Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Incoerência e irresponsabilidade

Tenho defendido há alguns anos que o modelo de contratação dos serviços de telecomunicações de 1997, definido pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT), já estava ultrapassado na origem, pois o interesse pelo serviço de comunicação de dados e a tendência de convergência de serviços prestados sobre mesma plataforma tecnológica já se mostrava naquela época.

Vale lembrar, aliás, que no Projeto de Lei da LGT a disposição a respeito das concessionárias vinha no art. 80, que trazia uma única restrição: que a empresa fosse constituída sob as leis brasileiras e tivesse sede e administração no Brasil. Ou seja, as empresas poderiam prestar múltiplos serviços. Nesse contexto o sistema Telebrás estava avaliado em R$ 40 bilhões.

O projeto sofreu emendas e terminou com o teor do art. 86, da LGT, que, até o ano passado – edição da Lei 12.495/2011, impedia que as concessionárias do Serviço de Telefonia Fixa Comutada prestassem qualquer outro serviço. E essa limitação já não fazia sentido naquela época e só trouxe prejuízos e atrasos para o país. Por exemplo, por causa desta modificação a avaliação para a privatização caiu para R$ 13,5 bilhões e o resultado do leilão foi a arrecadação de R$ 22 bilhões; ou seja, fomos tungados em quase R$ 20 bilhões e hoje as teles estão podendo prestar todos os serviços sem nenhuma contrapartida.

Em dezembro de 2005 – 7 anos após a privatização e depois de concluída a instalação da infraestrutura necessária para a telefonia fixa em todo o país – o Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU), os contratos de concessão foram prorrogados por mais 20 anos sem nenhuma alteração, fato este também criticado por esta que lhes escreve. A Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor chegou a ajuizar ação civil pública para questionar os termos em que se prorrogavam as concessões, pois várias orientações previstas no Decreto 4.733/2003, que instituiu sobre as políticas de telecomunicações, como a implantação do modelo de custos e regras de compartilhamento de redes não tinham sido cumpridas pela Anatel.

E naquela época o interesse pela banda larga e pelos serviços prestados de forma convergente, apesar das limitações impostas pelo art. 86, da LGT (antes da alteração introduzida pela Lei 12.495/2011), já era uma realidade notória e incontroversa.

Portanto, acredito que buscar novos caminhos legais para alterar o modo de contratação com as teles é necessário já há muitos anos. Mas, obviamente, qualquer novo caminho que se cogite deve estar no campo constitucional e trazer ganhos reais para a sociedade brasileira.

Discurso inconstitucional

Mas a Anatel, para não fugir do script que tem seguido desde sua instalação, começa a falar da revisão do marco legal das telecomunicações pautando-se pelos interesses privados dos fortes grupos econômicos que atuam no setor.

O foco da Anatel, por si só, já se revela ilegal. Primeiro porque caberia ao Ministério das Comunicações abrir os debates com a sociedade, a fim de definir novas políticas para o setor, como determinam os arts. 84 e 87 da Constituição Federal e art. 14, inc. III, da Lei 9.649/1998.

Segundo porque, além de estar extrapolando os poderes que possui, a agência está sempre agindo ou deixando de agir de modo a garantir que a iniciativa privada se aproprie de bens públicos, como fez quando celebrou os contratos de concessão da telefonia fixa sem relacionar os bens reversíveis e os essenciais para a prestação deste serviço.

O mais novo discurso é antecipar o fim das concessões de telefonia fixa e entregar para a iniciativa privada todo o acervo relacionado a este serviço junto com a preciosa rede, hoje 100% digitalizada, contando com grande parte de fibra ótica, instalada em todo o país, com papel fundamental também para os serviços de telefonia móvel e banda larga.

Aqueles que, como eu, se assustaram com a abrangência das privatizações promovidas no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e viram o Partido dos Trabalhadores atacar o processo que denominaram de privataria, não poderiam imaginar que, quatorze anos depois, o governo petista iria muito mais longe.

A proposta divulgada recentemente pelo atual Presidente da Anatel de não só acabar com o regime público, mas também abrir mão do poder de gerenciamento das redes necessárias para a prestação dos serviços é uma afronta ao fato de que é da União a atribuição de garantir o acesso e a continuidade dos serviços de telecomunicações e a modicidade tarifária.

Quais provas as empresas que atuam no mercado deram no sentido de se mostrarem comprometidas com estes princípios e justificar esta postura escandalosa e irresponsável?

As teles concentraram seus investimentos nos mercados com consumidores com capacidade financeira para contratar múltiplos serviços, deixaram de investir como deveriam e praticam as maiores tarifas do planeta, atropelando a modicidade tarifária e os direitos básicos dos consumidores.

Utilizam-se do artifício do ilegal subsídio cruzado (art. 103, § 2º, LGT) para levar os consumidores mais pobres a pagarem maiores tarifas, que financiam os investimentos para a implantação de infraestrutura no local onde moram os consumidores mais ricos, com a anuência expressa da Anatel.

São empresas que, apesar de se beneficiarem dos empréstimos generosos e bilionários do BNDES, sempre investiram o mínimo possível. Tanto assim que desde 2008 estamos enfrentamos crises sistêmicas pela falta de infraestrutura capaz de responder à demanda da sociedade brasileira.

Além disso, há anos tratam mal os consumidores, como é incontestável pelos números de reclamações nos Procons e tribunais de todo o país.

Ou seja, a proposta anunciada pelo Presidente da Anatel é inconstitucional, pois representa abrir mão do seu papel de titular e responsável última pelas telecomunicações que é da União, e absolutamente inadequada ao quadro de falta de qualidade na prestação dos serviços que nos é imposta hoje.

Cooptação

Esse discurso já foi lançado num balão de ensaio pela boca do Conselheiro Jarbas Valente, no início desse ano, cuja visão do setor sempre esteve bastante afinada com a visão das teles. Agora, temos o presidente da Anatel – João Rezende, repetindo o mesmo discurso. E, é evidente, lançando novo balão de ensaio; e este com muito mais gás, dado que este conselheiro é compadre do Ministro das Comunicações Paulo Bernardo que, por sua vez, é casado com a Ministra da Casa Civil – Gleisi Hoffmann, que deve levar as versões sobre o setor bem fresquinhas para a Presidente Dilma.

Se antes a Anatel estava cooptada pelo interesse privado das empresas, há alguns anos ela está também cooptada pelo interesse privado do Partido dos Trabalhadores. Lembremos que o atual presidente da agência, que passou a integrar o Conselho ainda em 2009, foi chefe de gabinete de Paulo Bernardo, enquanto Ministro do Planejamento e, também, foi organizador da campanha de Gleisi Hoffmann para a prefeitura de Curitiba e para o Senado.

Ou seja, autonomia da agência e independência na prática são ficção, pois o Ministro se vale de seu fiel escudeiro para introduzir as ideias que lhe valeram o prêmio do Homem do Ano das Telecomunicações, oferecido pela Telebrasil – Associação Brasileira de Telecomunicações – que reúne as operadoras dos serviços de telecom, pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) e pela Futurecom.

Aliás, significativo que quem tenha entregado o prêmio tenha sido o ex-presidente da Anatel – Antonio Carlos Valente – hoje Presidente da Telefonica – Vivo e da Telebrasil.

Desculpa esfarrapada

A desculpa esfarrapada para a proposta lançada sem nenhum suporte institucional pelo Presidente da Anatel é que a telefonia fixa está morrendo e que não tem mais interesse para os consumidores, o que não justificaria a manutenção dos contratos de concessão do STFCs.

Quem ainda engole essa desculpa esfarrapada? A tabela, por exemplo, dno link abaixo traz informações no sentido de que, mesmo nos países onde a banda larga tem forte penetração, a densidade da telefonia fixa é o dobro do que no Brasil (ver aqui).

Não podemos esquecer que os mais de 200 milhões de linhas móveis que operam no sistema pré-pago estão concentrados nas mãos dos cidadãos que não têm renda para contratar um telefone fixo, que pagam a maior tarifa do planeta pelo minuto, em razão o tráfego de voz da telefonia móvel no Brasil ocupa o penúltimo lugar no ranking mundial.

Outro fato que derruba a desculpa esfarrapada do Presidente da Anatel é o de que todo mês o Congresso Nacional recebe milhares de e-mails e telefonemas pedindo para acabarem com a assinatura básica.

Sou obrigada a lembrar, ainda, que a meta inicial de 1998 para telefones públicos era de 8,0/1000 habitantes; meta esta que veio sendo reduzida paulatinamente pelo governo e que chegou, pelas mãos do governo petista em 2011 a 4,0/1000 habitantes.

Esse mesmo governo petista que resolveu dar aos pobres a inclusão digital pelo serviço móvel pessoal, como está previsto nos Termos de Compromisso do PNBL popular, assinados em julho de 2011, com condições vergonhosas e indignas de qualidade. Não se abre uma página de internet por meio desse serviço, pois os investimentos em 3G estão longe dos patamares necessários para atender a demanda.

A relevância do regime público para a infraestrutura de suporte aos serviços essenciais

Toda conjuntura das telecomunicações hoje, como demonstram as pesquisas promovidas pelo IBGE, CETIC do CGI.br, entre outras, mostram que apenas os cidadãos com mais renda têm tido condições de ter acesso a serviços de telecomunicações com qualidade razoável.

E assim se dá, pois nem o Ministério das Comunicações e nem a Anatel estão muito preocupados com garantir a democratização do acesso a estes serviços. Parece que a cenoura posta na frente dos políticos e servidores da Anatel são as eleições presidenciais de 2014 e os empregos que podem conseguir nas empresas reguladas, posto que nem mesmo a lei tem sido considerada pelos responsáveis pelo setor.

De acordo com a LGT, aqueles serviços de interesse público e considerados essenciais devem ser prestados pelo menos do regime público, na medida em que é ele que permite a imposição de metas de universalização, cobrança por tarifa e reversibilidade dos bens necessários para a prestação do serviço, permitindo a segurança de que o Poder Público, diante do fim dos contratos ou de qualquer contingência com as operadoras privadas, poderá assegurar a continuidade.

E a lei assim dispõe justamente para materializar os direitos expressos nos arts. 21, inc. XI e art. 175, da Constituição Federal, que estabelecem que a União é a titular dos serviços de telecomunicações e que incumbe ao Poder Público a prestação dos serviços públicos, ainda que prestados por concessão ou permissão.

Sendo assim, como poderá o Poder Público responder pela garantia do acesso e pela continuidade se abrir mão de todos os instrumentos legais e regulatórios que lhe permitem fixar metas de investimento, de destinação a ser atribuída à infraestrutura e de controle do valor das tarifas?

O plano entreguista que teve como porta voz o Presidente da Anatel, mas que na realidade tem por trás o Ministro Paulo Bernardo, é inconstitucional e não se coaduna com o que tem dito a Presidente Dilma Rousseff, conforme declaração dada na edição de 20 de maio deste ano ao jornal Brasil Econômico, no sentido de que o Brasil vive um momento de ruptura com a prática de delegar a condução do crescimento exclusivamente às forças de autorregulação do mercado, excluindo o interesse da sociedade nas decisões econômicas. Segundo a presidente, o país vive uma benigna transformação de subordinação da lógica econômica à agenda dos valores indissociáveis da democracia e da inclusão social.

Ora, se é assim, como compatibilizar a fala do testa de ferro do Ministro Paulo Bernardo com a seguinte realidade revelada por pesquisa da Fundação Getúlio Vargas publicada no site da Convergência Digital, em 16 de maio deste ano?

“Dez anos depois de apresentar seu Mapa da Exclusão Digital, a Fundação Getúlio Vargas divulgou nesta quarta-feira, 16/5, um novo Mapa da Inclusão Digital – elaborado em parceria com a Fundação Telefônica. Ele demonstra que a 6ª maior economia do planeta, o 5º maior mercado de celulares e o 3º de computadores continua com um imenso fosso digital.

Nos termos da pesquisa apresentada pelo economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV, Marcelo Neri, vale dizer que 90% das residências da classe A têm computador e conexão, realidade presente apenas em 2,5% das casas da classe E. A concentração é enorme. De cada 10 lares com computador e acesso, 7 acomodam os brasileiros mais ricos.

“A brecha digital preocupa não apenas porque a distância de oportunidades e de resultados entre providos e desprovidos de acesso à Tecnologia de Informação e Comunicação tende a aumentar numa época de forte inovação tecnológica, mas pela oportunidade de diminuir esta mesma desigualdade através de ações que melhorem a distribuição da quantidade e a qualidade do acesso digital”, sustenta o estudo.

Não surpreende, portanto, que desigualdade semelhante seja verificada entre os estados da federação. “Se dividirmos os rankings de acesso em duas partes, na primeira, antes da 11a posição, enxergamos todos os estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Na segunda parte deste mesmo ranking, encontramos os estados do Norte e Nordeste”.

A análise com base em municípios persegue a mesma lógica. São Caetano, em São Paulo, é a cidade com maior índice de acesso 74%, seguida por Vitória-ES, Santos-SP, Florianópolis-SC, e Niterói-RJ, “que estão incluídos não por coincidência entre as cinco cidades mais classe AB do país”, diz o Mapa da Inclusão Digital”. [De cada 100 brasileiros, 65 desconhecem a Internet]

Ou seja, acabar com o regime público não só é inconstitucional, mas também é uma maldade, como aponta Mariana Mazza em sua coluna no portal da Band, publicada em 10 de outubro último. [12 anos antes, governo quer acabar com as concessões]

E, ainda, trata-se de mais um ponto no qual o PT, quando oposição, apresentava um discurso, que hoje no governo, na prática, tem sido bem diferente, para aprofundar o sentimento de traição que muitos de nós nutrimos.

Ora, se o PT até ajuizou ação direta de inconstitucionalidade questionando a LGT e a privatização, como pode, agora, querer acabar com o regime de concessões e entregar o acervo de bens e infraestruturas públicas para a iniciativa privada?

Este é um tema a ser tratado de perto e com muito empenho pelo Ministério Público Federal, pois estamos diante de uma proposta lesa pátria.

Nossa proposta

É incontestável que o modelo precisa ser revisto, mas mantendo a linha do que dispõem a Constituição Federal e o Decreto 7.175, de 12 de maio de 2010, por meio do qual se instituiu o Programa Nacional de Banda Larga, atribuindo a Telebrás o papel de gerenciadora das redes públicas.

Nossa proposta, que tem como base este Decreto, foi apresentada em 23 de agosto deste ano no Conselho Consultivo da Anatel e parte da premissa de que o regime público, especificamente para os serviços só se imporá em regiões pobres de infraestrutura ou que não despertem o interesse econômico das operadoras. Todavia, não abrimos mão do regime público para as redes de telecomunicações.

Nossa proposta pode ser resumida da seguinte forma:

1. No atual quadro da LGT

>> Cumprimento do par. 1º, do art. 65, LGT: regime público para o serviço de comunicação de dados;

>> Cumprimento do papel da Telebrás, nos termos do Decreto 7.175, de maio de 2010.

2. Revisão do Marco Legal

>> Concessão para implantação de infraestrutura – separação entre infraestrutura e serviço;

>> Telebrás operando no modelo open reach;

>> Serviços prestados em regime misto:

a) regime público, pelo menos, em regiões de pouco interesse econômico e com baixo grau de penetração de infraestrutura;

b) regime privado onde a oferta de infraestrutura já esteja em estado avançado.

E essa proposta não é só da Proteste. Outras entidades que integram a Campanha Banda Larga é um Direito defendem o mesmo.

Escuta

Esperemos que a Presidente Dilma Rousseff ponha em prática o que disse em maio deste ano ao Brasil Econômico.

Que, além de ouvir a porta voz do Ministro premiado pelas teles – sua esposa a Ministra e pré-candidata ao governo do Paraná Gleisi Hoffmann, ouça também a sociedade que vem clamando por espaço de participação cerrado a sete chaves pelo atual governo.

Este governo só tem tido ouvidos para as teles, cujo maior interesse tem sido incorporações, fazer caixa para pagamento de dívidas, como é o caso da Oi e remessa de dólares para as filiais estrangeiras poderem se livrar dos efeitos da crise econômica internacional, no mais moderno estilo do colonialismo neoliberal.

O link a seguir, de um artigo do portal CartaCapital, mostra o gráfico do crescimento da remessa para o exterior feitas pelas empresa de telecomunicações, nos últimos anos: “Caixa forte, sinal fraco”.

Caso contrário, o que nos restará é o Congresso Nacional – que muito poucas alegrias nos tem oferecido – e reza brava. Muita reza!

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[Flávia Lefèvre Guimarães é advogada e sócia do escritório Lescher e Lefèvre Advogados Associados, mestre em processo civil pela PUC-SP e conselheira da Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor]