Neste ano de 2012 Vladimir Herzog completaria 75 anos. Para este historiador, é uma responsabilidade e um privilégio narrar o legado do jornalista-cidadão que nos devolveu a Cidadania. É uma responsabilidade e um privilégio narrar, sobretudo, o legado do homem Vlado.
Isto porque a meta do historiador é a decifração da Memória de seu tempo. Nós nos voltamos para aquilo que foi, o transcorrido, para afirmar o que é: o presente. Já dizia o historiador Marc Block: “Não existe a História do passado, mas sim a do presente”, porque o passado nunca passou. O passado continua passando…
Agimos como um arqueólogo que, com o seu pincelzinho, vai desvendando as camadas da terra. Partícula por partícula, à procura de tesouros, à procura de assombros para reconstituir o nosso rosto através de memórias dos outros.
Neste comportamento de detetive do tempo fazemos um movimento de revelação em três etapas. Primeiro chegam as lembranças, aquilo que está visível, dados que os atores sociais recordam e explicitam. É como um mergulhador que observa objetos na superfície das águas, explícitos à sua vista.
Contra o autoritarismo
O segundo passo é a procura – seja por depoimentos ou material iconográfico – daquilo que está esquecido e oculto, seja por traumas ou por outros interesses. Volto a repetir: é quando o arqueólogo percebe que algo de valioso existe sob o solo, como uma terra grávida à espera de seu parteiro.
Mas aí chega o terceiro momento, talvez o mais importante. É quando do núcleo daquilo que foi ocultado, o maior tesouro se revela. É o ponto nodal, a jóia concisa que resume todos os outros planos: as lembranças e os esquecimentos. É o que Roland Barthes afirma ser na fotografia o “punctum”: a chave de tudo. Na metáfora infantil, é quando abrimos uma arca e ali nos encantamos com o máximo triunfo.
Pois bem, caros amigos, vou aqui iluminar a primeira etapa: ver (pois é visível) a obra deste jornalista e amante do cinema Vladimir Herzog. Seu método de trabalho, na afirmação de João Batista de Andrade, era a revalorização do coração do jornalismo: a fonte de informação. Se a favela está pegando fogo a autoridade maior não é o bombeiro, mas o favelado.
Ora, isto nos anos 70 era revolucionário dar voz àqueles que não tinham voz. Sem dúvida, junto com seus amigos jornalistas (Fernando Pacheco Jordão e outros), Vlado adotava estratégias de “drible” na censura com perguntas vindas da boca do povo e às quais as autoridades eram obrigadas a responder. Ou ainda ao verem a sua própria imagem na tela, os governantes ficavam envaidecidos e não proibiam as reportagens.
Neste trabalho da informação Cidadã, seja como jornalista ou como criador-amante do cinema, Vlado era inflexível. Disse Zuenir Ventura que trabalhar com ele não era fácil. Exigia reformulações constantes no texto. Também o cineasta argentino Fernando Birri o adjetivou como obstinado, sincero e ético.
Mas passemos agora ao segundo plano, menos visível, mas fundamentalmente importante. É aquilo que está recôndito, submerso, mas se revela quando se depara com a memória revelada. Vamos lembrar que nesta busca pela verdade os gregos a chamavam de Alethéia: um sinônimo da desocultação. O termo é composto da lethe (ocultar) na mesma ordem de ale (o esclarecimento). Ora, a narrativa correta coexiste no desvendamento da história.
Neste plano existe um fato interessante na infância do Vlado. Sendo judeu, estava na Europa no tempo da perseguição nazista. Seu pai, não podendo revelar sua identidade, passava-se por mudo. Foi quando num certo dia o menino estava usando um casaco com as letras do seu nome, denunciando sua origem. Perguntado sobre isto, disfarçou e respondeu que tinha ganho o agasalho de um outro garoto. Ora, creio, que fatos como este – a perseguição e o medo – marcaram o adulto na sua temperança. Como? Era um indignado contra a injustiça social. Sua vida, tão humanista, foi uma luta pela transformação social. Não é à toa que seus familiares, na criação do Instituto, escolheram esta frase dele:
“Quando perdemos a nossa capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados”.
Assim sendo, sua luta foi contra o autoritarismo. Não era exatamente um militante partidário, nem um homem de férreas linhas ideológicas. Ao contrário, o seu curso de vida provou que detestava intolerâncias.
Vlado, presente
Penso que estas lembranças da sua meninice voltaram naquele sábado pela manhã, no fatídico DOI-CODI. Lembrou dos tempos vividos da infâmia totalitária. Sua revolta era autentica, porque mais epidérmica, à flor da pele. Não era tanto teórica, mas sim vivida. Tão autentica que pagou com a vida.
Agora, finalmente, vamos ao plano mais profundo, o mais denso. Repito, o núcleo do seu legado, a sua maior herança. Onde está esta “chave”? Onde se encontra o “punctum” no afirmar de Roland Barthes? No papel rasgado que redigiu na prisão numa possível confissão. Lembremo-nos que aquelas frases feitas ali eram ditadas pelos algozes.
E daí? Vladimir Herzog não aceitou a impostura. Não aceitou a impostura somente ao rasgar o papel. Reparem um dado central: a sua assinatura que não foi a sua assinatura. Rabiscou revoltado seu próprio nome como a revelar a sua indignação. E por quê? A sua pretensa delação comprometeria aquilo que para ele era mais precioso. Não eram as suas ideologias, nem seus credos, nem sua origem judaica, mas sim o que Clarice me disse: por seu amigos ele era extremamente abnegado.
O gigantismo de Vlado decorre exatamente disto: seu amor pelos amigos. E por isto Vlado era um homem comum, tão comum que foi o mais solidário num tempo de companheirismos, de compaixões, de resistência em prol da Liberdade.
Assim, ele foi um mártir – não por ser uma vítima e jamais por uma grandiloquência que nuca teve – mas pelo que a palavra mártir é em grego – sinônimo de testemunho. Vlado foi testemunho de todos nós. Ele foi o mais típico: captou um pouquinho de todos os nossos sonhos, todas as nossas ousadias. Em Vlado estavam resumidos todos os nossos amores.
Por isso seu nome está presente em tantos de nós. Por isso seu nome está presnte em Fernandos, Luis, Audálios, Anthonis, Sergios, Franciscos, Marcios, D. Paulos, Ivos, Andres e Clarices.
Vlado, parabéns pelos seus 75 anos. Você, um presente para nós. Viva a Vida!
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[Mário Sérgio de Moraes é Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor titular em Cultura Brasileira na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), também leciona na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). É pesquisador no Diversitas – Núcleo de Estudos, Diversidades e Intolerâncias da USP e Conselheiro do Instituto Vladimir Herzog]