incluir medidas muito próximas das agora anunciadas para fazer face ao défice (…). Classificar o ‘enorme aumento de impostos’ como uma medida de substituição não faz sentido nenhum, é enganar os leitores, é mentir. É tapar os olhos. Fico por isso escandalizado quando é nas páginas interiores do Público que encontro um editorial que desmente a 1ª página'.
Assim é. No editorial dessa edição afirma-se claramente que 'a nova vaga de austeridade não é uma alternativa à TSU' (isto é, à decisão anunciada, e depois abandonada, de agravar o valor da taxa social única paga pelos trabalhadores e diminuí-lo para as empresas). Enquanto nesse projecto, prossegue o editorial, 'o aumento das contribuições iria quase exclusivamente para as empresas, os aumentos de impostos vão direitos para esse buraco que é o défice'.
O leitor chama ainda a atenção para o facto de a ideia ter sido repetida num comentário assinado pelo director adjunto Manuel Carvalho, nesse mesmo dia 4 de Outubro, na edição on line. Nele se podia ler: 'Com a TSU, o Governo pretendia superar o veto do Tribunal Constitucional, tentando ao mesmo tempo beneficiar as empresas em nome da competitividade. Com o aumento de impostos (…) o que está em causa é apenas a necessidade de tapar um défice glutão que devora os rendimentos, o Estado e a economia. Quer isto dizer que, mesmo que a nova TSU fosse aprovada, o Governo teria de aumentar os impostos para satisfazer as metas do défice inscritas no programa do ajustamento'.
'Como é que, afinal, pode o ‘enorme aumento de impostos’ substituir a TSU, como se lê na capa do Público (mas que o próprio Público desmente)?', pergunta Paulo Belém, concluindo: 'Não é aceitável esta capa no meu jornal'. Não é, de facto. Compreende-se que haja quem tenha querido fazer passar a ideia de que a anunciada transferência maciça de recursos dos cidadãos para o Estado, para abater ao défice, foi a alternativa encontrada, face a uma notável mobilização cívica, para compensar o recuo no que antes foi justamente descrito como uma igualmente maciça transferência de rendimentos do trabalho para o patronato. Mas que o PÚBLICO tenha feito sua esta versão enganadora não abona a favor de uma imagem de independência, credibilidade e competência. Não se trata de uma questão de opinião, mas de rigor informativo.
Nuno Pacheco, também director adjunto, reconhece o erro e refere que 'o título correcto, se optássemos por manter a lógica deste, seria ‘Um enorme aumento de impostos’ depois do recuo na TSU'. Na verdade, nada na peça de abertura das páginas de destaque de quinta-feira permite sustentar a manchete que saiu para as bancas, ainda que se possa, com excessiva benevolência, encontrar uma explicação para o erro no facto de esse texto, e a infografia que o acompanha, assentarem em parte numa comparação entre as medidas divulgadas a 3 de Outubro e as anunciadas a 11 de Setembro (que, aliás, já incluíam a intenção governamental de agravar a carga fiscal através da redução de escalões do IRS).
A ideia que um erro como este transmite é a de que não há comunicação e articulação efectivas entre quem elabora os títulos de capa, quem escreve e edita os textos informativos e quem se pronuncia em editoriais e comentários. Se isto já é muito mau, torna-se péssimo quando o erro não é imediata e abertamente corrigido.
Imagens: choque e informação
Na manhã de 12 de Setembro, o Público Online noticiou a morte violenta de Christopher Stevens, embaixador dos EUA na Líbia. Stevens fora uma das vítimas do ataque lançado na véspera contra o consulado norte-americano em Bengasi por extremistas islâmicos armados, numa das primeiras manifestações de protesto em países muçulmanos provocadas pela difusão de informações sobre um filme que ridiculizaria o Islão e o seu profeta.
A ilustrar a notícia, avultava na página de abertura da edição on line uma fotografia que mostrava o corpo do embaixador, moribundo ou já morto, e apresentando sinais de violência, a ser arrastado por indivíduos não identificados. A publicação dessa imagem, obtida por um repórter da France-Presse, chocou o leitor Lucio Magri, que pergunta se foi 'correcto e necessário publicar a imagem do cadáver (…) na homepagedo Público'. Alegando que, 'mesmo entendendo o direito à informação, (…) existem deveres éticos que deveriam ser respeitados', o leitor conclui com uma sugestão: 'Não digo que esta imagem não deveria ser publicada, mas poderiam pô-la num link (com um aviso claro de que a visão da imagem poderia ferir a sensibilidade do leitor)'.
Concordando que a fotografia 'mostra com elevado detalhe uma situação violenta', podendo por isso ser 'incomodativa', o editor do Público Online Victor Ferreira explica que 'a dúvida do leitor foi uma dúvida da redacção: questionámo-nos e debatemos se deveríamos publicar ou não'. Nesse debate, em que 'ninguém se opôs à publicação', prevaleceu o critério de 'dar visibilidade a um acto inesperado, violento e perturbador contra um diplomata que (…) era uma figura importante na diplomacia mundial pela forma como lidou e estabeleceu ligações ao mundo árabe'.
Esta é uma matéria em que me parece impossível estabelecer normas rígidas. Um editor confrontado com uma situação deste tipo terá sempre de pesar o valor noticioso de uma imagem violenta e a possibilidade de ela chocar uma parte dos leitores. Nessa ponderação será guiado pela tradição do jornal e pela sua própria sensibilidade e terá em conta factores como a dimensão da mancha gráfica a ocupar pela fotografia e a sua localização. Entre os dois erros a evitar — o de ocultar uma imagem chocante, mas que transmite informação relevante, e o de lhe dar a ênfase desmesurada própria dos meios sensacionalistas em que o comércio das emoções prevalece sobre a razão informativa —, sobra espaço para diferentes opções. O acerto da decisão deve ser avaliado em cada caso, sem esquecer que a coerência das escolhas feitas ao longo do tempo é um forte elemento de afirmação da linha editorial em que os leitores se reconhecerão.
Em comentário enviado ao PÚBLICO acerca desta fotografia, argumentava um leitor que uma notícia 'que já de si é bruta' não precisa de ser acompanhada de 'violência visual gratuita'. Não sendo o único, este é o ponto principal sobre o qual deve incidir a reflexão editorial: a imagem tinha ou não utilidade informativa, acrescentava ou não algo de relevante à compreensão dos factos relatados? Por mim — e sem pretender dar valor normativo a uma opinião ou preferência pessoal —, creio que não acrescentava. Para dar um rosto ao protagonista da história, respeitando a sua dignidade como pessoa, teria sido preferível ilustrar a notícia on line como se fez na edição impressa: com uma imagem de arquivo do embaixador Stevens.
E aqui chego a um ponto importante nesta discussão. Tal como outros meios de referência pelo mundo fora, o PÚBLICO optou por colocar essa fotografia apenas na edição electrónica. Poderá concluir-se que os jornais que fizeram esta escolha julgaram inapropriada a sua publicação no papel, mas a consideraram aceitável para uma plataforma em que a imagem, fixa ou em movimento, tem um especial poder de atracção.
E essa, sim, parece-me uma ideia errada. Os valores que marcam uma identidade jornalística não devem ser diferentes no papel e na rede. O potencial agressivo de uma imagem violenta será até maior no Público Online, por atingir mais leitores. Questão diferente é a de aproveitar as potencialidades tecnológicas da edição electrónica para procurar novas soluções para velhos dilemas. A sugestão de Lucio Magri — acesso a imagens mais violentas através de links que sinalizem a sua natureza — merece ser ponderada. E é compatível, por exemplo, com a publicação de galerias fotográficas sobre um determinado acontecimento, em que as imagens mais chocantes não apareçam ao primeiro clique na página de abertura.”