Atentados de 11 de setembro de 2001. Invasão no Afeganistão pelos EUA (2001-2002). Lula vence as eleições (2002). Guerra no Iraque (2003). Morte de João Paulo II (2005). Tensões na Faixa de Gaza (2008-2009). Morte de Michel Jackson (2009). Dilma é eleita primeira presidente mulher do país (2010). Massacres, entre eles em Realengo, em 2011. Primavera Árabe (2011). Julgamento do Mensalão (2012).
Quais os significantes que buscamos para construir o recente século 21? Ele existiria sem esse arranjo que cada um faz? Seria, então, uma pintura sempre inacabada, mas feita coletivamente a partir de uma memória discursiva que acionamos? Essas perguntas indicam que há no tempo presente um olhar do olhar, de discursos que nos atravessam, uma espécie de panóptico invertido em que cada um consome livremente as informações, fabricadas, na sua maioria, por conglomerados de comunicação que lançam seus refletores na face de seus consumidores. O efeito, assim como no panóptico de Bentham, é que a luz impede que se veja a própria maquinaria de vigilância. Não uma luz platônica, mas uma cegueira branca ao estilo de Saramago.
Às redes sociais são espaços onde o sujeito se inscreve com mais liberdade. Ao menos este é o discurso predominante para exaltar a mudança de paradigma frente ao modelo de comunicação de massa. Mas qual é a tonalidade que mais se destaca nestes espaços?
O trabalho de demonização do PT
No caso chamado de Mensalão, há nitidamente a fabricação do ministro do Supremo Tribunal Joaquim Barbosa como o mais recente herói da pátria, que está exterminando a corja de malfeitores que expropriam o dinheiro público. Como isto aparece no Facebook? Entre as inúmeras formas, a imagem do ministro de costas, e com sua toga preta, assemelhando-se ao Batman. Abaixo à frase: Batman é para fracos, o meu herói é negão, usa toga preta e está em Brasília lutando contra os maiores vilões da história do Brasil. No plano semiótico, é o discurso que faz a imagem de Barbosa assemelhar-se à de Batman, que por sua vez está onipresente, sobretudo, com o lançamento do filme O cavaleiro das trevas ressurge.
Quem não recebeu o post do Batman “real”? Ora, há um alinhamento do discurso da grande mídia sobre o julgamento com as liberdades reguladas, que pode ser observado pela forma como os sujeitos se inscrevem nas redes sociais. Mas não ousemos relativizar a posição dos vilões. Quem fizer, cairá nos cárceres do julgamento moral. Contraditoriamente, há o sentido comum de que estamos vivendo a pós-modernidade – clara exaltação a fluidez do tempo e da territorialidade –, ao passo que poderíamos empilhar acontecimentos em que a grande maioria das pessoas se engaja, mas na manutenção do sentido predominante, o conservador, que faz sacolejar até as poeiras do século passado.
Na edição da revista Veja de 14 de outubro, a imagem de Joaquim Barbosa, ainda criança, ocupa toda a capa, com a manchete: “Menino pobre que mudou o Brasil”. Na coluna da Veja online (10/10), Ricardo Setti elogia a eleição de Joaquim como presidente do Supremo, mas diz que “a de Lewandowski, nem tanto”. E o que dizer da coluna (06/10) de Azevedo, que melhor representa a opinião da Veja: “A mãe de Joaquim Barbosa também nasceu analfabeta! E não deu à luz um messias do araque!” Ao fabricar um novo herói brasileiro, o semanário segue com seu longo trabalho de demonização do PT – já fez relações ao Cérbero, guardião dos portões do inferno, assim como a Hitler, Stalin, grupos terroristas. E nessa história, quem seria o Coringa? Quem já apareceu por diversas vezes como foco do discurso da Veja, com imagem bem selecionada, estampando meio sorriso, que pelo contexto do uso, nos leva a pensar em sorriso sarcástico. Na edição de 31 de agosto de 2001, Dirceu aparece numa montagem com a manchete “O poderoso chefão”, alusão direta ao filme de Francis Ford Coppola.
Veja condena
Se Dirceu ocupa a persona do Coringa, foi o próprio ministro que tirou um coringa da manga, rejeitando o jogo perverso da grande mídia, ao declarar em entrevista à Folha de S.Paulo (07/10) que votou em Lula em 1989, 2002 e, depois do escândalo do Mensalão, 2006. Sua lucidez é um golpe à lógica maniqueísta da Veja: “Eu não me arrependo dos votos, não. As mudanças e avanços no Brasil nos últimos dez anos são inegáveis. Em 2010, votei na Dilma.”
Para além das elucubrações, há materialidade nestes acontecimentos. A materialidade que nos faz ver, ou seja, os discursos como práticas que constituem os objetos. Objetos do saber. Mas do que isto, práticas que inventam a própria realidade ao conferir-lhe sentido. No fim, é a trilogia foucaultiana funcionando; a do saber, do poder e da subjetividade. Seja na imprensa, no judiciário, ou na atividade política, os discursos são atravessados de saberes que instituem regras e estabelecem verdades. A verdade discursiva. Os sujeitos envolvidos, apenas ocupam determinada posição nos vetores da trama que constitui esta realidade discursiva. Alguns personagens podem sair de cena, mas o jogo continua como numa luta de espada, onde nós podemos ver as faíscas que aparecem quando as duas lâminas se chocam. Está aí o jogo de poderes. Por isso, tomar partido é se engajar num interdiscurso para, a partir das ferramentas dispostas, fazer circular o discurso, cuja luta será da ordem do intradiscurso.
Neste ensaio, o que interessa é a análise do ponto da vista da mídia. A Veja vem instituindo esta verdade discursiva desde o primeiro mandado do ex-presidente Lula. Neste episódio rotulado como o “Julgamento do Século”, o periódico condena antes mesmo de o julgamento terminar, mas se mantém coerente no discurso que vem praticando há muito tempo.
A repercussão nas redes sociais é apenas forma de subjetivação, linhas curvas que se formam das relações de poder. E poderíamos encontrar exemplo para, no mínimo, as duas posições deste campo político. Mas há sempre uma fuga, basta olhar atentamente como essas linhas tecidas – enunciações – a partir desses dispositivos se inscrevem. Veremos também um conjunto de enunciações que escapam às posições dadas, sejam a favor ou contra determinada posição.
A construção subjetiva do panóptico
Por outro lado, os consumidores do nosso tempo não são tão passivos como alguns teóricos no século passado imaginavam. Os jornais amargam índices baixos de credibilidade. Mas não é isto que está em questão. Ora, só podemos construir um sentido sobre nossa própria contemporaneidade a partir de referenciais e de como operamos esses conteúdos. Esse é o ponto. Os media podem não ser muito confiáveis, mas são eles que constroem uma malha virtual de sentidos sobre o mundo; este mundo que está ausente de nossa experiência. Uma invenção discursiva.
Se as teorias dos efeitos, como a hipodérmica, se tornaram primitivas no quadro dos estudos de comunicação, o uso que a grande mídia vem fazendo parece seguir um modelo muito próximo à crença de que a mensagem pode produzir determinado estímulo, o que resultaria no efeito X. Se nas eleições a prefeito do maior colégio eleitoral do Brasil, o candidato do PT foi para o segundo turno, mesmo com o “Coringa” sentado no banco dos réus, os efeitos só podem ser projeções dos sintomas de quem os produziu.
A construção subjetiva do panóptico era fazer com que o vigiado, pela repetição, passasse a naturalizar o sistema a ponto de agir como se não soubesse que, ao clarear sua cela, alguém o observava. Não há dúvida de que não estamos mais sob os cânones da sociedade disciplinar, àquela que Foucault se debruçou exaustivamente. Ora, os muros, as segregações, as hierarquias, as fronteiras sociais que pareciam fazer parte da natureza da vida orgânica, agora não cansam de se borrar. Talvez o que mais exalta aos nossos olhos seja no campo político, com afirmações, como a de que “não há mais ideologia”, que se tornam lugar comum – lembremos o espaço dedicado por Zizek em combater os teóricos da pós-ideologia. Como se o fim do horizonte revolucionário impedisse de se ver as sutilezas, a de que, num mesmo paradigma, há “formas de ver, planejar e priorizar setores da sociedade”.
Sentidos destoantes da vida
O que diferenciaria um governo do outro seria mais uma diferença de grau do que de natureza – nos discursos de que o governo Lula apenas deu sequência aos projetos iniciados pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, expressa justamente o desejo de que deveria ser uma mudança de natureza e não de grau. A impressão é de que percebemos essas diferenças, mas, descrentes, agimos como se não soubéssemos. Uma espécie de “saber não sabido” (Lacan). Esse faz de conta de que não sabemos seria responsável pela resistência em se implicar com os processos sociais e funcionaria como um artifício para a fantasia de que somos mais livres do que em outros tempos.
A implicação dependeria da demarcação de fronteiras e de territórios imaginários que seriam responsáveis por criar as cartografias de um horizonte possível. Basta observar o engajamento das massas, como neste acontecimento rotulado como o “Julgamento do Século”. Às pessoas defendem justiça. Mas há muitos outros casos em que elas defendem liberdade, amor, felicidade. Um conjunto de valores ora universais ao estilo do período da ilustração, século 18. Não estaria nesta mesma lógica a crítica da direita, aceita por boa parte da grande imprensa, às políticas de cotas? É nesse jogo discursivo que o nosso Batman “real” ganha força. Negro, que veio das camadas populares, se esforçou e venceu na vida. Essa é a metonímia do direito moderno nas capilaridades da vida social. O direito deve ser universal e não situacional. Quando as pessoas se projetam nas redes sociais, que segue uma estrutura rizomática, elas se inscrevem, sobretudo, a partir de um modo de pensamos que reproduz uma posição política, ideológica, mesmo que não se deem conta disto.
A hipótese que defendo é de que nossa subjetividade desliza muito mais sobre esse olhar fabricado, que recobre de sentido a contemporaneidade, do que num sentido destoante, que apontaria, então, para um mundo a ser visto na sua singularidade. Deslizando nas malhas virtuais, no fugidio simulacro das coisas, seríamos incapazes de nos implicar com a realidade, já que ela se evaporaria na saturação dos discursos midiáticos. Talvez este tenha sido o motivo que fez com que o escritor argentino Jorge Luis Borges se orgulhasse de não ler jornais. Uma atitude um tanto jocosa, mas de fato poucos escritores conseguiram produz tantos sentidos destoantes sobre a vida quanto ele.
A onipresença dos discursos midiáticos
Para o filósofo italiano George Agamben, o contemporâneo “fraturou as vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra)”. E “ele faz dessa fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre tempos e gerações”. Lembremos o caso pitoresco de Althusser de suspeita de ter estrangulado sua própria esposa, o que fez com que ele se tornasse um pensador velado, que não deveria ser citado. Seja pelo suposto crime ou pelo sentido hoje generalizado de que sua teoria é “ultrapassada”, na prática operamos sob a mesma estrutura do “saber não sabido”. Quando lemos autores como Foucault, Stuart Hall, Slavoj Zizek, só para citar alguns badalados, Althusser – mesmo indiretamente – continua presente, seja enquanto forma de crítica ou de elogio. Mas não ousemos citá-lo. No plano político, seria semelhando ao caso do “Coringa”; não ousemos defendê-lo.
Como entender esse movimento? Não estaríamos diante de arranjos conceituais para aquilo que Agamben tenta captar como o que faz com que um sujeito se torne contemporâneo de seu próprio tempo? Em síntese: aquele que percebe as sombras de seu tempo, criando uma demanda que precisa ser respondida, a ponto de levá-lo a tecer relações com outros tempos e com outras gerações.
Da Teoria Hipodérmica, passando pela Crítica, Escola de Toronto, Estudos Culturais e Latino-Americanos aos autores que fizeram escolas, como Baudrillard, Maffesoli, Lévy, o esforço intelectual para dar conta, como nos diz Agamben, das sombras do tempo, e acrescentaria do tempo presente, parece ser o combustível desses pensadores. Ao passo que o mundo se torna casa vez mais visível pelos media, projeta-se uma grande sombra, como se ele – o mundo – estivesse sucumbindo numa caverna, cuja possibilidade de luz seria, justamente, fraturar a onipresença dos discursos midiáticos; o que não quer dizer que haja hegemonia.
Ausência de novos arranjos teóricos
Aceitando a tese de Agamben, a de que perceber a nossa contemporaneidade dependeria desse movimento de inquietude com as sombras do presente, fraturando o tempo – na verdade não o tempo, mas os discursos que inventam um sentido de linearidade e continuidade na sucessão de fatos selecionados e articulados numa determinada estética –, não deveríamos colocar em xeque certa apatia à crítica, que parece acomodar o nosso tempo?
Parece não haver mais espaço para intelectuais como o historiador Eric Hobsbawm, que morreu no dia 1º/09, aos 95 anos. Em entrevista à Folha de S.Paulo em 1º de outubro de 2007, reforçou sua convicção de “ser de esquerda”, ao mesmo tempo em que declarou não acreditar mais no comunismo. Porém, diz Hobsbawm, “não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei o totalitarismo”. No entanto, haveria violência simbólica maior do que a praticada pela Veja três dias após a morte de Hobsbawm, resumindo o historiador num “idiota moral”? Coube a Associação Nacional dos Historiadores publicar em seu site uma nota de repúdio. O semanário ainda julgou o historiador pela “imperdoável cegueira ideológica”.
Nossa contemporaneidade corriqueiramente entendida como fluida e vazia de ideologia parece não se sustentar. Ou seria apenas um ponto de vista, ao estilo zizekiano. Em “A visão em paralaxe”, editado pela Boitempo, Zizek, recorrendo a Hegel, explica que sujeito e objeto são inerentemente “mediados”, de modo que uma mudança “epistemológica” do ponto de vista do sujeito reflete numa mudança “ontológica” do próprio objeto. Ora, a Veja está descrevendo o objeto – o historiador – com precisão, mas do ponto de vista da formação discursiva em que está inscrita.
O caminho aqui proposto por Zizek é sempre invertido do que normalmente se entende. O que move os processos de comunicação não é simplesmente uma ação de manipulação sobre um objeto para, por sua vez, manipular a mente do receptor. Bem diferente. Há sempre algo do Real – do que não se deixa simbolizar –, que aparece como incômodo ao sujeito – neste caso a instituição –, que passa a ser causa do desejo/sintoma. Há sempre algo a mais, um excedente, uma mais-valia no processo de comunicação que objeta as relações e faz resvalar o sentido (paralaxe), de tal forma que o ser do objeto dependeria desse olhar desde o início já objetado pelo próprio objeto.
Como entender o excesso de informação que marca o nosso tempo e, contudo, esse descolamento, essa saturação dos sentidos, como se a história fosse somente conteúdos acomodados nos discursos? Talvez devêssemos, ao invés de negar às teorias que brotam das inquietudes de cada tempo, buscar entender justamente esse movimento descontínuo que constitui as condições para a criação de conceitos, de formas de interpretação. Estaríamos carecendo de novos arranjos para entender as sombras de nosso tempo? Talvez.
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[José Isaías Venera é jornalista, com formação em psicanálise, e professor universitário]