Não é tarefa nada fácil resenhar um livro de Marilena Chaui. A tarefa se torna particularmente ingrata quando o livro é Simulacro e poder – uma análise da mídia, em que a filósofa logo nas primeiras páginas critica a resenha na mídia:
“(…) começa nos dizendo que seu autor conhece o assunto melhor do que o escritor, o diretor, o compositor, o intérprete. Depois de assegurar ao leitor sua superioridade, o resenhista, ainda sem nos dizer do que está tratando, conta-nos as idéias excelentes que ele próprio teve durante a leitura, a projeção ou audição do objeto a ser resenhado: a seguir, conta-nos as associações com outras obras que a obra resenhada lhe sugeriu, revelando-nos um resenhista muito cultivado em seu campo. Mais adiante, o resenhista, quando possível, narra algum fato ou alguns fatos que mostram que ele conhece pessoalmente o autor da obra e o que acha dele. Finalmente, no último parágrafo, somos informados sobre o título da obra, o tratamento do assunto, o nome do autor e onde encontrar a obra”.
Nas aulinhas da Faculdade da Faculdade de Filosofia da USP aprendi a distinção entre “elogio” e “apologia”, entre o discurso que se ocupa do bom, do belo e do justo e o que procura defender uma tese ou atacar a contrária. Pelos textos publicados no Observatório da Imprensa, tenho aprendido diariamente a diferença entre “apologia”, “elogio” e “jornalismo”. Ao contrário do “elogio”, o “jornalismo” não visa somente o bom, o belo e o justo, mas a precisão na divulgação da informação útil com alguma isenção de ânimo em textos que provoquem alguma reação de estranhamento no leitor. Segundo Alberto Dines, o estranhamento pode ser a chave para o renascimento do jornalismo. O jornalismo apologético ou o “lacerdismo” tardio não podem ser chamados de “jornalismo”.
Fiz esta breve distinção entre “elogio”, “apologia” e “jornalismo” não para irritar a autora, mas para definir de que maneira pretendo resenhar a obra. Não vou nem atacar nem defender o livro da Marilena Chaui. Quem deve se ocupar de vender livros são as editoras e as livrarias. A demolição ficará a cargo dos adversários intelectuais e inimigos políticos da autora. Procurarei seguir o conselho de Alberto Dines e resenhar a obra de maneira a provocar algum estranhamento no leitor.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira a autora trata da mídia, na segunda de direitos humanos e do autoritarismo na sociedade brasileira. Concentraremos nossos esforços na primeira parte, que é dividida em oito capítulos. Para entender melhor os primeiros capítulos da primeira parte do livro, entretanto, é preciso começar a resenha pelos últimos.
No último capítulo Chaui trata dos meios de comunicação como poder. Faz distinção precisa entre o poder econômico e o ideológico da mídia. Afirma que os “proprietários dos meios de comunicação são suportes do capital”. Mais adiante, retoma a tese que já havia exposto no livro Cultura e democracia (Editora Moderna, 1981, 1ª edição) ao sugerir que “a peculiaridade da ideologia está no seu modo de aparecer sob forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e sua eficácia social, política e cultural funda-se na crença na racionalidade técnico-científica”.
Atopia e acronia
O último é a chave para a compreensão dos primeiros porque é nele que a autora deixa bem claro que sua análise dos meios de comunicação se inscreve na tradição crítica marxista que ela mesma ajudou a preservar. Chaui parte do pressuposto de que a sociedade é dividida entre produtores e consumidores de mercadorias e saberes (não sem afirmar que os saberes também são tratados como mercadoria pela indústria cultural). Acredita que há uma classe de pessoas que detém o conhecimento ou que, em razão de deter os meios de reprodução de suas próprias opiniões, está em condições de fomentar realidades ilusórias – os simulacros.
Por isso, logo no primeiro capítulo ela critica o procedimento dos jornalistas televisivos que transformam em notícia as sensações que os fatos provocaram nos seus agentes ou em si mesmos ao fazerem a reportagem. Segundo a autora, em razão desta perversão, “os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado”. O livro não especifica detalhadamente, entretanto, os conceitos da autora em relação aos vocábulos “público” e “privado”.
No capítulo “Os meios de comunicação” ficamos sabendo que a transubstanciação da sensação em fato “é e pode não ser” uma escolha deliberada da mídia. É neste capítulo que Marilena explica em detalhes a atopia e a acronia (respectivamente, ausência de referências espaciais e de referências temporais) da TV, que transformam o meio em mensagem (em produtor de realidades), bem como as regras de Mander para a transmissão decorrentes das limitações tecnológicas da própria televisão.
Lógica inexorável
Em razão de suas limitações, a TV impõe escolhas a jornalistas, editores e produtores. Portanto, a produção de realidades artificiais ou de simulacros pode não ser intencional. Na verdade esta característica da TV pode não estar necessariamente ligada à reprodução do capitalismo. Afinal, as limitações técnicas da mídia continuariam existindo mesmo sob um regime socialista, comunista ou anarquista.
Segundo a autora, em conseqüência das escolhas e das limitações técnicas da TV, a sociedade capitalista pós-moderna somente consegue produzir simulacros. E o simulacro é o espetáculo “quando capturado, produzido e enviado pelos meios de comunicação”. A produção de simulacros teria sido intensificada em razão da revolução digital e da internet, pois a “multimídia potencializa um fenômeno que já tínhamos frisado ao nos referirmos à televisão, qual seja, a indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas em um mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis”.
O livro de Marilena Chaiu é coeso, coerente e, sem dúvida alguma, profundo, apesar de não muito volumoso. A agradável sensação de mal-estar que ele provoca no leitor é imensa. A lógica das proposições e conclusões é inexorável. É difícil discordar da autora. O capitalismo é a Matrix, a mídia o instrumento de sua construção e preservação, o cidadão a bateria que alimenta o sistema de produção e consumo de mercadorias, “os proprietários dos meios de comunicação são suportes do capital” e a filosofia crítica o instrumento de libertação. Mas onde está Neo?
O nó de Marx
A critica marxista deve muito a Marilena Chaui. Contudo, o próprio marxismo parece não ser capaz de apreender a revolução digital e suas conseqüências.
Marx nos fala de classes sociais distintas e opostas às quais as pessoas estariam inexoravelmente acorrentadas em razão de sua forma de inserção no processo de produção e circulação de mercadorias. Os operários, donos exclusivamente de sua força de trabalho, eram os produtores das mercadorias. Os capitalistas, donos do capital, exploravam os trabalhadores obrigando-os a produzir mais-valia (lucro na terminologia capitalista). A revolução transformaria os operários em donos dos meios de produção e o conflito de classes deixaria de existir.
Para Marilena Chauí, as características perversas do capitalismo teriam sido potencializadas pela comunicação de massa. Ela cita Francisco de Oliveira para demonstrar que o próprio Estado teria se tornado neoliberal, ou seja, abandonado a preocupação com a produção e a força de trabalho para atender à necessidade de liquidez do capital. Não é fácil desenrolar o novelo de idéias do livro. Para tanto, primeiro precisamos desfazer o nó górdio dado por Marx.
Comunidades incômodas
O filósofo alemão deu à sua crítica da economia capitalista a aura de crítica da sociedade capitalista como se esta realmente existisse. O capitalismo não é o único meio de produção e circulação de mercadorias. Na verdade, desde que surgiu o capitalismo coexiste com outras formas de produção consideradas menos desenvolvidas. Durante a Revolução Industrial o trabalho assalariado se tornou realidade na Europa, mas a mesma Europa que intensificou suas trocas com o Novo Mundo em que a produção era realizada com mão-de-obra escrava. Na atualidade, embora a definição dos preços dos produtos agrícolas seja globalizada e sua circulação dependa de toda uma infra-estrutura moderna e informatizada, milhões de produtores rurais latino-americanos, africanos e asiáticos produzem apenas o que necessitam (seus produtos não são mercadorias e não têm seu valor de uso definido pelo valor de troca). O artesanato é uma realidade aqui e na Comunidade Européia e um bom artesão em madeira, vidro e ferro pode viver tão bem ou melhor do que qualquer microcapitalista.
Em razão de seu apego ao materialismo econômico como fundamento da estruturação da sociedade e definição das classes sociais, Marx desprezava as “comunidades de eleição”. Dentre estas tinha particular desprezo pelas religiões, que considerava o “ópio do povo”. Contudo, nem mesmo o criador do marxismo foi capaz de explicar por que os partidos comunistas também não eram “comunidades de eleição”.
Um subproduto da revolução digital que parece incomodar os marxistas é a ilimitada possibilidade de criação de novas “comunidades de eleição”. No passado o cidadão não estava em condições de definir limites e propósitos de suas “comunidades de eleição”. Na verdade as comunidades não eram “suas”, pois, ao aderir estava obrigado a cumprir regras definidas por outras pessoas. Se entrava numa religião, o ritual era definido e conduzido por uma classe de pessoas com conhecimentos teológicos. Caso abandonasse a religião e se filiasse a um partido comunista deveria se submeter ao comando de líderes ou chefes políticos, pessoas capacitadas para definir o programa de ação revolucionária segundo a mais cristalina ideologia marxista-leninista.
Preconceito intelectual?
As pessoas não fazem e nunca fizeram parte apenas de classes sociais. Também integram e integraram “comunidades de eleição”. Em razão do desenvolvimento dos meios de comunicação e da internet, da universalização da circulação de informação, qualquer cidadão pode criar sua “comunidade de eleição” e transformá-la em instrumento de reprodução da própria vida material (uma ONG ambientalista financiada com dinheiro público e privado, por exemplo). A revolução socialista deixou de ser necessária porque o capitalismo colocou nas mãos das pessoas os meios tecnológicos para transformar suas vidas, criar “comunidades de eleição” e regrar sua existência social e econômica.
Ao afirmar que a internet é semelhante à TV porque a “multimídia potencializa um fenômeno que já tínhamos frisado ao nos referirmos à televisão, qual seja, a indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos”, a autora despreza o que chamarei de “efeito biblioteca”. Numa biblioteca, em qualquer biblioteca de qualquer tempo, na biblioteca de Alexandria sob Ptolomeu I ou na do Congresso Americano em XXI dC, existem livros de todos os assuntos. Cabe ao leitor escolher o que lhe interessa, mas o repertório será sempre limitado ao acervo. O acervo, entretanto, não limita as relações que podem ser feitas entre as obras, nem suas interpretações. A biblioteca é finita em obras, mas cria possibilidades infinitas.
Com a invenção da TV, o “efeito biblioteca” (finidade ilimitada) passou a ser visual e sonoro. O observador não escolhe a programação, mas seleciona o canal, o horário e se é conveniente ou não ficar na frente do aparelho e por quê. Chaui presume um telespectador passivo. Mas não será a passividade do telespectador um preconceito intelectual do crítico marxista?
Um texto virtual
A invenção da internet potencializou o “efeito biblioteca” ao extremo. Afinal, agora o próprio leitor pode interagir com o conteúdo textual, sonoro e visual que existe dentro ou fora da rede e divulgá-lo. O texto integral de Simulacro e poder – uma análise da mídia ainda não está na internet. Mesmo assim, pela presente, dialogamos com a obra em proveito da autora, da editora e do público. Em razão da revolução digital, qualquer pessoa pode produzir e divulgar seu próprio conteúdo. Se for suficientemente talentoso, o leitor/produtor conseguirá criar espaços respeitáveis ou integrar “comunidades de eleição” socialmente respeitáveis que só existem na internet.
O próprio Observatório da Imprensa, por exemplo, é uma “comunidade de eleição” virtual que prega o aperfeiçoamento da mídia e conta com centenas de colaboradores que publicaram milhares de textos. Os textos do OI não podem ser classificados como simulacros. Tanto que a própria Marilena Chaui refere-se várias vezes ao texto “Modernidade líquida, comunicação concentrada”, de autoria de Caio Túlio Costa, publicado neste Observatório em 2005 e que ainda não teria sido publicado na Revista da USP número 66 (conforme nota de rodapé na página 67 do livro).
No capítulo “Informática e o sistema multimídia”, a autora afirma que do “ponto de vista cultural, em sentido antropológico amplo, a informática leva ao limite a compressão espaciotemporal, a atopia e a acronia”. É realmente difícil compreender a crítica de Marilena Chaui, principalmente quando ela própria usa um texto atópico e acrônico, um texto que só existe como presença permanente fora do espaço e do tempo, para criticar a internet. Curiosamente, a filósofa conferiu ao texto virtual de Caio Túlio Costa uma existência em suporte de papel antes de sua publicação pela USP. O que ocorreria se o texto fosse mudado ou suprimido da rede e se o autor desautorizasse a publicação? Deixaria de existir como fundamento da crítica, expondo a autora ao mico de ter criado um simulacro?
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Advogado, Osasco, SP