Três homens com dois revólveres e uma metralhadora entram numa agência bancária que naquele 1º de julho de 1968 ficava entre a avenida Angélica e a alameda Barros, em Santa Cecília, em São Paulo. “Quem sair leva bala!”, grita o chefe da operação, engrossando a voz. Aterrorizada, uma cliente chora e é consolada por outro dos assaltantes: “Não está acontecendo nada”. Do caixa retiram o que corresponderia hoje a R$ 124 mil. Saem sem dar tiro.
O chefe da operação é Carlos Marighella (1911-1969), comunista graduado com mais de três décadas de atuação política, poeta bissexto e agora líder da Ação Libertadora Nacional, maior grupo armado de oposição à ditadura, que assalta bancos e trens pagadores como parte da estratégia para fazer a revolução. Quem lhe sugerira aquela exata agência, de poucos funcionários e conhecido horário de entrega de dinheiro, foi um amigo bem instalado no capitalismo: sócio de corretora de valores de sucesso, treina judô num edifício ao lado.
A revolução não vai acontecer e em um ano Marighella cairá, como se dizia no jargão da militância. Até lá, o noticiário já o terá transformado num brasileiro maldito. Tão maldito que, mesmo depois de quatro décadas de sua morte, há quem tema dizer seu nome mesmo em democracia plena, temor que no mais das vezes surge por ignorância, não por ideologia. À tarefa de contar em pormenores essa história proscrita se lançou o jornalista Mário Magalhães, sem temer a colossal trabalheira que isso lhe daria. Levou nove anos para fazer um livro que, como adverte, não se trata de hagiografia a favor ou libelo contra o protagonista; o que tentou foi narrar sua vida sem julgá-lo. E nessa reportagem exaustiva, na qual grandes e miúdos personagens se revezam em encontros, traições, prisões, fugas, espionagem e disfarce, acaba por abarcar meio século de história política brasileira.
O catatau faz valer. As mais de 700 páginas de “Marighella – O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo” são lidas sem cansaço. A dificuldade do leitor, se não for afeito ao tema, será talvez a de manter o ritmo veloz ao acompanhar acontecimentos que enquadram a travessia longa: revoluções russa e cubana, getulismo e Intentona Comunista, Estado Novo e golpe civil-militar de 1964, Segunda Guerra, campanhas por redemocratização.
Amor à vida
Quem é Marighella no meio desse redemoinho? Um mulato baiano, filho de operário italiano com dona de casa descendente de escravos. Desde os tempos de ginásio, revela-se poeta de versos ora líricos, ora satíricos. A fama de valente, embora não fosse brigão, cresce na mesma medida que a de sedutor, de um tipo que não fumava nem bebia, muito menos sabia dançar. Ainda jovenzinho, é cativado por ideias de justiça social que identifica no marxismo e o levam a se tornar freguês da carceragem e deputado constituinte e guerrilheiro. Afável, às vezes estoura. Quando as denúncias contra Stálin feitas por Kruschev – o regime stalinista se revelou em prisões, torturas e assassinatos, antissemitismo e culto à personalidade – levam muitos dos seus confrades do PCB a se afastar do comunismo, seu mundo quase vem abaixo – tamanho homem chora na frente dos camaradas.
Logo se refaz do estupor, posicionando-se ao lado da Cuba de Fidel Castro. E, quando aos militantes se recomendava isolamento monástico, mantém-se em atividade febril. Vai preferir morrer dando tiro a ter de voltar para a prisão e ser outra vez torturado. Se desperta rejeição em seu país por roubar banco, desperta simpatia internacional como autor do “Manual do Guerrilheiro Urbano”, obra que inspirará movimentos de resistência e contestação nas décadas de 1960 e 1970.
Por que nove anos – cinco em dedicação exclusiva ao livro? “Quase tudo foi muito difícil de encontrar, para desvendar os fatos reais sob as aparências das versões, tanto dos detratores quanto dos partidários de Marighella. Por um lado, certa história oficial quis apagar os rastros dele da história do Brasil. Por outro, Marighella passou quase toda a sua vida adulta escondendo as pegadas, porque era uma questão de sobrevivência.” O leitor se surpreenderá com tantas minúcias recolhidas – se não estava na cena, o biógrafo buscou seus vestígios em outros lugares. Um exemplo: o dia e a hora em que, nos anos 1930, Marighella entrou no mictório público do largo do Arouche foram encontrados no relatório do espião policial que o acompanhou até lá. A busca nos arquivos foi apenas parte dessa aventura histórico-investigativa. A outra foi ouvir gente que conviveu com Marighella, da professora de inglês no Ginásio da Bahia, em fins da década de 1920, ao policial da equipe que o baleou e prendeu no cinema em 1964.
O que pode parecer um transtorno – o tempo da gestação, de nove anos em vez de nove meses – ajudou a cumprir seu intento, como explica o autor. Interlocutores tinham motivos vários para querer evitá-lo: repressores temiam a revelação de crimes, perseguidos receavam expor a memória. Insistiu. E foi assim que, depois de tentar de 2003 a 2011, ouviu de policiais que estiveram na tocaia que assassinou seu biografado os pormenores – sobretudo o fato de ele estar desarmado. Nem todas as revelações envolviam dor. Clara Charf, companheira de Marighella, resistiu anos até lhe dizer como tinha sido o primeiro beijo trocado: numa romântica caminhada dos dois pelo Rio, na década de 1940. Poucos relatos, como explica o biógrafo, deram a dimensão da barbárie como o do empresário francês Jacques Breyton, militante da Resistência Francesa que esteve preso em Montluc, prisão administrada por Klaus Barbie, conhecido como “Carniceiro de Lyon”. Nas mãos da equipe do delegado Sergio Paranhos Fleury, Breyton relata que sofreu muito mais do que na dos nazistas.
Marighella é “hoje objeto de desinteligência apaixonada, o que confirma que o personagem sobreviveu à morte física”, define seu biógrafo. Um clipe dos Racionais MC's sobre o guerrilheiro virou fenômeno midiático, com milhões de exibições no YouTube. A dimensão da presença de Marighella se pode notar numa comparação com outro líder de esquerda, morto mais de duas décadas depois. Luiz Carlos Prestes (1898-1990), que se inclui entre os grandes protagonistas políticos do Brasil do século XX, é “de algum modo uma figura do passado”, observa. Um homem para quem “o conformismo é a morte” tinha vocação para mártir? Seu biógrafo discorda: “Marighella tinha vocação para viver, amava a vida, viveu intensamente”.
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[Josélia Aguiar, para o Valor Econômico]