Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A (tele)novela continua

Matérias veiculadas pelo jornal O Globo entre os dias 9 e 12 de fevereiro de 2006 alinham-se, do modo como foram editadas, aos grupos contrários à adoção no Brasil de políticas públicas e privadas de ações afirmativas, voltadas à promoção de justiça e desenvolvimento para a comunidade negra brasileira (pretos + pardos, seguindo a metodologia do Censo do IBGE).


Analisando o conjunto do material publicado observa-se que a posição do jornal (contra a ação afirmativa) interferiu tendenciosamente em favor de um só lado. Ser a favor ou não de ação afirmativa para negros(as) no espaço de opinião e no editorial é perfeitamente compreensível. O problema é a falta de equilíbrio na apresentação de ambos os lados, o que vai de encontro ao mínimo exigido na feitura (apuração, redação e edição, em resumo) de uma matéria jornalística.


Basta apurar


O que passo a observar neste espaço é um dos motivos da existência deste Observatório da Imprensa: a manipulação de fatos e dados sem mostrar, de maneira igualitária, todos os lados do assunto abordado. Isso significa contextualizar o problema e, mesmo havendo opinião, dar-se a oportunidade ao leitor de formar a sua própria. Para isso não faltam fontes que indiquem diversas leituras a quem lê o texto jornalístico.


Na edição de 9 de fevereiro (quinta-feira), o tema cotas nas universidades públicas foi alvo da principal manchete de capa de O Globo, que no subtítulo já indicava o privilegiar de uma parte em prejuízo da outra. Os três professores de Direito ouvidos no box ‘Palavra de especialistas’ não representam uma posição unânime. Enviei mensagem curta à seção de cartas (não publicada, obviamente) alertando para a ausência de outras vozes no campo do direito tão relevantes quanto as dos professores ouvidos.


Basta apurar que a equipe de reportagem de O Globo as encontra com facilidade no ‘mercado das fontes jornalísticas’. Também há o recurso da leitura de artigos e as citações de outros constitucionalistas, entre os quais o atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Benedito Barbosa Gomes, que já escreveu à exaustão sobre ações afirmativas e sua constitucionalidade no direito brasileiro. Um de seus mais recentes artigos encontrado no livro Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas, editado em conjunto pelo Ministério da Educação, a Unesco (da Organização das Nações Unidas, só para lembrar) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (livro da coleção Educação Para Todos, distribuído pelo MEC em 2005), traz diversos trechos que podem se contrapor aos comentários dos ‘especialistas’ escolhidos pelo jornal O Globo.


Estaca zero


No dia seguinte (10 de fevereiro, sexta-feira), o título da manchete retomava a posição dos reitores, que é a de colocar dificuldades para a adoção das cotas raciais no menor espaço de tempo possível. No subtítulo aparece a pressão política que, no dia 11 (sábado), estaria cristalizada na palavra do presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (PcdoB-SP), ao admitir que o projeto voltaria (indevidamente, conforme o regimento da Câmara) ao plenário para ser votado por todos os deputados. A respeito desse episódio vale publicizar (está nas listas na web) parte da mensagem enviada por frei David, da organização Educafro, pioneira na defesa e na promoção do acesso de negros(as) ao ensino universitário. Neste correio eletrônico, o frei nos relata:




Quarta-feira, 8/2/2006 às 11 horas os deputados (de todos os partidos) da Comissão de Constituição e Justiça, por unanimidade, aprovaram o projeto de cotas nas universidades federais. Como é do conhecimento de todos/as, mais de 30 projetos tramitaram ou tramitam no Senado e na Câmara com o foco na inclusão de alunos da rede pública, negros, indígenas, portadores de necessidades especiais. Este fato mostra que os deputados/as inteligentes e que respeitam o cidadão levam suas reivindicações para a casa das leis.


Valeu a pena o trabalho realizado por pessoas de várias entidades do movimento negro, estudantil e movimento social, indo de sala em sala, gabinete em gabinete, enviando e-mail, telefonando… ou seja, fazendo a militância de sua entidade. O projeto foi para o Senado Federal; no entanto, uma manobra articulada pela Rede Globo está incentivando deputados do PFL e do PSDB a recorrerem da aprovação e trazer o Projeto de Lei 73/99 de volta obrigando-o a passar pelo plenário da Câmara, onde os deputados antigoverno estão confundindo projeto do povo com interesse do Lula. Entendemos que a luta pela inclusão deva ser bandeira de todos os partidos. A autora do projeto de cotas 73/1999 é uma deputada do PFL! Entendem a maldade desta campanha?


O regimento interno é claro: qualquer projeto, sendo aprovado por unanimidade em duas comissões, vai direto para o Senado. O nosso foi aprovado em três comissões! 1) Educação; 2) Direitos Humanos; 3) Constituição e Justiça. Em todas elas houve a presença atuante dos deputados do PSDB e do PFL. Talvez, com medo da presença do movimento negro/social e estudantil, votaram a favor. Será?


O líder do PFL, deputado Rodrigo Maia (estivemos pessoalmente com ele e nos garantiu que votaria a favor; disse-nos inclusive que não poderia ser diferente, pois o projeto era da deputada do partido dele Nice Lobão) e o líder do PSDB (assinou o pedido de urgência para este projeto, a pedido do movimento social) estão, por pressão da Globo, recuando e fazendo voltar à estaca zero, podendo ficar este projeto nas gavetas por um, dois, três ou mais anos. (grifo nosso).


A parte informativa desta mensagem confirma, com maior contundência, outras informações veiculadas, entre as quais no próprio Globo de sábado (11 fevereiro) via declarações dos deputados Carlos Abicalil (PT-MT) e, em parte, Rodrigo Maia (PFL-RJ).


Uma ‘premonição’?


Retornando à sexta (10 de fevereiro), o jornal voltou com outros ‘especialistas’: os geneticistas. Esta retomada tenta colocar os defensores das cotas raciais (parte das ações afirmativas) como defensores do conceito biológico de raça. Evidentemente que estamos, os defensores da citada ação afirmativa, usando a palavra raça no seu sentido ligado às ciências sociais. Na mesma página, uma pequena entrevista no estilo ‘pingue-pongue’ com a professora Wania Sant´Anna, historiadora e ex-secretária estadual de Direitos Humanos no Estado do Rio, é a única voz a favor das cotas raciais nas universidades públicas ouvida nesta edição em que, na seção de cartas, todas as manifestações de leitores apoiaram a posição do jornal, que foi expressa no editorial denominado ‘Bom-mocismo’ (cujo teor pode ser uma faca de dois gumes para O Globo, que nele peca, mais uma vez, pela generalização em sua análise e julgamento do magistério e das suas lutas por melhores salários e condições de trabalho).


Outro detalhe interessante é que, nesta mesma edição do jornal, há uma ligação forçada editorialmente (e mantida nos dias seguintes) entre a qualidade da educação no país e a ação afirmativa na modalidade cotas raciais para o acesso à universidade pública. Na leitura do conjunto das matérias de sexta e sábado nota-se a presença marcante de representantes das entidades privadas de ensino superior, cuja visão alcança apenas o(a) estudante negro(a) como mero consumidor de seus ‘produtos educacionais’.


Isso sem falar nos comentários do presidente da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Cofenem), Roberto Geraldo Paiva Dornas, que em dado momento diz a seguinte ‘pérola’: ‘Daqui a pouco, vai concluir a faculdade não quem tem mais competência, e sim quem é preto, índio ou veio de escola pública. E a sociedade vai recusar o título’. Estará aí embutida nesta última frase alguma ‘premonição’ a respeito do mercado de trabalho para estes jovens no futuro? A seção de cartas do dia 11 de fevereiro apresentou oito manifestações de leitores, sendo seis contra as cotas e duas favoráveis a esta modalidade de ação afirmativa.


As resistências continuam


No meio disto tudo, as matérias do jornal insistem em colocar os termos negro e pardo separados, quando na verdade o correto é dizer negro como o somatório dos grupos preto e pardo. A este respeito sugiro aos colegas a leitura do texto (encontrável no site do Ipea) denominado ‘O sistema classificatório de cor ou raça do IBGE’ (novembro, 2003), de autoria do sociólogo e consultor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Rafael Guerreiro Osório. Entre tantos trechos interessantes (e só pra dar ‘água na boca’) destaco:




Portanto, a agregação de pretos e pardos e sua designação como negros justificam-se duplamente. Estatisticamente, pela uniformidade de características socioeconômicas dos dois grupos. Teoricamente, pelo fato de as discriminações, potenciais ou efetivas, sofridas por ambos os grupos, serem da mesma natureza. Ou seja, é pela sua parcela preta que os pardos são discriminados. A justificativa teórica é obviamente mais importante, pois ao fornecer uma explicação para a origem comum das desigualdades dos pretos e dos pardos em relação aos brancos, coloca os dois grupos como beneficiários legítimos de quaisquer ações que venham a ser tomadas no sentido de reverter o quadro histórico e vigente dessas desigualdades.


As resistências continuam fortes na área do jornalismo, especialmente na mídia. Porém, nos últimos anos o debate sobre ações afirmativas já alcançou a chamada ‘grande imprensa’, acabando por flexibilizar as opiniões de vários jornalistas e mesmo ganhar a adesão de alguns à defesa das ações afirmativas. Há cerca de 27 anos, pelo menos, estudos de caráter quantitativo (feitos por exemplo pelo IBGE) comprovam os efeitos do racismo no campo do trabalho e o que isso ainda provoca de prejuízo para a comunidade negra no Brasil. Tais escritos acabaram confirmando o que, muito antes, o movimento negro brasileiro já dizia sobre a discriminação racial em nosso país.


Ações e políticas


Tendo este quadro como pano de fundo, surgiram entre o primeiro semestre de 2001 e o primeiro semestre de 2003 três grupos a tratar da chamada questão racial na mídia, nos sindicatos de jornalistas nos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo e no município do Rio de Janeiro. Em linhas gerais, eles objetivam trazer à discussão a promoção do(a) profissional negro(a) no campo do trabalho na área da comunicação social impulsionado(a) pela educação.


O Núcleo de Comunicadores Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul, ligado ao Sindijor-RS, surgiu em 2001, assim como a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) em SP. Dois anos após, em junho de 2003, era criada a Cojira-Rio. Em meados de 2004, durante o 31º Congresso Nacional de Jornalistas, em João Pessoa, na Paraíba, foi aprovada a tese escrita pelos três grupos denominada ‘Visibilidade às questões étnicas nos meios de comunicação e no mercado de trabalho’. Pela primeira vez era discutido o tema pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) em seu principal encontro oficial.


Ao todo, 11 proposições encerram a tese citada, entre as quais destacamos a de nº 3, que defende parcerias com outros grupos institucionais que auxiliem no desenvolvimento de ações e políticas para atender às demandas históricas da comunidade negra brasileira, ‘com o objetivo de promover a igualdade racial entre os trabalhadores dos meios de comunicação e também para melhorar a qualidade da cobertura jornalística dos temas relacionados com a etnia negra e seu viver’.

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Jornalista, integrante da coordenação da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio) do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro