Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Escândalo abala jornal mexicano

As imagens são claras e o áudio, nítido: René Bejarano, líder da bancada do situacionista Partido de la Revolución Democrática (PRD, de esquerda) na Assembléia distrital – ex-assessor e secretário particular do governador do Distrito Federal da Cidade do México, Andrés Manuel López Obrador –, recebe, sôfrego, das mãos do empresário da construção civil Carlos Ahumada, também dono do diário El Independiente, 45 mil dólares em maços de notas, uma verdinha em cima da outra. O dinheiro não cabe todo na pasta que carrega Bejarano e ele, estabanado, enfia o resto da propina nos bolsos da calça.

As cenas, repetidas à exaustão na TV durante a semana passada, chocaram a opinião pública mexicana e despertaram uma mistura de horror e repugnância no cidadão das ruas, que, farto e perplexo, se pergunta até onde vai a cara-de-pau, a imoralidade e sobretudo a impunidade da classe política de seu país.

Dias antes, o veterano jornalista colombiano Javier Darío Restrepo, então em visita à capital mexicana, não poderia imaginar o efeito futuro de suas palavras ao enfatizar a importância vital da credibilidade no jornalismo – tanto a de seus praticantes, os jornalistas, como a dos donos dos meios de comunicação, os patrões. Ele participou do I Seminário Internacional de Jornalismo e Ética, na Cidade do México, no qual brilhou como palestrante de honra.

‘Credibilidade é o único capital que nos resta no fim de uma longa carreira’, ressaltou Restrepo a um pequeno mas atento e respeitoso auditório de estudantes e estudiosos da comunicação, no evento de dois dias (27 e 28/2) organizado por uma entidade local, o Centro de Periodismo y Ética Pública (Cepet), em conjunto com o Centro Knight de Jornalismo nas Américas, da Universidade do Texas, em Austin, criado e dirigido pelo jornalista brasileiro Rosental Calmon Alves.

O seminário tratou num tom sereno, acadêmico, às vezes monótono, de aspectos do exercício da profissão jornalística na América Latina com destaque para o quadro mexicano, aí incluído – ironia à parte – um burocrático painel sobre ‘Fraudes em compras e contratos públicos’. Deste participaram importantes nomes da imprensa local, como Roberto Rock, diretor do prestigioso jornalão El Universal, além de Carlos Puig, José Reveles e Francisco Rodríguez – os três, e ponha mais ironia nisso, colunistas políticos e estrelas de primeira grandeza do El Independiente.

Não se pôde prever que os temas ali ventilados logo virariam notícia quente, ilustrando de forma dramática as teorias e conceitos em pauta na mesa. A começar pela questão da credibilidade, tratada por Restrepo e enriquecido com uma posterior e inquietante interrogação: como administrar um jornal e o moral de sua equipe quando o dono da empresa, acusado de corrupção, em cumplicidade com funcionários graduados do governo, é considerado ‘prófugo de la justicia’?

Redação angustiada

É o que acontece agora com o empresário argentino naturalizado mexicano Carlos Ahumada, dono do tablóide El Independiente, lançado há nove meses e que, graças ao um desenho gráfico moderno e conteúdo editorial sóbrio e inteligente, aos poucos vinha ganhando cada vez mais leitores. Ahumada é também proprietário de dois clubes de futebol da primeira divisão e de Grupo Quart, de empresas do setor de construção.

Ligado o ventilador, o escândalo envolvendo Bejarano e Ahumada voou para todos lados, contabilizando como primeira baixa o diretor do jornal, Javier Solórzano, que em seu programa de rádio demitiu-se no ar. Ao vivo.

O chefe de redação do El Independiente, Raymundo Riva Palacio, agüentou sozinho o tranco e, no dia seguinte, escreveu um editorial contrito, mas digno, explicando aos leitores como e por que ‘os meios de comunicação passam no México por dias aziagos’. No texto, reiterou o compromisso do jornal em manter, em meio a grave crise que se abate sobre a casa, sua linha editorial independente.

O episódio é apenas uma parte (novos vídeos e grampos são anunciados e esperados para breve) de um vergonhoso e lamentável clima de corrupção gerado pela histórica e promíscua convivência entre políticos, homens de negócios e meios de comunicação no México. No espaço uma semana, o caso enlameou o governo de esquerda da Cidade do México, particularmente o governador do Distrito Federal Andrés Manuel López Obrador, pouco articulado no falar mas esperto na prática populista e forte candidato às eleições presidenciais de 2006.

Dois dos auxiliares mais próximos de Obrador, seus amigos, também foram flagrados com a mão na massa por câmeras escondidas: primeiro, Gustavo Ponce, secretário de Finanças, gastando fortunas nos cassinos e esbanjando gorjetas milionárias em hotéis de Las Vegas; depois, René Bejarano embolsando uma bela inhapa de um empresário da construção, supostamente para financiar campanhas do partido – e, de quebra, para amolecer requisitos de concorrência para grandes obras da cidade.

(Ahumada, fornecedor privilegiado do governo distrital, se diz vítima de extorsão e por isso teria concordado em molhar a mão de Bejarano para ‘aliviar a pressão’. Bejarano, por sua vez, demitiu-se de seus cargos mas não disse até agora às autoridades onde enfurnou a grana.)

‘Pérfida conspiração’

As fitas de vídeo, ora pois, foram parar nas mãos dos jornalistas, primeiro na redações dos programas noticiosos do horário nobre na televisão, onde ganharam destaque, e só depois entregues à Procuradoria da República – assim burlando, ou no mínimo retardando, os procedimentos legais.

Como era previsível em se tratando de um esquema bem armado, o escândalo original foi se ampliando, espirrando em cima de outras figurinhas carimbadas do grupo de López Obrador e de seu partido, principalmente Rosario Robles, ex-chefe de governo da capital mexicana e também ex-presidente do PRD. Chorosa, ele jurou na TV ter sido ‘só amiga’ de Ahumada e nunca sua amante, como tem sido espalhado ‘de forma infamante’.

O governador López Obrador, inspirado pelo lema ‘Honestidade Corajosa’, criado por seus assessores políticos e de relações públicas, de maneira enérgica se desvincula de qualquer ato ilícito em sua administração. Pede todo o peso da lei para os envolvidos, ‘ex-amigos e assessores que traíram minha confiança’, mas atribui o barulho a ‘uma pérfida conspiração da direita’, bolada nos desvãos do Palácio Los Pinos. O presidente Vicente Fox e sua mulher Marta, segundo Obrador, seriam os autores intelectuais da armadilha, já que são eles os maiores interessados em que a esquerda não chegue à presidência da República em 2006.

Analistas mais atilados, embora não descartem os motivos políticos-eleitorais por trás de toda essa patifaria, atribuem à enorme (e péssima) repercussão do assunto aos efeitos dos modernos recursos da internet e da informática. Fica claro, aliás, que a histórica corrupção governamental, praticada sob os auspícios do então reinante Partido Revolucionário Institucional (PRI), floresceu nos últimos 75 anos da vida mexicana porque, própria de tempos autoritários, medrava debaixo do pano.

Agora, como diz o próprio presidente Fox não sem certo tom triunfalista, a democracia e a resultante liberdade de expressão vigentes no país sob seu governo permitem ao cidadão saber quem são os bons e os maus da classe política . ‘Hoje, os corruptos têm nome e sobrenome’, diz o presidente

Conquistas e percalços

Passados quase dez dias do estouro do escarcéu, o El Independiente continua circulando normalmente, dando boa cobertura aos desdobramentos do escândalo, incluindo os aspectos que se referem ao seu proprietário, Carlos Ahumada, com visível empenho no equilíbrio das informações.

O colunista Carlos Puig fez um comentário sobre a crise interna do jornal em seu artigo de domingo (7/3). As últimas frases do texto dão bem a idéia do estado geral de ânimo em que vive a Redação. ‘As fontes se fecham’, escreveu Puig. ‘O escândalo ensombrece a decisão de temas e coberturas. O golpe foi duríssimo. Há indignação e raiva. A incerteza corta os ossos. Há tristeza, muita tristeza.’

A situação é penosa e constrangedora para a Redação e o futuro do jornal é incerto, pois seu proprietário sumiu do mapa. Até quando o bom projeto editorial do El Independiente poderá circular, gozando de um mínimo de credibilidade, é a pergunta que se faz nos meios jornalísticos da Cidade do México. Sobretudo considerando a reputação de Riva Palacio, autor do projeto editorial do jornal, que nos últimos 20 anos revelou-se um competente e rigoroso analista dos meios de comunicação mexicanos e de todas suas conquistas e percalços. E trapaças.



As lições de Restrepo

Ao final do I Seminário Internacional de Jornalismo e Ética, em rápida e exclusiva entrevista a este Observatório, Javier Darío Restrepo revelou algumas de suas preocupações com o dia-a-dia daqueles que saem às ruas para apurar a informação e depois voltam a redação para escrevê-las – os repórteres, a espinha dorsal do fazer jornalístico.

Restrepo é uma das figuras mais respeitadas do jornalismo latino-americano, incansável lutador pela firmeza na aplicação dos princípios éticos no jornalismo, repórter e colunista premiado, professor e autor de nove livros sobre o ofício de informar.

A seguir, trechos dessa conversa:

Como exercer a profissão num país em conflito como a Colômbia, cheio de perigos?

Javier Darío Restrepo – Com paixão, não como um cálculo. Devemos exercê-la como um serviço, não dirigido ao poder, mas aos leitores, dando-lhes informação sólida e veraz. Isso não evitará os riscos, mas por certo vai diminuí-los. Tem sido comprovado que boa parte das ameaças aos jornalistas nascem do manejo pouco ético e pouco técnico dos próprios meios de informação.

Reação da imprensa a uma situação de crise interna?

J.D.R. – A ética é hoje uma preocupação em todas partes. Os próprios meios de comunicação têm reagido, felizmente, a situações internas críticas, como foi o caso do New York Times com o repórter mentiroso Jayson Blair, o caso Kelly na BBC, e em outros veículos importantes. Por que isso? Porque é necessário defender a credibilidade da imprensa (e da empresa jornalística), que é construída dia a dia, de forma constante, com atitudes que inspirem confiança e fé nos leitores. A credibilidade, concordo, é algo intangível, mas nem por isso deixa de ser parte dos ativos de uma empresa, seja ela qual for, sobretudo a jornalística.

E como se destrói essa credibilidade? Por que em geral as pessoas não acreditam nos jornalistas e nos jornais?

J.D.R. – São diversos e complexos os fatores. Os jornalistas nem sempre conhecem bem os temas que abordam, às vezes funcionam como braços armados do establisment, obedecem cegamente às ordens dos patrões, vão atrás do furo vulgar não só na busca de notoriedade pessoal, como para aumentar a circulação. Fazem justiça paralela em seus escritos, calam diante dos economicamente poderosos, não apresentam todos os lados de uma situação, estimulam o clima de confronto entre as partes, silenciam por medo de morrer ou perder o emprego, só retificam quando se trata de gente importante. Enfim, são arrogantes, levianos, sentem-se os donos da verdade, vão sempre pelo lado negativo das coisas.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México