Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lula Vieira

‘Na portaria do hotel, vou preencher a ficha de hóspedes e coloco meu nome, endereço, código postal, telefone e chego no espaço destinado à ‘profissão’. Há 30 anos, desde o dia em que larguei o jornal Última Hora de São Paulo para trabalhar em uma agência de propaganda, tenho orgulho em escrever: ‘Publicitário’. Desta vez, hesito. O que sempre, para mim, foi quase uma permanente renovação do orgulho de pertencer a uma classe importante e reconhecida, me parece exatamente o contrário. Quase uma sinalização de que o porteiro da noite deveria verificar com mais cuidado a validade do meu cartão de crédito.


Como uma das profissões que sempre foi olhada com admiração e respeito por toda a sociedade, a ponto de ser a segunda faculdade mais procurada pelos jovens em todo o país, chegou ao ponto de se ver ameaçada de virar sinônimo de lavanderia de dinheiro sujo? A CPI dos Correios está arranhando profundamente a imagem da propaganda brasileira. Não pode ser assim. É totalmente injusto. Por inúmeros motivos.


A qualidade de nosso trabalho nos coloca entre os países mais importantes do mundo em criação e produção de propaganda. No aspecto da responsabilidade social, estamos na vanguarda. A propaganda brasileira criou mecanismos de controle e regras de comportamento que são exemplos para o mundo inteiro. O Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) e o Conselho Executivo das Normas-Padrão (Cenp) têm regulamentações muitas vezes mais restritivas do que as legislações internacionais mais severas.


A indústria da propaganda no Brasil é tão preocupada com suas responsabilidades perante a sociedade e com a lisura de seus procedimentos comerciais que sempre se antecipou às leis, buscando garantir os direitos dos consumidores, o respeito aos direitos humanos, a inclusão social das minorias, a ética das relações comerciais.


Muitas restrições auto-impostas pelos publicitários são tão rigorosas que, se fossem simplesmente leis, poderiam ser questionadas à luz do direito. No entanto, por força de acordos entre as entidades do setor (anunciantes, agências e veículos), elas têm poder indiscutível. E funcionam, sem chicanas ou adiamentos.


Para se ter uma idéia, o Ministério da Saúde, muitas vezes, vale-se da agilidade do Conar para retirar do ar anúncios que divulguem produtos que estejam em desacordo com suas normas. As restrições à propaganda de cigarros, de bebidas alcoólicas, de produtos dirigidos às crianças foram desenvolvidas muito antes de qualquer movimentação do Legislativo. E aplicadas rapidamente, com obediência total.


Para uma agência funcionar, para poder receber comissões dos veículos, para poder autorizar veiculações, precisa ter um certificado do Cenp que exige que todos os contratos firmados entre o anunciante e a agência estejam dentro das normas-padrão. E a possibilidade de manobras é mínima, tendo em vista que se trata de um organismo dirigido por profissionais profundos conhecedores dos detalhes do negócio da propaganda.


No entanto, os leigos têm uma visão inteiramente distorcida da atividade publicitária, à qual se atribuem poderes de persuasão, influência e até mesmo de lucro totalmente fantasiosos. É um erro, descubro agora, que essa imagem exista sem que as entidades do setor tentem corrigir.


É bem verdade que o ego inflado de algumas poucas estrelas permitiu exibições de poder e riqueza que jamais refletiram a verdadeira situação de toda a categoria, formada em sua maioria por profissionais cuja remuneração se enquadra na realidade brasileira. Um profissional de propaganda de primeira linha ganha menos do que seu equivalente na medicina, na odontologia, na arquitetura, no direito. Para não falar na área artística. Um pintor, um ator, um músico, na mesma situação de prestígio de um publicitário, ganha várias vezes mais.


Uma agência de propaganda – se estiver dedicada exclusivamente à sua atividade-fim – não tem condições de lavar dinheiro. Seu lucro não permite oferecer ‘mensalões’ estratosféricos, nem mesmo sustentar máquinas partidárias. As atuais margens de rentabilidade não dão para isso.


Qualquer pessoa, lendo os contratos de publicidade e com uma calculadora, percebe a inconsistência das acusações que a indústria da propaganda está recebendo.


Não dá, nunca deu, nunca dará para desvios nos montantes que estão sendo insinuados. Para merecer atenção, para aproveitar dos holofotes, certos membros da CPI citam quantias, manipulam dados e deixam a sensação de que empresas de propaganda ‘faturam’ 30 ou 30 milhões com uma única conta governamental, sem nenhum tipo de controle, com liberdade total para gastar onde e como lhes passa pela cabeça.


O leitor não tem paciência nem tempo para me permitir destruir essa impressão, mostrando na ponta do lápis que as possibilidades de falcatruas numa conta de propaganda são ridículas. Qualquer auditor, qualquer juiz de tribunal de contas, não necessitam mais do que algumas horas para descobrir qualquer malversação no uso das verbas de propaganda. É facílimo perceber incorreções na prestação de contas de uma agência para seu cliente.


Por incrível que pareça, e eu sei que parece incrível, não há nenhuma subjetividade no cálculo dos valores de uma campanha. Existem parâmetros conhecidos pelo mercado, que quase não permitem variações.


Eu tenho 30 anos de profissão. Sou conhecido e (acho) que respeitado nela. Ganhei muitos prêmios de criatividade aqui e no exterior. Sou membro de júris importantes dos festivais brasileiros e internacionais, como o Festival de Cannes, sou membro do Conar, fui patrono de muitas – muitas mesmo – turmas de formandos em propaganda. Isso me dá o direito de pedir que creiam em mim quando digo que esta é uma profissão de gente séria, nunca (até hoje) envolvida em escândalos. Gente trabalhadora e responsável.


Talvez seja a profissão menos corporativista que eu já conheci. Nós temos sido implacáveis com os colegas que agem fora dos limites da ética. Os veículos especializados do meio publicitário estão cheios de extensas discussões sobre nossas responsabilidades perante a sociedade. Às vezes – e isso me dói – parecemos frívolos. Mas é fachada, estereótipo.


É por isso que estou indignado quando alguns membros da CPI, jogando para a platéia, insinuam ser a propaganda uma atividade que facilita a trampolinagem porque lhe faltam regras ou por envolver alta dose de subjetividade no exame de suas cifras. Uma ponte, uma rodovia, um hospital permitem variações de preços muito maiores do que uma campanha de propaganda.


Infelizmente, eu não tenho condições de negar que uma empresa de propaganda, assim como a empresa que controla um hospital, um convento, um posto de gasolina ou um bordel, não possa, desviando-se de seus objetivos sociais, transformar-se em um facilitador de ilícitos. Não foi isso o que eu disse. Eu apenas afirmei que a indústria da propaganda como um todo não pode e não deve ser tratada como está sendo por essa CPI. Pode ser, e eu enfatizo o pode ser, que Marcos Valério tenha errado. Mas, se o fez, foi na condição de dono de empresa, não de publicitário. E até agora tudo o que foi dito sobre a propaganda foi bobagem, fruto – como já disse – do despreparo, do deslumbramento ou de pura má-fé. O que é terrível para quem tem o poder que essas pessoas têm.


Para encerrar, para não parecer que estou prejulgando Marcos Valério dizendo que eu não sou Marcos Valério, eu diria que até ficarem provados seus crimes, nem ele, Marcos Valério, é Marcos Valério.’




João Sant’Anna


‘Propaganda, corrupção e CPI’, copyright No Mínimo, 9/7/05


‘Propaganda é a alma dos negócios da comunicação. Uma indústria erguida sobre o custo do espaço/tempo. Não haveria mídia sem propaganda. As milionárias verbas de publicidade do governo e das multinacionais têm um destino certo: os veículos. TV, revista e jornal são os mais importantes. Uma página de revista custa o mesmo que um apartamento de sala e quarto na Zona Sul do Rio de Janeiro: qualquer coisa em torno de R$ 150 mil. Na TV, tem segundos vendidos a preço de banana, R$ 190, e a peso de ouro, a R$ 300 mil. Um bom comunicador cobra caro tanto para defender uma idéia como para vender um produto, em torno de cem paus. Um anúncio de página dupla num grande jornal não sai por menos de 200 mil, mas tem anúncio classificado que sai quase grátis. É esse o dinheiro que paga os jornalistas. O dinheiro do leitor não cobre o custo da tinta e do papel.


Uma agência de propaganda ganha 20% do que paga aos veículos e 15% do que paga às gráficas e produtoras. Tudo em nome do cliente. Vive disso. Um anúncio na ‘Globo’, na ‘Folha’ ou no ‘Estadão’ custa o que está na tabela, mas tem negócio. No caso do governo, a agência leva 15% na veiculação e cobra pouco na produção. Isso paga o planejamento da campanha, a criação dos anúncios, uma produção sofisticada, um exaustivo trabalho de programação, reserva, negociação, checagem de mídia. Se der errado, a agência faz de novo.


É um bom negócio. No caso do governo, a publicidade é regida pela mesma lógica que pontifica na indicação de cargos de confiança – uma relação de publicidade é uma relação de confiança com o cliente. Na iniciativa privada, não é muito diferente. Uma puta campanha vale muito, mas um bom relacionamento vale muito mais.


Qualquer das 100 maiores agências do país pode atender a uma grande conta do governo ou da iniciativa privada. Pode não ser uma Brastemp, mas vai dar conta do contrato. Se não tiver meios, contrata, como qualquer empresa. O que define uma concorrência é a melhor proposta. Que nem escola de samba, cada quesito é causa de discussão, mas, sob protestos, o vencedor leva no final.


É difícil fraudar um contrato de publicidade, mas tudo é possível. Tanto no governo como na iniciativa privada, o aditivo num contrato de publicidade não aumenta o preço do anúncio, rebaixa. Mas aumenta o volume de veiculação, a receita dos veículos, a comissão da agência e, se tudo der certo, o lucro do cliente.


As cláusula dos contratos são quase leoninas. Para o cliente. Se o cliente quiser encrencar, pode tudo. Inclusive dar um pé na bunda da agência. Com prazo mínimo de 60 dias.


O carequinha Marcos Valério radicalizou. Transformou sua agência numa fachada para fazer negócio. Comprou uma empresa com problemas, mudou a razão social e manteve o nome, transferiu a competência para a agência nova e deixou as dívidas com a velha. Montou um comércio, do qual era diretor comercial. Tinha tradição, portfólio, bons criativos, uma mídia competente e padrinho. Ganhou duas contas do governo, das boas, subiu no ranking e perdeu os limites.


Pela ordem, senhor presidente.’




EL MENSALÓN
Ancelmo Gois


‘El mensalón’, copyright O Globo, 10/7/05


‘O escândalo do mensalão, que chamou a atenção do ‘La Nación’ a ponto de o jornal argentino entrevistar Roberto Jefferson, teve um similar por lá.


Foi em 2000. Senadores teriam recebido um, digamos, ‘mensalón’ para aprovar a reforma eleitoral. O caso abriu uma crise no então governo De la Rúa.’