Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O preconceito politicamente correto

Quando o Observatório da Imprensa publicou o primeiro texto sobre o caso das charges dinamarquesas, enviei um comentário ao Canal do Leitor com algumas considerações genéricas sobre diferenças entre Ocidente e Islã, fazendo uma breve referência à Inquisição. Acho que me expressei mal e, ao ler a Veja desta semana, resolvi colocar minhas opiniões de um modo mais completo, sem querer ser autoridade no assunto ou dar a palavra final.

Como sempre, a revista semanal parece querer nos surpreender a cada edição: desta vez não foi com críticas ao PT (embora as tenha feita, junto com algumas aos tucanos), tampouco com Diogo Mainardi, que prosseguiu em seus assuntos prediletos, sem tocar nesse tema. Foi mesmo com a matéria de capa.

Evidentemente que há grandes diferenças entre as religiões monoteístas e várias coisas em comum, como Veja coloca. Também é óbvio que a mistura de política com religião, como acontece ou aconteceu com judaísmo, cristianismo e islamismo, é explosiva. Essas colocações da revista, somadas a um singelo apelo de compreensão mútua e de que a maioria dos muçulmanos não é radical, apenas soa como um exemplo do escamoteamento embotador do ‘politicamente correto’ vindo dos EUA, que até já estava em decadência. Aliás, nessa crise toda, foram os Estados Unidos um dos países ocidentais a condenar os quadrinhos.

Vejamos algumas coisas: os muçulmanos são, como sempre é colocado – e verdadeiramente – submissos: esse é o significado literal da tradução. São submissos a Alá em tudo, não possuem o livre arbítrio, tudo está escrito etc. Está no Alcorão, enviado por Deus a Maomé, que se postou como o último profeta, considerando os do Velho Testamento e Jesus Cristo também como profetas, o que representa um respeito às crenças precedentes. Também é real o fato de o muçulmano inferiorizar a mulher – embora de modo mais light, ao menos no momento, as demais duas grandes religiões monoteístas também o fazem.

Acendendo paixões

A questão da idolatria, presente no catolicismo, é igualmente proibida no judaísmo, pelos protestantes e pelos muçulmanos, de modo que estes não estão sozinhos nesse campo, como espertamente boa parte da imprensa parece fazer crer, e Veja não ficou fora dessa.

Após a Primeira Guerra Mundial, com a queda do Império Otomano, ficaram os muçulmanos sem uma liderança como referência, o califa. E não por acaso em 1923 foi criado o primeiro movimento tido como fundamentalista no mundo árabe, a Fraternidade Muçulmana no Egito. E os árabes ficaram neutros ou ao lado dos nazistas na Segunda Guerra. No período da Guerra Fria, especialmente o pai do nacionalismo pan-arabista, o líder egípcio Gamal Abdel Nasser, guerreava com Israel e era especialmente ligado a Moscou. Aparentemente sem cunho religioso, para não desagradar a ‘assistência fraterna’, nas bases esse movimento já continha as diferenças entre Ocidente e Islã.

Dessa maneira, no momento, quando se pensa em muçulmanos, é difícil esquecer da maioria moderada e pensar nos vários movimentos radicais, da al-Qaida e seus atentados hollywoodianos, dos palestinos comemorando com armas qualquer coisa, até o atual presidente do Irã, que quer a extinção de Israel, assim como o Hamas, ficando como pária da comunidade ocidentalizada, condenado por todos, por essa colocação absurda a um país-membro da ONU e por seu apetite nuclear.

Pois bem, não se sinta a vontade Veja por publicar algumas das charges por aqui, pensando na distância do Oriente Médio: os atentados à Amia na Argentina, por exemplo, e a tríplice fronteira, podem muito bem acender paixões nunca imaginadas entre os radicais. Após essas críticas, que parecem serenas a um ocidental, aos muçulmanos, devemos nos ater a algumas outras coisas, que parece que as publicações européias e nossa Veja deixaram para trás.

Sentimento racista

Uma delas é a questão do nacionalismo: com todo o progresso, a União Européia, os benefícios sociais etc., se é verdade que parece estagnada a economia dos países do Velho Continente, a questão não é bem essa: o euro é moeda forte, e essa comparação só é válida com os Estados Unidos, superpotência econômica que são. Mais uma ardilosa colocação da revista, que coloca toda a segregação dos jovens muçulmanos no campo do desemprego e na área econômica, esquecendo que a Europa é, na definição de Mazower, o ‘continente sombrio’. Sim, pois lá, há séculos, em regiões minúsculas, convivem lado a lado populações com pensamento e hábitos religiosos diferentes, que levam a ódios inimagináveis.

Os Estados Unidos, após o 11 de Setembro em franca animosidade com os muçulmanos, tomaram a cautela política de condenar os quadrinhos europeus, numa quase excepcional mostra da diplomacia política devida. Mas lá também houve o KKK: ainda nos anos 1960, negros foram escoltados pelos ‘US marshalls’ para conseguirem adentrar a Universidade do Alabama; Martin Luther King foi assassinado e não há verdadeira democracia racial – é a terra das supostas oportunidades equânimes, das ações afirmativas, mas na prática há preconceitos arraigados de ambas as partes. Isso em relação aos negros, mas também já houve forte sentimento anti-semita, que a hábil comunidade judaica de lá tenta solapar, e os muçulmanos são vistos como a encarnação do anti-Cristo, especialmente pelos cristãos tradicionalistas, que por serem evangélicos jogam a Inquisição no colo dos católicos.

E mesmo em Israel há essa questão: eminentemente secular e política, a constante querela entre palestinos e judeus acaba por conter um sentimento racista, como em várias declarações de israelenses nativos. Quanto aos árabes, nem é necessário pedir sua opinião sobre Israel. Voltando à Europa, temos sua intolerância com os judeus na Inquisição e no nazismo, mas também esse espírito anti-semita remonta a muito antes, da Itália à Europa Central e Rússia. Os pogroms não foram invenção de Hitler.

Fanáticos católicos

Mas o que dizer de Slobodan Milosevic, o primeiro ex-líder de Partido Comunista a redescobrir a senda do nacionalismo, que o manteve no poder e fez populações dizimarem umas às outras, incluindo os chamados ‘albaneses étnicos’, por exemplo, por serem muçulmanos? A limpeza étnica voltou com tudo (embora nunca tenha acabado na África e suas guerras tribais). Como referido anteriormente, a situação européia é ainda mais complexa. De ibéricos a austríacos, em vários pontos da história do continente, havia o mote de ‘expulsar os mouros’, em outras palavras, os muçulmanos. Os cossacos também lutaram contra os muçulmanos no território russo por décadas.

Não se pode esquecer de voltar à Iugoslávia, dados os vários exemplos que nos fornece: literalmente, Iugoslávia significa ‘eslavos do sul’. Após a vitoriosa guerra de guerrilhas que derrotou os nazistas, Josib Bros Tito galgou com folga o controle do país, e duas de suas metas eram aguerridas: acabar com os conflitos multiétnicos, para o controle dos quais estabeleceu pesadas punições a quem infringisse as normas da Federação Iugoslava. Por outro lado, embora atuasse identicamente aos demais partidos comunistas, ficou um pouco à margem da esfera russa, de modo a ser adulado no Ocidente. Quando morreu, estabeleceu um testamento político no qual o país seria governado por uma junta representante das etnias.

Evidentemente que isso falhou, especialmente com a subida de ex-líderes comunistas ao poder: o próprio Milosevic na Sérvia e Trudman na Croácia. Os dois descobriram uma maneira de manter-se no poder – ressuscitar o nacionalismo. Usando de modo especial a televisão estatal sérvia, Milosevic passou a acusar de tudo os croatas e a preparar o país para uma guerra que ninguém conseguia imaginar ou prever. Trudman fazia a mesmíssima coisa do lado croata. As minorias sérvias na Croácia e croatas na Sérvia passaram a ser perseguidas e discriminadas, de modo similar aos judeus no início do nazismo e mesmo nos tempos do czarismo. Milosevic ainda fazia questão de lembrar que a Croácia teve, durante a Segunda Guerra Mundial, um governo fantoche nazi-fascista, os temidos ustashi, que além da violência grotesca contra os sérvios ainda eram fanáticos católicos. Na verdade, vários líderes da Croácia no período da guerra eram igualmente sacerdotes católicos.

Civilizando os bárbaros

Não demorou em explodirem conflitos em Kosovo Selo, aldeia próxima à capital do estado de Kosovo, Prístina, e em aldeias croatas, que voltaram a erguer, no lugar da bandeira iugoslava, a antiga bandeira croata usada pelos ustashi. A pobreza de imigrantes internos também foi usada por ambos os lados para comporem suas milícias paramilitares. Daí à guerra deslavada de eslavos idênticos em inúmeras coisas, por décadas amigos e com casamentos mistos, levando à Sarajevo, foi um passo. E logo os sérvios e montenegrinos quiseram fundar sua república independente das demais, e todos passaram a atacar a minoria muçulmana, especialmente albanesa. Desse imbróglio todo surgiu o maior conflito armado da história européia pós-guerra, que até teve intervenção dos EUA e da Otan, embora com pouco sucesso.

A Argentina sempre se gabou, mesmo antes do governo protofascista de Perón, também acolhedor de nazistas fugitivos no pós-guerra, através dos ricos oligarcas do começo do século 20, de ser um país livre de negros. E o Brasil não pode se orgulhar de sua pretensa ausência de racismo: nosso imperador D. Pedro II, tido como avançado intelectual, amante das ciências e das artes, foi fortemente influenciado pelas teses de Gobineau e Lombroso, por aqui refletidas especialmente por Nina Millet. D. Pedro ficou famoso por falar grego e ser um pioneiro do experimento do telefone, mas acreditava piamente na pseudociência da classificação de raças inferiores – não espanta, então, a demora na abolição da escravatura por aqui, talvez mais pelas posições da Coroa do que pela pressão dos fazendeiros locais. E isso com a comunidade internacional pressionando, em especial a Inglaterra.

Os britânicos também não podem se livrar de culpas nessa história toda: para manter seu império, usaram de diversos expedientes, desde a aparência de não-interferência nas culturas locais, como a manutenção dos marajás na Índia, até o contraditório mote de ‘levar a civilização aos bárbaros’. Para manter suas posições na Palestina, apesar das várias resoluções da ONU e mesmo dos demais países aliados da época da guerra, fizeram questão de dividir os habitantes de sua possessão, incentivando o ódio recíproco entre os árabes e os colonos judeus.

Cidadão de segunda

Ainda poderíamos falar do que japoneses achavam e faziam com coreanos e chineses, entre outros exemplos, mas creio poder encerrar esse capítulo por aqui.

O que vemos então? Que o grande problema é a intolerância não apenas de povos, mas de indivíduos muitas vezes com questões culturais e religiosas em pequeno número, porém perseguidos. Não é à toa que não chegamos nem de longe às inúmeras obras de ficção científica que apontam um governo único para a Terra…

Ocorre que as questões do momento, após toda essa tormentosa história, mesclam aspectos seculares, em especial posse de terra e melhores condições de vida e trabalho, a aspectos religiosos. Quem pensa apenas nos muçulmanos pode ser ilustrado por um exemplo pessoal: um amigo meu, médico de excelente formação, mudou-se para a Inglaterra e lá foi aceito para trabalhar em área de pesquisas altamente prestigiada. Após vários anos, voltou ao Brasil, mesmo com os melhores salários da Grã-Bretanha, por sentir-se um cidadão de segunda categoria… E ele é anglicano e branco!

Indivíduo e poder público

O que fez a Veja? Remeter o leitor a uma premente guerra entre Ocidente e Islã, com os comentários finais apelando ao bom senso, o tal aspecto ‘politicamente correto’. Pode até ser que um conflito maior apareça, inflado por Irã, al-Qaida, os talibãs, Bush e companhia, aliados europeus, dirigentes israelenses inflexíveis etc. Mas uma influente revista se prestar a esse papel leva a se pensar no quesito liberdade de expressão.

Uma das preciosidades da civilização ocidental, talvez essa forma de liberdade seja mais festejada nos Estados Unidos, como a notória convocação da Primeira Emenda, que garante tal direito. No resto do mundo, volta e meia alternam-se censura e liberdade; inclusive por aqui, desnecessário lembrar. Mas o Brasil, mesmo no governo petista, quis montar o famoso Conselho Federal de Jornalismo, que fatalmente levaria a uma censura prévia e punitiva, causando autocensura à categoria.

Como limitar a liberdade de expressão? De modo algum via censura, mas pela procura da Justiça por quem se sentir ofendido. Aqui temos desde a própria Constituição até a Lei de Imprensa para tal. Nos Estados Unidos, talvez a melhor definição para essa questão tenha partido de um antigo juiz da Suprema Corte, que escreveu algo como:

‘Caso alguém, em um teatro cheio, grite ‘Fogo!’ sem motivo e ninguém acredite, tudo pode ficar como está. Caso alguém decida processar esse indivíduo por tal brincadeira de mau gosto, provavelmente não o conseguirá, pois a Primeira Emenda lhe garante esse direito. Contudo, se a mesma cena ocorrer e desencadear pânico, levando a mortos, feridos, danos materiais, etc. não cabe a aplicação da emenda da liberdade de expressão, pois o fictício indivíduo abusou dela, causando uma série de delitos previstos em lei’.

A delimitação da divulgação de algum assunto é responsabilidade do próprio indivíduo, de sua coragem e convicções, mas não cabe ao governo ou à justiça agirem preventivamente, apenas após a constatação devida dos danos materiais e morais, do devido processo legal, do contraditório etc.

Preguiça e ignorância

Claro que os muçulmanos não pensam assim, a questão dos princípios religiosos assumem a postura Estado igual a religião. Desta forma, vieram os atentados, como contra a embaixada dinamarquesa em Beirute, pois no mundo islâmico é inconcebível que o governo de um país não puna alguém por coisas como essa. Por outro lado, retratar de modo idêntico rabinos e padres ocorre com freqüência na imprensa de países muçulmanos, e nunca houve revide ocidental da mesma ordem, pois o pensamento é diferente, separando em tese a religião do Estado.

Não vi o filme ainda, obviamente, pois estreou nos EUA nesta semana, mas já vi o trailer na internet e comentários em sites especializados: uma comédia intitulada Levando o humor ao mundo muçulmano conta basicamente que o presidente americano decide que um humorista americano faça o mundo islâmico rir, para melhorar as relações. Mas, ao menos no trailer, seus esforços são nulos. Espero que o filme tenha uma mensagem otimista, mesmo que naïve, e não seja mais um gerador de conflitos.

Finalizando, a Veja mostrou seu desejo de expressar algum tipo de ódio racial, que mais prejudica do que auxilia as relações conturbadas entre árabes e americanos e israelenses, por exemplo, e denota no mínimo preguiça e ignorância de quem escreveu a matéria, pois nem se deu ao trabalho de rever alguns dados históricos, apenas compilando informações aqui e ali da imprensa internacional (como nas agências de notícias…) e fazendo as clássicas entrevistas com as ‘autoridades’ no assunto, definidas pela própria revista. E não se devem culpar apenas os repórteres, pois os editores certamente estão por trás de tudo isso. E eu ainda me atrevi a chamar a coisa de ‘politicamente correta’…

******

Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM de São Paulo