Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Eurocêntricos em campo

“Para nos vencer, o alemão ou o suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria que nascer em Vila Isabel ou Vaz Lobo. Precisaria ser camelô no Largo da Carioca. Precisaria de toda uma vivência de gafieira, de cachaça, de malandragem em geral” (Rodrigues, Nelson. Em: O futebol em Nelson Rodrigues:o óbvio ululante, o Sobrenatural Almeida e outros temas. José Carlos Marques. SP: Educ, 1912).

Que falta faz um cronista como Nelson Rodrigues! Além de entender de futebol, conhecia como poucos a alma brasileira. Para isso é preciso informação e sensibilidade, dois pré-requisitos aparentemente raros na maioria dos jornalistas esportivos de TV (que geralmente mantêm um blog para melhor disseminarem seus pontos de vista toscos quando o assunto é comportamento).

Independente da formação, seja graduado em Comunicação ou não, a maior parte dos comentaristas está despreparada para dissertar sobre certos assuntos, como cultura popular. Prova disso foram as críticas acerbas aos recentes episódios da menina que pediu a camisa de Lucas, jogador do São Paulo, no Couto Pereira; do constrangimento ao torcedor de verde do Celtic, no jogo do Corinthians no Pacaembu; e às manifestações dos catalães na partida entre Barcelona e Real Madrid.

Em qualquer lugar

O máximo que conseguiram foi condescender que os acontecimentos em Curitiba e no Pacaembu “poderiam ter ocorrido em qualquer lugar do Brasil”. É a mania de achar que o público brasileiro (e latino-americano) é mais mal-educado, violento e casca grossa que os europeus. No entanto, na Bundes Liga do ano passado torcedores atiraram objetos no gramado. Em jogos do campeonato espanhol, o laser é presença constante. A invasão de campo por desvairados nus (sociedades onde o corpo e a festa são amordaçados geram esses tipos folclóricos que as transmissões de TV censuram) são comuns nos jogos da Europa e EUA. E, não faz muito tempo, Inglaterra, Itália e Egito foram palco de cenas de barbárie entre torcedores. Não é preciso ser especialista para constatar que a insanidade e a babaquice são universais (e atemporais).

Mas nossos jornalistas esportivos televisuais são dominados pelo complexo de vira-lata, que continua mais vivo do que nunca. Acham que o Brasil se resume a seus condomínios de classe média, suas engenhocas eletrônicas e seus sedans importados (“amortecedores do tédio”). Por isso puderam, por exemplo, afirmar candidamente, com o campeonato paulista pegando fogo, que se estava discutindo na cidade a Champions League. Isso é tão delirante quanto achar, baseado em tuitadas, que se fala nas ruas sobre o clássico Barcelona e Real Madrid, e não sobre o possível rebaixamento do Palmeiras. Valei-me, Nelson Rodrigues!

Ninguém nega que parte dos jogadores mais talentosos está na Europa (situação propiciada pelo capitalismo internacional), porém é falta de complexidade considerar que por isso os melhores jogos acontecem lá. Quem não se lembra do “melhor ataque do mundo”, Romário-Sávio-Edmundo, sob a batuta de Wanderley Luxemburgo no auge, que não deu sequer um título ao Flamengo? (Não porque jogassem bonito e perdessem, como a seleção de 82, mas porque simplesmente não funcionaram juntos.) Também há complexidade no fato de que futebol é paixão, e um jogo tecnicamente fraco pode ser superior em emoção, como muitas vezes o são os da Série B. Ou seja, o bom futebol pode estar em qualquer lugar.

“Que jogo é esse?”

O jornalista inglês Tim Vickery, correspondente da BBC e que participa do Redação SporTV, afirma periodicamente (mas ninguém lhe presta muita atenção) que as eliminatórias sul-americanas da Copa são as mais interessantes do mundo porque o futebol no continente cresceu muito e porque nas da Europa tem muito time ruim.

Aí chegamos ao clássico Barcelona x Real Madrid do domingo, dia 7 de outubro (com 8 jogadores latino-americanos em campo). No estádio, pipocaram manifestações populares. Aquela gente fala catalão e a rivalidade com Madrid vem desde antes das lutas contra o franquismo. No Linha de Passe, superficialismos duvidosos: “a globalização está fazendo diminuir os nacionalismos”. E purismos pueris: “Não se deve misturar futebol e política”. Para a cultura catalã, como para a basca, futebol é política.

No Jornal da Band: “Show de Messi e Cristiano Ronaldo”. Puro deslumbramento. Fizeram dois gols cada um, é verdade, mas quem deu show no domingo foi Ronaldinho Gaúcho, nos 6 a 0 do Galo contra o Figueirense. Os gols do argentino e do português (que tiveram desempenho apenas razoável no clássico) foram corriqueiros; golaços foram o de Kieza contra o Corinthians e o de Fred contra o Flamengo. No entanto, durante a partida no Camp Nou, o narrador berrava, empolgado: “Que jogo é esse?”, como se estivesse diante de um evento extraterrestre.

“Todo mundo é índio, exceto quem não é”

Não era. Não existe hierarquia em matéria de cultura como se tem em economia; mas nossos jornalistas esportivos televisuais se colocam em inferioridade em relação aos europeus e não escondem uma certa lástima por não terem nascido no chamado “Primeiro Mundo”. E olhem que a Espanha nem é a Europa central; a Inglaterra é que é a verdadeira menina dos olhos desses que são autênticos “intelectuais de gabinete” (Oswald de Andrade), pois duvido que algum deles tome um cafezinho ou caninha num boteco, tamanha a ignorância do que se passa n’A vida como ela é.

A ESPN é uma adorável esquizofrênica. Seu formato é todo americanoide, mas produz denúncias graves contra Arthur Nuzman que as outras mídias ignoram (é do feitio dos esquizofrênicos falarem sozinhos) e belos programas, como O Brasil da Copa do Brasil, que seus jornalistas eurocêntricos parecem, por sua vez, ignorar.

Talvez porque não importe muito. Talvez o que importe são seus iguais, os assinantes de TV a cabo, os habitantes dos bairros nobres, com suas SUVs e tuítes nervosos (a classe média com a qual se identificam e da qual são porta-vozes, obcecada pelo sucesso, enquanto o povão em geral contenta-se em ser feliz). Aconselho trocar de canal cada vez que ouvir certos comentaristas começarem pontificando: “É da cultura do povo brasileiro…” É sinal de que lá vem bola fora. Porque, como diz o antropólogo Viveiros de Castro, “no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.”

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[Silvia Chiabai é jornalista]