Durante os 16 dias dos Jogos Olímpicos de Inverno em Vancouver, no Canadá em 2010, mais de 30 órgãos do governo americano – entre eles a Casa Branca, o FBI, o Departamento do Tesouro, o Centro Nacional de Contraterrorismo, a Secretaria Nacional de Defesa, os Comandos militares (incluindo o famoso Comando do Sul) e até um bunker nuclear da época da Guerra Fria (conhecido como “Cheyenne Mountain”) – receberam relatórios do consulado americano em Vancouver detalhando todas as manifestações que aconteceram e que aconteceriam. Todas mesmo. No pacote, eram descritas com minúcias o que os representantes americanos consideravam suspeitas de atos terroristas, possíveis ameaças de bombas, incidentes, e manifestações de qualquer tipo – até mesmo uma inofensiva bicicletada atraiu a atenção dos americanos.
Nos 16 documentos vazados pelo WikiLeaks intitulados “Vancouver 2010 Winter Olympics: Situation Report” (Jogos Olímpicos de Vancouver 2010: Relatório de Situação) disponíveis no Cablegate, é possível ver o grau de vigilância americana sobre os países que recebem megaeventos. Os relatórios, enviados geralmente por volta de 22h, continham uma sessão “Questões de Segurança”, onde eram detalhados os protestos que estavam sendo programados para os próximos dias, os que haviam acontecido naquele dia, incidentes e possíveis ameaças terroristas; outra chamada “Operações de Segurança” que acompanhava os compromissos de autoridades norte-americanas, principalmente os do vice-presidente Joe Biden, que assistia aos Jogos de Inverno; uma parte dedicada a “Assuntos Públicos/Diplomacia Pública” que relatava as atividades da equipe de relações públicas e geralmente não tinha nada a dizer; “questões consulares” que também não tinha nada a dizer na maioria das vezes e uma última sessão de “questões políticas e gerais” que podia dar o posicionamento dos times dos Estados Unidos nos jogos, falar do clima de festa na cidade ou dizer que “o tempo continuava quente em Vancouver, apesar da estação”.
Marcha improvisada
Vários relatórios mostram como as informações da polícia canadense eram amplamente compartilhadas com os serviços de inteligência americanos. O report #11 fala de um jogo de hóquei entre Canadá e Estados Unidos que poderia estimular a desordem pública: “As autoridades policiais locais estão preocupadas com a natureza potencialmente litigiosa do jogo entre Canadá e EUA e seu impacto na ordem pública. O local está localizado a quarteirões do distrito de entretenimento de Vancouver, dos corredores de pedestre e de vários hotéis. As autoridades esperam uma atmosfera carregada entre os fãs com implicações para as áreas referidas. (…) Como uma medida preventiva, o Departamento de Polícia de Vancouver pediu ajuda à B.C. Liquor and Licensing Branch com o fechamento às 19 horas das lojas de venda de bebidas públicas e privadas na área do centro durante este fim de semana.”
Até as redes sociais de organizações e manifestantes eram checadas e qualquer tipo de protesto considerado “antiolímpico” era detalhado antes mesmo de acontecer. No report #3, por exemplo, o consulado alerta para futuras manifestações de grupos anarquistas: “Antecipação de atividade de protesto: ‘Outra [manifestação]‘’2010 Autonomous Day of Action’ está prevista para segunda-feira 15 de fevereiro (…) pequenos grupos de anarquistas podem se envolver em atos de vandalismo e confronto com a lei”. E no report #12: “Uma manifestação intitulada ‘Games Over! Resistance Lives!’ (Os Jogos acabaram! A resistência vive!) está agendada para acontecer das 13h às 15h do dia 28 de fevereiro na intersecção entre as ruas Smithe e Cambie. O evento é anunciado como ‘um festival público barulhento para celebrar nossas comunidades e nossa resistência’. Essa manifestação está sendo organizada no site www.no2010.com“. E no report #18: “A manifestação “Games Over! Resistance Lives!” (‘Os Jogos acabaram! A resistência vive!’) está agendada para acontecer das 13h as 15h de hoje na intersecção entre as ruas Smithe e Cambie. As informações iniciais indicavam que os organizadores queriam que o evento fosse inofensivo para a polícia e para os manifestantes. Contudo, 171 pessoas estão confirmadas para comparecer ao local e eles podem bloquear as ruas. O grupo Black Bloc deve participar do evento, embora não haja indicação alguma de que eles queiram engajar-se em táticas violentas ou ilegais durante o evento. Discussões online sobre o evento indicam que um grande número de participantes pode prosseguir para a Tent Village para juntar-se a outros simpatizantes, uma decisão que pode se transformar em uma marcha improvisada.
Varas de pesca ameaçadoras
Outra ação citada em vários relatórios é a “Critical Mass Bike Ride”. O report #10 diz: “Atividade de protesto antecipada: a próxima atividade marcada digna de nota é a ‘Critical Mass Bike Ride’ no dia 26 de fevereiro. Os ciclistas planejam se reunir no lado norte da Galeria de Arte de Vancouver, na rua Geórgia, e pedalar pelas ruas de Vancouver.”
Já o documento número #2, enviado no dia de abertura dos Jogos de Inverno, diz que um cidadão americano foi deportado depois que a polícia encontrou uma granada de mão inerte e literatura pornográfica em seu veículo: “Em entrevista ao FBI ele disse que estava emocionalmente perturbado e não tem vínculos com grupos domésticos de milícias”, explica. No mesmo relatório, consta que um pacote suspeito foi identificado em um terminal de transporte aquático chamado Lonsdale Quay, e que o serviço foi suspenso até que o pessoal da Real Polícia Montada do Canadá usou um canhão de água, neutralizou a embalagem e constatou que a caixa continha varas de pesca e equipamentos.
Nem a igreja passou desapercebida pelos olhos do grande irmão. O documento #7alerta para um protesto organizado por membros da Igreja Unida do Canadá, estudantes católicos da Universidade da Colúmbia Britânica e estudantes universitários evangélicos, que marchariam no começo da tarde do dia 17 de fevereiro para destacar a forma como as Olimpíadas historicamente deslocam os pobres de suas casas. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Aqui não vai ser diferente
Como os documentos do WikiLeaks no Brasil já haviam revelado, mesmo antes da escolha do Brasil como sede das Olimpíadas de 2016 a segurança dos jogos já era um dos principais temas na pauta de reuniões bilaterais entre diplomatas e militares. Telegramasenviados pela embaixada americana em Brasília e publicados pelo Wikileaks revelaram que os EUA não só estavam preocupados com a segurança durante os megaeventos mas queriam lucrar com isso. “Os EUA buscam cooperação militar, oportunidades comerciais e já preparam um aumento do seu pessoal no país”, diz a comunicação diplomática.
Em 24 de dezembro de 2009, o Departamento de Defesa americano recebeu um relatório intitulado “Olimpíadas do Rio – O Futuro é Hoje”, assinado pela ministra conselheira da embaixada Lisa Kubiske apontando oportunidades comerciais e militares: “O governo brasileiro compreende que enfrenta desafios críticos na preparação dos Jogos de 2016 e demonstrou grande abertura em áreas como compartilhamento de informações a cooperação com o governo dos Estados Unidos – chegando até a admitir que poderia haver a possibilidade de ameaças terroristas”, diz o documento.
O raciocínio que se segue demonstra que os relatórios emitidos em Vancouver não foram uma ação isolada: “além de preparar as oportunidades comerciais que os jogos vão oferecer às empresas americanas, o governo dos EUA deveria se aproveitar do interesse do Brasil no sucesso olímpico para progredir na cooperação bilateral em segurança e troca de informações”.
O telegrama, de dezembro de 2009, diz que a missão americana já estava coordenando a ampliação de pessoal, estrutura e recursos, com suas agências em Brasília e no Rio de Janeiro – o que seria necessário para gerenciar o envolvimento dos EUA nos Jogos. “Já existem oportunidades para o governo americano buscar colaboração em função dos Jogos, incluindo aumentar a cooperação e a expertise brasileira em contraterrorismo”, finaliza.
Os comitês populares e manifestantes brasileiros que se cuidem: estarão todos sob a mira do “Big Brother” durante os megaeventos. Ou será que já estão?
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[Andrea Dip, da Agência Publica; colaborou Ciro Barros]