A Editora Rocco acaba de pôr nas livrarias A Mosca Azul, aguardada obra de Frei Betto, que já publicou mais de cinqüenta livros. Este teve seu título inspirado num poema de Machado de Assis, extraído de Ocidentais.
Curiosamente, quando fez a transcrição, Frei Betto encontrou A Mosca Azul imprensada entre outras duas poesias. A primeira, Suave Mari Magno, igualmente narrativa, fala da agonia de um cão envenenado, morto na rua, ‘ao sol de verão’, enquanto ‘nenhum, nenhum curioso/ passava, sem se deter,/ silencioso,/ junto ao cão que ia morrer,/ como se lhe desse gozo ver padecer’.
A segunda intitula-se Antônio José, homenagem machadiana ao escritor brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, queimado em companhia da mulher e da filha em Lisboa, em 1739, no esplendor de seus 34 anos, acusado de judaísmo.
Não é sem propósito lembrar intelectual levado à fogueira pela Igreja, que disfarçava seu braço sangüinolento e cruel através do Santo Ofício, entregando o pré-cadáver à Inquisição. Ou, no eufemismo bem eclesiástico, ‘ao braço secular’.
Os trezentos anos do nascimento de Antônio José foram lembrados ano passado por Alberto Dines e Victor Eleutério, com El prodígio de Amarante/O prodígio de Amarante, (Editora da USP), peça até então anônima, escrita num portunhol literário, como observa Moacir Amâncio, escritor e professor da USP, que aventa a hipótese de ter o dramaturgo carioca, para fugir à perseguição, utilizado o espanhol como disfarce.
Terceira margem
A Mosca Azul não é um livro de denúncias, a não ser por uma apenas, solar: o desvio de projeto de um partido ao chegar ao poder, que perdeu a ‘visão estratégica voltada à mudança social e ao protagonismo do povo organizado’.
Escritor mais do que frade, não pode ter sido sem emoção que registrou coisas como a que segue, fazendo a memória brotar: ‘Lembro-me de Marisa, mulher de Lula, (…), gravando milhares de camisetas no quintal de sua casa’. E reflete: ‘Admito, é bem melhor ter dinheiro em caixa e não precisar submeter militantes a jornadas heróicas noite adentro. Mas a que preço?’.
Com a palavra os gestores do partido flagrados com dinheiro na cueca e ilícitas operações financeiras disfarçadas com o eufemismo de ‘dinheiro não contabilizado’, que incluiu depósitos, empréstimos e retiradas em dinheiro vivo na boca do caixa. Nada muito diferente de conhecidas práticas de todos os outros partidos, mas que vindas do PT causaram terrível decepção, principalmente junto a militantes, simpatizantes e admiradores de seu heróico projeto, já pontilhado de mártires.
‘A luta sofrida pelo PT no bojo da corrupção denunciada pelo então deputado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) merece ser encarada num contexto mais amplo’, diz Frei Betto, para acrescentar: ‘O PT adequou-se de tal modo ao jogo burguês, que se aproximou de adversários históricos numa política de alianças que, se de um lado possibilitou a eleição de Lula, de outro inviabilizou, na atual conjuntura, a implementação dos compromissos históricos do partido’.
Não é menos severo no diagnóstico do que houve na confabulação por buscas de sustentação entre deputados: ‘O frágil apoio parlamentar abriu caminho aos operadores da política de resultados, que lançaram mão de práticas que, trazidas à luz, macularam gravemente o caráter ético do partido’.
Observador privilegiado do desvio de rota, pois trabalhava como assessor do presidente da República, Frei Betto desabafa: ‘De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste’. Frade dominicano, acostumado a meditações diárias para refletir sobre o percurso, decidiu: ‘Não era aquela a travessia mapeada por minha fé’.
Ao abandonar o governo Lula, criou metáfora que lembra conhecido conto de João Guimarães Rosa, A Terceira Margem do Rio, que integra os contos de Primeiras Histórias: ‘Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo’. Se ficasse, poderia ter enlouquecido com as irmãs de Soroco, de Soroco, Sua Mãe, Sua Filha, outro conto igualmente genial da mesma coletânea.
Dinheiro vivo
Está repleto de alusões literárias, sociológicas e filosóficas este novo livro de Frei Betto. O frade dominicano lembra Tomaso Campanela com A Cidade do Sol, Platão, com a República, e Thomas Morus, com Utopia, isto é, vislumbrando na política, porque feita por próceres que atestavam, às vezes até com certa arrogância, que com eles, do PT, as coisas seriam diferentes, um modo de aplicar rapidamente o modelo das primeiras comunidades cristãs, tal como narradas nos Atos dos Apóstolos, ou nas Comunidades Eclesiais de Base, cobiçadas por gente como Fernando Henrique Cardoso para rechear um novo partido, quando o projeto do PT estava ainda em gestação.
Frei Betto ficou 687 dias – de 1º de janeiro de 2003 a 18 de novembro de 2004 – como assessor especial da presidência da República.
De ponto tão privilegiado de observação, constatou uma verdade incômoda, dolorosa, diante da qual ninguém pode ficar indiferente, assim resumida:
‘Um pequeno núcleo de dirigentes do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas, nem nos anos sombrios da ditadura: desmoralizar a esquerda.’
É preciso dizer mais? Talvez não, mas é indispensável ler seu livro, esclarecedor pela visão de contexto, elaborada sem nenhum ressentimento, próprio de um cristão que, mesmo na sua condição de religioso, vive no hostil mundo leigo, bem diverso daquele dos conventos, onde em sérias revisões de vida cada um pode criticar a todos e ser por eles criticado.
Não, a mosca azul do poder cega os olhos de muitos, fecha seus ouvidos, endurece seus corações, lança-os em brigas fratricidas por cargos, posições, salários, e – oh dor! – também por dinheiro vivo. Primeiro, disfarçado em meio nefando a ser tolerado em prol de causa pura e, depois, rapidamente, transformado em benesse natural, própria das posições ocupadas no interior dos aparelhos do Estado, entorpecendo qualquer antigo pudor ético.
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social