Num mundo perfeito, charges seriam vistas com humor, no máximo com mau humor, e ponto final. Como este planetinha arrogante está a anos-luz da perfeição, tem-se o desastre: seis mortos até agora nos protestos mundo afora contra cartuns de Maomé. A BBC News informava ontem que cinco muçulmanos morreram no Afeganistão: três em Mirtarlam, a leste de Cabul, quando a polícia atirou na turba que atacou uma delegacia, e dois num protesto contra a base aérea americana de Bagram (ao norte da capital), que por acaso também é uma prisão repleta de muçulmanos suspeitos de terrorismo. (Mas o que tinham os Estados Unidos mesmo a ver com as charges? A Casa Branca não condenou os cartuns? Ou haveria alguma relação com um certo julgamento iniciado ontem em Alexandria, Virginia – ‘o lado divertido do Potomac’, como apregoam os americanos nativos?)
Seriam todos vítimas dos tumultos? Até a Somália muçulmana protestou: um menino foi morto a tiros e vários manifestantes ficaram feridos. O menino estava protestando? No Brasil morrem meninos de bala perdida a três por dois. Na Somália não? Houve manifestações na Indonésia, na Tailândia e na Índia – greve geral foi convocada na Caxemira muçulmana, afirmam as agências! É mesmo? E Gaza não dorme há dias com os tumultos, dizem as agências. Por causa das tais charges, publicadas em 30 de setembro pelo Morgenavisen Jyllands-Posten, reproduzidas por terceiros na Europa e no mundo árabe – sim, no mundo árabe também? É isso?
Na Síria, no Líbano e no Irã os consulados da Dinamarca, da Noruega e da Áustria foram depredados e incendiados (o de Teerã, até invadido). O ministro libanês do Interior pediu demissão depois que a multidão destruiu um bairro cristão e ele levou a culpa por seu pulso fraco.
Gota d’água?
Toda essa loucura por causa de charges? Difícil de acreditar. Num pedido de desculpas publicado em 30 de janeiro, que até hoje figura em três línguas no alto da página principal do diário na internet, o editor-chefe do Jyllands-Posten, Carsten Juste, jura: muitos dos ‘desenhos ofensivos’ divulgados mundo afora jamais foram publicados por seu jornal, que escolheu ‘criteriosamente’ as charges no contexto de um debate sobre ‘liberdade de expressão, uma liberdade muito apreciada na Dinamarca’, diz. ‘Nós nos recusaríamos a publicá-los porque violam nosso código de ética.’
Posto isso, a massa muçulmana, criaturas normalmente felizes e satisfeitas em toda parte e em todos os aspectos da vida, saíram destruindo tudo por conta de alguns rabiscos. É isso? O mundo reúne 1 bilhão de muçulmanos, e a maioria saiu às ruas em fúria para nos matar, portanto consideremo-nos eliminados da face da Terra nos próximos dias, certo? A julgar pela cobertura da imprensa, sim. A outrora contida emissora pública britânica BBC dizia em seu site que os muçulmanos ‘clamam vidas’! E a blasfêmia da Dinamarca e d’alhures vem motivando uma ‘guerra’ que já estamos até chamando de ‘santa’!
Modus in rebus, gente boa. Que povos de saco cheio com tudo façam das suas se compreende, mas a imprensa precisa reduzir tudo? As charges não seriam um pretexto óbvio, uma gota d’água? O que a imprensa noticia (bem) é o desastre. Na noite de segunda-feira, entre 80 sites da mídia européia consultados (incluindo alguns de língua ininteligível), apenas o Libération refrescava. Dava destaque ao pobre do Kofi Annan, secretário-geral da desacreditada ONU, que exortou os muçulmanos ‘a perdoar’. Assim mesmo vinha abaixo da chamada principal, sobre aquele julgamento mencionado lá em cima, de grande interesse da mídia francesa: o do franco-marroquino Zacarias Moussaoui, o terrorista que não deu certo no 11 de Setembro. Ele não quis saber: ‘Sou al-Qaida, meus advogados são americanos, este processo é um circo’, bradou, segundo o Libé, até ser expulso pela juíza do tribunal de Alexandria, subúrbio de Washington.
A imprensa resiste
Circo não falta. O pedido de perdão do jornal de Aarhus, segunda maior cidade da Dinamarca (eles afirmam ser lidos diariamente por 670 mil cidadãos só nos dias de semana) de nada adiantaram. Segundo a imprensa, os manifestantes querem que Copenhague peça desculpas. Vamos e venhamos, é mais fácil Copenhague empastelar o ‘jornaleco’, como tantos tratam o diário, do que pedir desculpas em seu nome. O governo do primeiro-ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussen, é de direita: imagine se pedirá desculpas ‘em nome da imprensa independente, que apenas exerceu sua liberdade de expressão’, conforme alegou. Ainda mais um jornal que lhe dá apoio.
O aliado fundamentalista George W. Bush, que fala em nome de (seja lá qual for) seu deus ao jogar bombas no Iraque e no Afeganistão, talvez merecesse desculpas do pequeno reino, pois a ‘furreca’ Dinamarca mantém tropas no Iraque, obediente à ‘doutrina’ de Washington de democratização dos ‘infiéis’. Por conta dessa trágica piada e de muitas outras, Bush está inteiro e pequenino em charges e programas de TV de seu país. Quem duvidar que assista por exemplo ao Saturday Night Live (Sony-Net, canal 49) ou ao Late show de David Letterman (GNT-Net, canal 41). São de arrepiar os cabelos… e lá nos States não passam em canalzinho pago não, e sim na NBC e na CBS. Aqui, nesta ponta do planeta, leitores já associaram o olhar irreverente dos ilustradores dinamarqueses ao dos brasileiros que tratariam Lula e Severino com preconceito. Se soubessem como é lá…
Mas deuses e profetas são diferentes, correto? Política pode, religião não. E nem se diga que o 0,01% fanático-suicida muçulmano domina o noticiário da imprensa por seu alto poder de revide. A imprensa resiste em toda parte, e no mundo árabe ela grita, da Jazira e seus filhotes a revistas quase anônimas. A mídia ocidental só destacou a demissão do editor do France Soir, jornalão chato e atrasado que reproduziu as charges por espírito de porco, para afrontar a colônia árabe francesa que atrapalha a promenade da elite européia. Recentemente a colônia jovem ousou tirar o rabinho de entre as pernas – ficou só na periferia, claro, que ela não é suicida de afrontar Paris (a batalha da Argélia está fresca em sua memória genética).
Planetinha simplista?
Já o editor jordaniano demitido e preso praticamente passou em branco, porque a notícia não ‘combinava’ com o estereótipo da cobertura. Jihad Momani, chefe da revista Shihan, que na semana passada publicou três das fatídicas charges de Maomé, além de demitido pelos patrões está preso para interrogatório por ‘ofensa à religião’. A revista de humor al-Mehwar também divulgou algumas caricaturas, e será processada. A Jordânia não é essa brastemp de democracia, é?
‘Desrespeito’ no mundo árabe. Jornalistas se apropriam do olhar torto dinamarquês para expor a religião com irreverência. Que Alá os proteja. O britânico Robert Fisk, por exemplo, é especialista em risco, malhado por comunidades judaicas em vários países porque ousa criticar Israel (jurou processar cada um que o acuse de anti-semita), excomungado pelos árabes porque se atreve a enfiar o dedo em feridas como corrupção e opressão. O escritor Salman Rushdie está vivo, viajando, dando entrevistas, apesar das ameaças mulás e aiatolás. Outros virão.
Enquanto não vêm, a esmagadora maioria dos jornais ocidentais destaca incêndios, vandalismo, revolta – como no mês passado, no ano passado, no século passado. Levantes intermitentes sob condições de submissão, especialmente para os jovens, que explodem (sem trocadilho) por tudo e por nada, porém, demandam mais. Não que seja fácil contextualizar – não é. Não que se aceite racismo, intolerância ou desrespeito a pretexto de liberdade de imprensa. Não que se tope tudo por petróleo, por democracia à la Bush ou por liberdade mediada. Não que qualquer coisa se justifique. O que se pede é mais cobertura deste mundo oprimido pela religião, qualquer que seja, a do bispo ou a do mulá. É o papel da mídia. Não cabe mais essa visão tão simplista, sempre. Ou o planetinha, além de arrogante, é simplista mesmo?