Vinte e sete anos depois que retornou a democracia, o Brasil ainda luta para desenterrar um doloroso legado perdido que, aos poucos e a duras penas, vem sendo reconstituido. Os espectros dos mortos e desaparecidos da ditadura continuam a nos assombrar e envergonhar, contrariando leis e tratados internacionais dos quais o pais e signatario. Este livro e parte desse árduo trabalho de investigação e reconstituição de uma história de crimes, assassinatos e desaparecimentos que se passou nas sombras, muitas vezes sem testemunhas, nos porões do regime militar. A expectativa de que a trajetória política do mineiro de Belo Horizonte Carlos Alberto Soares de Freitas se tornasse livro impôs-se naturalmente. Uma vida muito breve, que termina com o seu desaparecimento, aos 31 anos, em fevereiro de 1971, numa manha típica do verão carioca, na avenida Princesa Isabel, em Copacabana.
Ao trazer a tona um novo capítulo dessa saga, este livro se transforma num documento pioneiro, de especial interesse para a juventude, que deveria ser adotado nas escolas brasileiras. Aqui, o leitor descobrira um dos personagens de nossa historia recente. Um valente personagem que não necessita do titulo de herói, integrante que foi de uma geração de jovens que, inconformada com o golpe militar que depôs o presidente João Goulart, em 1964, resistiu e ousou lutar por seus sonhos e ideias socialistas.
Seu amigo esteve aqui soa como uma inocente frase de um diálogo amigável. Vejamos as circunstâncias, o cenário e os três personagens envolvidos nessa tragédia politica. “Aqui” trata-se da Casa da Morte, localizada na rua Arthur Barbosa n.668, na serra de Petrópolis, um dos centros de tortura e extermínio clandestinos instalados pelos militares encarregados da repressão política. Somos levados então a penetrar um dos círculos do inferno. O autor da frase – um lacônico e frio comunicado de morte – é agente do Estado, torturador, o ex-sargento Ubirajara Ribeiro de Souza, o Zezão, dirigindo-se com cinismo e ironia a uma de suas vítimas, Ines Etienne Romeu, ali torturada e seviciada, única sobrevivente e testemunha desses atos de infame selvageria. “Seu amigo” é o jovem sociólogo e dirigente da VAR-Palmares, uma das organizações de luta armada, Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, codinome Breno, cujo corpo e procurado ate hoje.
Geração militante
Na Casa da Morte, uma sinistra sucursal do DOI-Codi – a nave central da tortura, situada dentro de um quartel do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro – os facínoras tinham licença para matar. Antes, serviam-se sádica e covardemente de seus prisioneiros, vítimas de uma violência diária, banal, praticada com requintes de doentio prazer, com o objetivo de lhes tirar os últimos resquícios de humanidade porque sabiam que, ao final daquele ritual de horrores, eles seriam eliminados.
Essa e uma das principais revelações deste livro, que realiza uma detalhada anatomia de um desaparecimento em busca da construção da verdade. Entre os oficiais militares do DOI-Codi no comando da casa de Petrópolis, todos com nome de guerra de doutores, estavam o coronel da extrema direita Freddie Perdigao Pereira, o dr. Nagib ou dr. Roberto; o tenente-coronel Orlando Rangel, o dr. Pepe, e o segundo-tenente Amilcar Lobo, o dr. Carneiro, este, médico com diploma, encarregado de medir o impacto do sofrimento e da dor no corpo do torturado e com poderes para autorizar o prosseguimento de seu massacre.
Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e a indignação provocados pela revelação dos porões da guerra da Argélia, o filósofo Jean-Paul Sartre advertiu que “a tortura não é especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda a nossa era”. Naquele momento, em 1957 e 1958, a opinião pública tomou conhecimento de que o Exercito francês e as forcas policiais da colônia empregaram sistematicamente a tortura no enfrentamento aos rebeldes argelinos, levando a uma comoção generalizada. Essa catarse o Brasil ainda não teve a coragem de fazer.
A impostura que encobre a situação dos nossos mortos, que de procurados ou presos passaram a condição de desaparecidos depois de assassinados, só será desmascarada com a abertura dos arquivos militares que encobrem seus autores e os crimes por eles praticados. Gestada nos centros clandestinos de operações da ditadura militar, a infecção da tortura constitui um de seus legados mais nocivos a sociedade brasileira.
Prática institucionalizada pelo regime ditatorial, a tortura tornou-se um poderoso instrumento da política repressora do Estado que se provou eficiente e eficaz. Naquele solitário e abjeto embate que se trava numa prolongada sessão de suplícios, o torturador não se contenta com a rendição do torturado, ele almeja apossar-se de sua alma, despoja-lo de seus valores, tornar-se dono de sua voz para transforma-lo num delator. O carrasco sevicia, humilha e administra a dor para arrancar uma informação, num sádico ritual que pode terminar com um cadáver em suas mãos. O que fazer com esse incômodo cadáver? Os covardes doutores da morte criaram essa monstruosidade jurídica chamada desaparecidos políticos.
Ao reconstituir a trajetória política e existencial de Beto, filho caçula de uma familia de oito irmãos, Seu amigo esteve aqui saiu em busca de suas raízes, sua formação, seus amigos, suas paixões, sua militância. Encontrou uma geração nascida nos entornos da Segunda Guerra que chegou à juventude em meio aos sangrentos confrontos políticos e ideológicos da época, início da Guerra Fria. Uma geração que se politizou muito cedo, a custa de duas porradas marcantes que mudaram os rumos do Brasil: o golpe militar de 1964 e o AI-5, quatro anos depois, que calou todas as vozes e impôs um regime de trevas, o pais do “ame-o ou deixe-o”, slogan de propaganda criado pelos militares.
Estudante de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Beto encontrou aí a sua turma e iniciou sua militância na Política Operária, a Polop, consolidada por uma viagem a Cuba em 1962, onde se encantou com a vitoriosa revolução de Fidel e Che Guevara. Ate sua prisão e morte, foram mais de dez anos de militância política, quatro dos quais na total clandestinidade, uma das mais longas da esquerda armada brasileira, vivendo encurralado em aparelhos com identidade falsa, entrando e saindo de reuniões e congressos, pulando de uma cidade para outra, com cartazes estampando sua foto espalhados em aeroportos e rodoviárias. Dotado de uma convicção inabalável, recusou os apelos para seguir a rota do exílio, que salvou muitas vidas.
Neste roteiro de filme traçado pelo livro, embrenhou-se pelo interior à procura da mítica Área Estratégica para a implantação da guerrilha rural, viajou de trem, navio e jipe pelos confins do país, passou por Rio, Sao Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife, Belém e outras cidades. Entre seus companheiros de viagem, Lamarca, Iara Iavelberg, Juarez Brito, Maria Auxiliadora, a Dodora, e tantos outros que tombaram pelo caminho. Ao final, tinha plena convicção de que se tornara um alvo especial – se fosse preso seria morto. Dilma Rousseff, sua amiga e companheira de militância desde a fase inicial em Belo Horizonte, também presa e torturada, sobreviveu e chegou à Presidência da República. Fato notável que isso tenha ocorrido no curso de uma geração militante aniquilada pela repressão do Estado ditatorial.
Investigação jornalística
Beto e seus jovens companheiros viveram uma época de confrontos e utopias. Pressionados pela ditadura que instituiu a censura, fechou sindicatos e diretórios estudantis, prendeu e cassou mandatos de congressistas e opositores, acabaram tomando o caminho da luta armada, embalados por uma volúpia na ação e nas certezas de que ela conduziria a revolução social. Istvan Szabó, cineasta húngaro que dirigiu “Mephisto”, a historia de um ator que vende a alma ao nazismo, disse que gosta de contar histórias de pessoas que passaram por experiências difíceis, sobretudo diante de algum momento político em um dado contexto da Historia que influencia suas vidas e muda seus destinos particulares. “Gosto de contar historias”, disse Szabó, “de pessoas expostas ao vento forte da Historia.” Ao contrário do personagem de “Mephisto”, que vendeu sua alma ao diabo nazista, o que este livro nos mostra é que Beto e seus companheiros de viagem, expostos ao vendaval da História, entregaram a vida a um projeto político revolucionário de transformação social.
No capítulo final de Seu amigo esteve aqui, Cristina Chacel oferece ao leitor uma espécie de making of do livro, com os bastidores da criação, um guia sobre o intenso, difícil e demorado trabalho para desvendar o mistério que cercava o desaparecimento de Carlos Alberto Soares de Freitas. Terminou indo muito além, escrevendo um capítulo novo da história da luta armada, com suas organizações, congressos, divergências, rachas e grandes ações, como o roubo do cofre do ex-governador de São Paulo Ademar de Barros. E, sobretudo, deu dimensão humana a seu personagem principal, que pode ser visto em ação por inteiro, com seu rosto, gestos, hábitos e características pessoais.
Um homem alto, bonito, de olhos verdes, sedutor, que gostava de cinema e literatura, que sabia ouvir, não andava armado, que disputou e perdeu a bela Iara para Cid, o temível capitão Lamarca. Um cara divertido, que gostava de cantar, tinha prazer em ir para a cozinha preparar um bife acebolado, mas que também sabia impor-se, sério, um estudioso do marxismo-leninismo que ministrava cursos de formação política e intelectual para seus companheiros.
O livro e fruto de um trabalho de equipe, um afinado quarteto composto pela narradora, a jornalista Cristina Chacel; Sergio Campos, personagem e patrono da iniciativa, amigo e companheiro de Breno na VAR-Palmares, última pessoa a vê-lo antes de seu desaparecimento; Sergio Ferreira, primo de Beto e também personagem; e a jornalista Flavia Cavalcanti, ex-exilada e militante da mesma organização. Os quatro se embrenharam nessa empreitada tortuosa para qualquer biógrafo, a de desvendar uma vida clandestina. Foram dezenas de entrevistas, depoimentos, viagens, discussões e surpresas. Um incansável trabalho de campo, de fidelidade à verdade e precisão dos fatos, que resultou num texto digno do melhor jornalismo investigativo.
Como se fosse um romance de não ficção, intercalando investigação jornalística, autobiografia e crônica, na fronteira entre os fatos e o relato ficcional, o texto segue os passos do mito criado em torno de um militante desaparecido para devolvê-lo à historia real. Eis então que temos de novo entre nós o “nosso amigo” guerreiro, o que pode não ser um consolo, mas oferece uma valiosa contribuição para a construção da Verdade, e e um soco na cara dos carrascos que o assassinaram.
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[Álvaro Caldas é jornalista, escritor, autor de Tirando o capuz e Balé da utopia, e professor da PUC-Rio. Foi militante do PCBR e, nos anos 1970, passou dois anos e meio preso.]