Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘A Folha perdeu nesta semana uma ótima oportunidade para destacar um drama que deveria provocar em todos inconformismo e indignação. Refiro-me à morte, em Dourados (Mato Grosso do Sul), de uma menina índia de três anos e 11 meses por desnutrição.

É inacreditável que no país dos obesos e do Fome Zero, num Estado enriquecido com a agricultura e a pecuária, uma criança morra de fome. E é inacreditável que este fato não provoque uma comoção nacional. Apenas a sucessão cotidiana e interminável de fatos escandalosos pode explicar a aparente letargia que volta e meia nos domina.

A Folha previu a morte da menina, mas não soube expô-la como devia.

O correspondente do jornal em Campo Grande, Hudson Corrêa, fez a primeira reportagem, publicada no dia 25 de janeiro. Seu texto informava que ‘27% das crianças indígenas de Mato Grosso do Sul de até cinco anos estão desnutridas e que em 2004 a mortalidade infantil chegou a 60 por mil nascidos vivos, quase o triplo do índice verificado entre a população brasileira’. A Folha publicou a reportagem sem destaque.

No sábado, 5 de fevereiro, o jornal editou novo relato do mesmo jornalista, ‘Verba do Fome Zero para índio fica parada’. O texto mostrava que o governo de Mato Grosso do Sul tinha deixado de aplicar cerca de R$ 1 milhão recebido do governo federal para o programa Fome Zero na área indígena. Estávamos, portanto, diante de uma grande tragédia: crianças desnutridas e sem amparo.

No dia 8, terça, morreu a menina Caiuá de três anos e 11 meses. O jornal publicou apenas uma nota perdida no meio do noticiário político. Era a segunda criança indígena anônima que morria neste ano, de acordo com o relato do correspondente. A outra, um bebê de oito meses, morrera em janeiro. Quinze crianças morreram em 2004.

O jornal tinha a obrigação de levar seus leitores para o meio da tragédia, de transformar os números em rostos e nomes, de abandonar a notícia fria da morte por um relato local, que mostrasse as condições de vida daquelas famílias que estão perdendo crianças por falta de alimento em pleno século 21.

O jornal tem agora o dever de iniciar uma investigação séria: para onde vão de fato os recursos empregados em tantos programas sociais dos governos federal, estadual e municipais? Se a Funai e os governos conhecem o problema há tanto tempo, se o problema está limitado a um grupo social e a uma região demarcada, por que não conseguiram impedir as mortes?

Este, infelizmente, é um grande caso para os jornais. O correspondente da Folha em Campo Grande teve sensibilidade para perceber a relevância do drama. A Redação em São Paulo não soube, no entanto, dar ao caso a dimensão que exigia.

Questionei o jornal e recebi o seguinte depoimento do editor de Brasil, Fernando de Barros e Silva: ‘Difícil dizer que o assunto foi desdenhado. Noticiamos na edição de quinta a morte da menina com razoável destaque. E na sexta voltamos a mostrar que o governo agiu tardiamente em relação ao problema, ampliando o Bolsa-Família já com o estrago consumado. Mostramos ainda que entidades ligadas aos índios vêem a medida como um ‘paliativo cínico’ e criticam a ausência de medidas estruturais para ao menos equacionar o problema a médio prazo.

Isso posto, acho não só legítimo como razoável que o ombudsman veja no episódio uma oportunidade jornalística mal aproveitada. Não vejo assim, mas a discussão é relevante. São tantos e tão cotidianos os escândalos sociais no Brasil que acabamos todos, de alguma forma ou em algum momento, reagindo de forma apática ou anestesiada a muitas coisas intoleráveis’.’

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‘A nova empresa’, copyright Folha de S. Paulo, 13/2/05.

‘Estava de férias quando a Folha anunciou, no dia 4 de janeiro, a reorganização empresarial do grupo Folha. Não tive oportunidade de comentar o fato e o faço agora.

Apenas para relembrar: a notícia, publicada no caderno Dinheiro, informava que a Folha e o UOL se uniam ‘para abrir o capital’. Trechos do texto: ‘A Folha e o UOL (Universo Online) passaram a integrar uma mesma companhia, a ‘holding’ Folha-UOL S.A. Com a fusão das duas empresas, o grupo se torna na prática o segundo conglomerado de mídia do Brasil, com faturamento estimado em R$ 1,3 bilhão. Controladora tanto do UOL como da Empresa Folha da Manhã, que publica a Folha, a família Frias manterá o controle da Folha-UOL. Sua participação no capital da nova empresa é de 79%. Os restantes 21% são detidos pela Portugal Telecom, empresa portuguesa que atua na exploração de telefonia celular no Brasil -em associação com a Telefónica da Espanha controla a Vivo. (…) O presidente da Folha-UOL, Luís Frias, afirmou que a consolidação visa à abertura de capital em futuro próximo. ‘Estamos trabalhando para apresentar a melhor oportunidade para o mercado: segunda empresa do setor em tamanho, líder no que faz, dívida zerada até o final de 2005 e companhia profissionalizada.’

O texto lembrava ainda que, ‘fundada em 1921, a Folha é o jornal de maior circulação no Brasil e um dos periódicos mais influentes do país’.

Resumo algumas informações que obtive e que não constam do comunicado oficial da Folha. Não entrou dinheiro novo na operação. A reestruturação do grupo teve como principal objetivo juntar os caixas das duas grandes empresas do grupo, Folha e UOL, e permitir que o portal socorra o jornal endividado. O caixa do UOL mais o resultado da Folha em 2004 liquidam a dívida do jornal com os bancos, restando apenas as com fornecedores de papel. No novo acordo firmado entre o grupo e a Portugal Telecom há uma cláusula que estabelece que a tele não tem ingerência na linha editorial do jornal.

Destaco dois aspectos nesta nova formação empresarial.

Primeiro, a reação da Folha. Como já escrevi em outras ocasiões, a empresa vive um momento difícil por conta da dívida que acumulou nos últimos anos. Esta situação levou a cortes no jornal que resultaram na perda de profissionais, na escassez de recursos e na falta de investimentos. Na minha opinião, essa soma de problemas afetou a qualidade do jornal. A nítida vantagem que tinha em outras épocas em relação ao ‘Estado de S.Paulo’ e ao ‘Globo’, do Rio, seus dois diretos concorrentes nacionais, já não existe. Os três jornais se equivalem hoje nos erros e acertos.

Sob o ponto de vista do leitor e dos profissionais do jornal, interessa que a empresa recupere o mais rapidamente possível a saúde financeira e a capacidade de investir e volte a perseguir a produção de um jornal diferenciado. Sua credibilidade e seu prestígio estão associados ao período em que investiu em qualidade e criatividade.

O segundo aspecto é a chegada ao jornal de um sócio estrangeiro, do setor de telecomunicações, a Portugal Telecom. A presença de teles na indústria jornalística ainda é um fato novo no Brasil, mas já é uma realidade em vários países do mundo e aponta para um problema sério que é o da formação de grandes conglomerados produtores de conteúdo (os jornais do grupo Folha), com portal na Internet (UOL) e a rede de telecomunicações.

A entrada de empresas não jornalísticas na área de comunicação e a chegada de sócios estrangeiros devem desenhar um novo cenário num mercado onde a propriedade dos meios já é caracterizada pela concentração. É muito cedo para se dizer o que vai acontecer com as empresas de comunicação no Brasil nos próximos anos, mas é certo que as empresas jornalísticas moldadas nas últimas três décadas do século passado vão ficando para trás.

A Folha cobre bem o processo de abertura e de privatização do setor de telecomunicações desde o início dos anos 90 e é uma referência crítica nesta área. O que se deve observar a partir de agora é se a associação com uma tele vai afetar a regularidade e a qualidade de sua cobertura.’