Todo domingo de eleição é o mesmo lugar-comum na cobertura midiática da chamada grande imprensa: os velhos e bastante explorados clichês vêm novamente à tona – tem a reportagem do(a) jovem de 16 anos que vota pela primeira vez e a do(a) idoso(a) de mais de 70 anos que, mesmo em ambos os casos não sendo obrigados, fazem questão de exercer seus direitos. A “festa da democracia” é saudada como a menina dos olhos de dez em dez veículos jornalísticos da mídia convencional.
De fato, para as gerações que viveram a ditadura, o ato de ir às urnas é simbólico e significativo. Contudo, há uma série de questões que precisam ser descortinadas para que a democracia tupiniquim caminhe a passos largos no sentido de ser verdadeira e concretamente representativa do e para o povo brasileiro. Nessa seara, ainda há um longo percurso pela frente.
De antemão, o aprimoramento da democracia brasileira passa, necessariamente, por uma ampla e radical reforma política que contemple a questão eleitoral, ou seja, que a reforma política traga também em seu bojo a reforma eleitoral. Dentro desse contexto, quatro questões surgem como prioritárias no âmbito das mudanças necessárias e fundamentais para a construção da democracia do e para o povo: a não obrigatoriedade do voto, o financiamento público e igualitário das campanhas, a distribuição equânime de tempo para propaganda eleitoral no rádio e na TV e, por fim, a validade do voto nulo. Vamos aos porquês.
Relações promíscuas
Uma democracia só se consolida de fato enquanto consulta democrática quando o ato de votar deixa de ser uma obrigação e passa a ser um direito – que pode ser livremente exercido ou não. Não é razoável ao regime democrático que o cidadão seja obrigado a votar e, o que é pior, punido pelas leis eleitorais ao não exercer o voto. Primeiro, porque fere a liberdade individual que, supõe-se, cada brasileiro deva ter. Segundo, porque o voto obrigatório funciona, por sua vez, como um depositário nefasto e danoso de compra, barganha e venda de votos. O fim do voto obrigatório representaria, se não o fim, no mínimo uma redução drástica na compra de votos, típica dos coronéis e oligarquias da República Velha, mas que continua atualíssima ainda em pleno século 21, inclusive nas periferias de grandes capitais.
Outra aberração da democracia (?) brasileira é o financiamento privado das campanhas, na qual funciona a lógica do “quem mais arrecada, tem mais chances de ganhar”. Empresas que pouco ou nada se importam com a coletividade ou com a construção de uma cidadania participativa fazem doações generosas de milhões de reais a candidatos que, amiúde, escondem a identidade dos doadores. Em troca de quê? Ora, ora, de vantagens e facilidades em licitações e contratos público-privados em um futuro próximo, caso seus candidatos sejam eleitos. É a velha máxima: uma mão lava a outra. Infelizmente, na maioria esmagadora das vezes, é essa regrinha básica e deletéria à democracia que dita o resultado final das eleições: campanhas milionárias quase sempre se saem vitoriosas. Só que não era para ser dessa forma. A política real se faz com sonhos e ideais, não com interesses obscuros e reai$.
Em suma, a instituição do financiamento exclusivamente público para campanhas eleitorais com valores limitados e igualitários para os candidatos, provenientes de um fundo público suprapartidário, além da penalidade de suspensão dos direitos políticos àquele que usufruir de financiamento privado, bem como multas pesadas para pessoas físicas, jurídicas e entidades que financiarem estas campanhas seria um avanço extraordinário na busca pela consolidação e robustez da democracia brasileira.
Enquanto isso não ocorrer, o Brasil não se livrará das relações promíscuas entre políticos e empresários corruptores que, consequentemente, resulta na onda de corrupção que assola as esferas dos poderes legislativo, judiciário e executivo brasileiros. A implantação do financiamento público e equânime a todos como única forma de arrecadação de campanhas políticas esvaziaria grande parte do poder econômico e de influência dessas empresas doadoras e, principalmente, aumentaria consideravelmente as chances de vitória de candidatos não alinhados ao status quo.
Propaganda gratuita
É justo um candidato ter, no primeiro turno das eleições, quase 13 minutos de tempo no rádio e na TV enquanto outros se espremem e se contorcem para poder divulgar suas propostas e programas de governo em mísero 1 minuto? Não, não é! Pois é o que aconteceu em Fortaleza e certamente em muitas outras cidades no país inteiro.
A desigual distribuição do tempo de propaganda política obrigatória não faz bem à democracia, posto que não equilibra as opções e não auxilia o eleitor na escolha, uma vez que não dá condições similares dos candidatos apresentarem seus projetos. Pelo contrário, induz o eleitor a escolher, quase sempre, entre os candidatos que têm mais tempo de rádio e TV. É só fazer uma pesquisa dos prefeitos eleitos nas principais capitais brasileiras e perceber que quase todos tinham predominância do tempo de propaganda na mídia. Os candidatos do 1 minuto? Ah, esses quase nunca alcançam sequer 10% dos votos.
O critério para a distribuição do tempo de propaganda é, a meu ver, um tiro no pé. Um terço (1/3) dos trinta minutos é distribuído igualmente entre todos os concorrentes, enquanto que dois terços (2/3), a maior parcela, é dado de acordo com a bancada dos partidos e das coligações partidárias na Câmara dos Deputados. Ou seja, quanto maior a aliança com partidos diversos que tenham representantes na Câmara Federal, maior o tempo de propaganda eleitoral obrigatória. Foi essa aberração, de busca por mais tempo de rádio e TV, que fez o PT rasgar mais uma página de sua história e aliar-se a Paulo Maluf em São Paulo em troca de algumas dezenas de segundos na propaganda eleitoral.
Em síntese, o fosso de desigualdade que separa o candidato dos 13 minutos daquele do mísero 1 minuto é prejudicial à justa escolha do eleitor e, portanto, nocivo à democracia. Ora, se a Justiça Eleitoral aprovou a candidatura de “x” candidatos para concorrer a um cargo executivo, que os 30 minutos de propaganda eleitoral obrigatória sejam, então, igualmente distribuídos entre todos. Melhor para a isonomia de propostas, melhor para a democracia.
Arremedo maquiado
Você sabia que mesmo se 99,99% dos eleitores de uma cidade decidissem anular seus votos, mas um único eleitor optasse por votar no candidato “y”, este seria o candidato eleito? Pois é. Parece completamente injusto, não é? Mas é assim que funciona a democracia (?) brasileira.
O voto nulo, como o branco, não é válido. Ele tem apenas valor simbólico. Ora, num momento tão importante, em que estarei decidindo o futuro da minha cidade, do meu estado, do meu país, não quero um voto simbólico, quero um voto concreto, real, que tenha consequências reais. E que esse voto possa ser em nenhum candidato, mas na opção de anular um processo em que não me sinto representado por ninguém, através do voto nulo. Mas não. Aos eleitores, a nós, cidadãos, cabe tão somente escolher entre os candidatos que nos são impostos pelos partidos políticos. Se a maioria do povo brasileiro decidir que nenhum dos candidatos representa-o, que não está satisfeita com nenhuma das opções, mesmo assim vai ter de engolir goela abaixo algum deles. Isso mesmo: a nossa democracia é mais uma vez falha ao não possibilitar que o eleitor, votando nulo, anule um processo eleitoral. Isso soa tão absurdo quando se pensa nessa impossibilidade, mas é visto com tanta normalidade pelo campo político que é de impressionar.
Em suma, enquanto os homens de Brasília não tomarem a dianteira no processo de dar vazão a uma reforma política que contemple estes pontos levantados, entre muitos outros (como a tal da “governabilidade”, por exemplo, onde hoje só se consegue governar abrindo concessões a alianças escusas e partidos de aluguel e fisiológicos), a “festa da democracia brasileira”, tão alardeada pela imprensa burguesa, nunca passará de um arremedo maquiado e cortinado do que pode vir a ser uma verdadeira democracia participativa do e para o povo. Enquanto isso, vamos continuar brincando o joguinho do faz de conta…
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[Artur Pires é jornalista, Fortaleza, CE]