Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Além de ser dedicado a Santo António, o dia 13 de Junho de 2005 vai ficar para a história do nosso país como o da morte de dois nomes maiores do nosso século 20 – Álvaro Cunhal e Eugénio de Andrade. E ficará igualmente na memória das Redacções dos meios de comunicação social como o dia em que tiveram de resolver um problema complicado: como gerir jornalisticamente a apresentação de dois eventos, ambos merecedores de grande destaque?

No caso da Imprensa, e em particular dos jornais diários, é muito interessante analisar o modo como o assunto foi resolvido. Nos extremos, encontramos o ‘Correio da Manhã’ e o ‘Diário de Notícias’. O primeiro solucionou o problema, dando o principal destaque aos dinheiros do santuário de Fátima. O segundo encontrou uma solução interessante fez duas entradas para o jornal, a da capa e a da contra-capa, dando, numa, destaque a Cunhal e, noutra, destaque ao poeta.

Como se passaram as coisas no Jornal de Notícias? Como se resolveu o problema e se chegou à primeira página publicada no dia 14?

Escreve José Leite Pereira, o director do Jornal, em resposta a um pedido de comentário do provedor do leitor ‘Sendo certo que em termos de importância, a morte de Cunhal superava, se assim se pode dizer, a de Eugénio, a verdade é que se estas mortes tivessem ocorrido em dias diferenciados teriam tido o principal espaço da primeira página’. Daí acrescentar: ‘Não me lembro de uma primeira página tão difícil de fazer. Foram longas horas de discussão entre chefia, direcção de Arte e direcção. Ensaios diversos. (?) Acabámos por optar por ter um verso de Eugénio a unir as duas notícias e dar a cada uma das fotos um destaque diferente. Entrámos, então, noutra correria, que foi a escolha do verso’.

O verso – ‘tudo o que faz o verão subir a prumo chegou ao fim’ – estende-se a toda a largura da capa, em branco sobre um fundo de azul celeste, do qual se destaca uma poderosa imagem de Álvaro Cunhal, da autoria de Alfredo Cunha. Neste mesmo plano, abre-se pequena janela a preto e branco para a morte de Eugénio de Andrade. O resultado é uma primeira página forte, à altura do momento, mas em que o poeta fica a perder relativamente ao político.

Não há jornalismo sem escolhas. Todos os dias, os jornalistas elegem de entre a multiplicidade do que têm para nos propor aquilo que entendem ser de interesse público. Escolhem não apenas os assuntos, mas igualmente o grau de importância a atribuir a cada um deles. Não existe uma fórmula matemática ou um software informático que resolvam este tipo de problemas. Mas se isto se passa nas rotinas do quotidiano, exigindo ponderação e clarividência, muito mais exigente se torna em momentos e perante acontecimentos de transcendência notória, que disputam, no mesmo dia, o mesmo espaço.

O que leva, por exemplo, a considerar que, ‘em termos de importância, a morte de Cunhal supera[va], se assim se pode dizer, a de Eugénio’, como pensa o director do JN? Certamente uma leitura que erige o campo político e as suas vicissitudes históricas como mais determinantes para a vida dos cidadãos do que a criação poética, que atingiu, em Eugénio, um dos seus momentos mais sublimes. A grande maioria dos media seguiu o mesmo padrão de escolha. Mas teria de ser assim? Poderia ser de outro modo?

Tocámos, até aqui, apenas a primeira página. Mas será que o tratamento dado a estes dois acontecimentos foi o adequado? Isto é foi completo, rigoroso, esclarecedor? Em extensão, não nos podemos queixar. A Eugénio são concedidas oito páginas, na área de destaque da edição do dia 14, valorizadas por uma ilustração inédita do pintor e escultor José Rodrigues. Já Álvaro Cunhal mereceu, além do destaque da primeira página, não apenas seis páginas do ‘Em foco’, mas um caderno especial de 20 páginas, de capa colorida, intitulado ‘Na morte de um resistente’ e em que se destaca um vigoroso trabalho fotográfico de Adelino Meireles.

Como foi possível ter tanto trabalho para apresentar, apenas umas horas depois de se saber da morte do ex-secretário geral do PCP, tanto mais que nesta altura já há jornalistas de férias? Porque o caderno sobre Cunhal já estava em grande parte preparado. Isso é uma prática habitual nos media, relativamente a figuras de grande projecção política, social ou cultural. Na reunião da manhã do dia 13, com os editores da política, editores de fotografia, chefia, direcção de Arte e direcção, foi definido o plano que material colocar no Em Foco e no caderno, depoimentos a conseguir, opinião a recolher (Eduardo Lourenço, Mário Soares e Francisco Rodrigues). O balanço é feito pelo director: ‘Correu bem. Mas mesmo com muito trabalho feito previamente (?) não são dias fáceis’.

Uma cobertura minimalista

‘Não há duas sem três’, diz o ditado. Como se não ‘chegassem’ a morte de Cunhal e Eugénio de Andrade, no espaço de menos de uma semana desapareceram igualmente o general Vasco Gonçalves (no dia 11) e o neurologista Corino de Andrade (no dia 16).

Quer no caso do militar de Abril e ex-primeiro ministro quer no do descobridor da paramilóidose ou ‘doença dos pèzinhos’ a cobertura do JN foi muito comedida.

No caso de Vasco Gonçalves, este jornal inseriu, ao cimo da primeira página, uma pequena chamada – ‘Calou-se a voz do ´companheiro Vasco’, acompanhada de uma foto e, em duas páginas da Secção de Política, deu notícia do essencial do seu percurso e acrescentou um conjunto de depoimentos de figuras do Estado e dos partidos políticos.

Para alguém que teve um papel decisivo no processo revolucionário subsequente ao 25 de Abril; para alguém que chefiou, embora em período de tempo curto, mas altamente acelerado, quatro governos deste país; para alguém que, especialmente com os acontecimentos do 11 de Março, influiu decisivamente na estrutura do sistema económico português, no panorama do sector bancário, na estrutura da propriedade fundiária, na configuração do sistema mediático; enfim, para alguém que suscitou tantos ódios e paixões, que influiu positiva e negativamente (conforme as perspectivas) no quotidiano de tantos portugueses, seria de esperar mais da cobertura feita pelo JN.

É certo que, no mesmo dia da morte de Vasco Gonçalves, se celebrou o 20º aniversário da assinatura que conduziria à plena entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia. Não é menos verdade que esta efeméride, a que o JN quis dar destaque – quer na primeira página quer em seis páginas da secção ‘Em foco’, com material previamente preparado – constituía uma excelente ocasião para repensar um acontecimento e um processo que marcou indelevelmente a vida portuguesa, especialmente num momento em que a União Europeia se vê mergulhada numa crise profunda. Mas, ainda assim, e ao contrário do balanço positivo feito pela Direcção, poder-se-ia ter ido além de uma cobertura que, para a relevância do caso, pode ser considerada minimalista.

Como escrevia ontem neste Jornal o sociólogo Paquete de Oliveira, Vasco Gonçalves ‘traiu-se´ com o gonçalvismo, mas nem por isso pode deixar de ser chave da mudança por que passou Portugal’, não compreendendo até ‘por que não teve luto nacional’.

Dias difíceis mesmo com trabalho previamente elaborado’