“Tristeza, por favor, vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim (…)”. Numa das primeiras cenas de Salve Jorge, novela da TV Globo que estreou em 22 de outubro, na faixa das 21h, a música “Tristeza”, de Niltinho e Haroldo Lobo, é interrompida por tiros, explosões e gritos. A protagonista (a atriz Nanda Costa) corre freneticamente com o filho pelas vielas do Complexo do Alemão em busca de abrigo entre ônibus e carros incendiados. Algumas cenas depois, o capitão do Exército (o ator Rodrigo Lombardi), que representa o mocinho do folhetim, prepara-se para liderar as forças de ocupação.
Não era preciso assistir ao capítulo inicial da trama para que os telespectadores conhecessem o desfecho do embate entre as forças militares e os traficantes. Com imagens dos noticiários de telejornais da TV Globo no período da ocupação do Complexo do Alemão, em novembro de 2010, a novela procurou fundir real e imaginário, apropriando-se do jornalismo para conferir uma chancela de credibilidade à ficção.
“Vencemos. Trouxemos a liberdade para o Morro do Alemão”, anuncia uma voz em off. O capitão-protagonista aparece erguendo o pavilhão nacional no ponto mais alto da favela, representando a retomada do território pelo Estado. Se a tristeza insistia em ficar na alma do poeta, o teleférico parece simbolizar a entrada da comunidade em uma “nova era”, tendo agora como fundo musical os versos de “Aquele abraço”, de Gilberto Gil: “O Rio de janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo (…)”.
Múltiplas violências
Assim transcorreu o capítulo de estreia de Salve Jorge em sua abordagem ficcional sobre um episódio real de grande repercussão na história recente do Rio de Janeiro e estratégico do ponto de vista da política de segurança pública, em curso, pelo governo do estado. Mais do que perceber as estratégias narrativas na elaboração dos personagens ou as produções de sentido empreendidas na seleção musical de “Tristeza” e “Aquele abraço”, representando simbolicamente momentos históricos distintos na vida daqueles moradores, os primeiros capítulos de Salve Jorge formam um microcosmo sobre o modo como os meios de comunicação de massa produzem representações sociais sobre o crime, contribuindo para a construção de consensos.
Alinhados com outros discursos num processo permanente de negociação, e não de imposição, com diferentes instâncias sociais, os produtos de comunicação de massa colaboram para reproduzir o conceito de violência como unidade estática, homogênea, contrapondo-se ao discurso da ordem e da paz. Trata-se de uma violência que, na visão de Marilena Chauí (1999), é entendida pela sociedade brasileira apenas como “um acidente na superfície social”, não incluindo outras formas, tais como as desigualdades socioeconômicas, a corrupção, o racismo, a discriminação de gênero e a intolerância religiosa, dentre outras.
A estigmatização dos territórios populares é outro traço evidente tanto na teledramaturgia como no próprio discurso jornalístico. Em Salve Jorge, esses dois universos se encontram nos primeiros capítulos, conforme já mencionado. A narrativa remete à noção de simulacro, não sendo possível perceber com nitidez onde termina a ficção e onde começa o real. Assim, as favelas são caracterizadas como lugares exclusivos de violência. Representam um “território inimigo”, uma construção histórica particularmente no Rio de Janeiro desde o final do século 19 e início do 20. Esse “outro” que deve ser combatido e eliminado é o que vai legitimar soluções de força, como a ocupação do Complexo do Alemão e posteriormente a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Como afirma Muniz Sodré (2006), “quanto maior a ameaça de catástrofe, maiores as supostas exigências de uma moral restauradora”.
Relação paternalista
Na novela, uma ilustração dessa narrativa de “guerra” pode ser percebida na cena em que o capitão-protagonista está se preparando para ocupar o conjunto de favelas. A passagem faz referência a um clássico dos filmes de ação estadunidense: tal como Rambo, interpretado por Sylvester Stallone, o herói brasileiro ajusta as vestimentas e confere o armamento pesado para enfrentar os inimigos do Alemão. Enquanto o militar saca a medalha de São Jorge, o santo guerreiro, o traficante beija o fuzil no outro lado do front.
O roteiro folhetinesco seguiu exatamente a cobertura da imprensa sobre o caso em que se destaca o triunfalismo da operação policial-militar. Esse aspecto já foi abordado por mim, neste Observatório, no artigo “Uma sensação de déjà vu“. Importa salientar aqui que, apesar de avanços no plano político-institucional em áreas ocupadas por UPPs, a participação efetiva dos moradores no debate sobre os problemas das comunidades ainda é um direito a ser conquistado. Por enquanto, as favelas “pacificadas” não deixaram de ser caso de polícia. O diálogo envolvendo a personagem que faz a mãe da protagonista (atriz Dira Paes) é emblemático nesse sentido:
“Só acredito nessa paz mesmo quando não estiver cercada de fuzil, porque ele mudou de mão, mas fuzil continua por aí. Pelo menos, ta mudando”
“É. Tem que começar por algum lugar.”
No mundo real, os moradores permanecem numa relação paternalista e assistencialista, dessa vez com o poder institucionalizado do Estado. Este, por sua vez, tem demonstrado extrema dificuldade em perceber os territórios populares como campo de experiências plurais e complexas.
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[Marcio de Souza Castilho é jornalista e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)]