O surto de violência que assusta os paulistanos tem um símbolo, registrado nos jornais de terça-feira (6/11): Amanda, 10 anos, foi morta por um bombeiro assustado que tentava impedir um assalto. De quebra, o agente público acertou ainda um segurança que passava pelo local. Um dos ladrões, de apenas 16 anos de idade, morreu na hora. O outro, de 18 anos, foi preso em seguida.
Na mesma edição, os jornais seguem anotando as contas dos assassinatos: desde a noite de domingo, treze pessoas haviam sido mortas na região metropolitana de São Paulo.
O noticiário tem diferenças de estilos e intenções. O Globo faz um relato das mortes, citando o caso da menina Amanda, com uma reportagem curta, mas o Jornal Nacional, da Rede Globo, havia dado na noite anterior grande destaque ao crescimento da violência em São Paulo.
O Estadão preferiu dar espaço para as negociações entre autoridades estaduais e o Ministério da Justiça, e coloca a morte da menina em segundo plano. A sequência de reportagens da semana passa a impressão de que o jornalão paulista já não se entusiasma com o assunto ou evita expor demais o governo do estado.
A Folha de S.Paulo investe mais no episódio da morte de Amanda e oferece aos seus leitores um panorama mais amplo, que permite a formação de opiniões mais densas.
Viés ideológico
Por exemplo, o leitor pode analisar a curta entrevista do comandante da Polícia Militar na capital paulista, na qual o jornalista levanta uma das questões cruciais para se entender o que está acontecendo: “Os policiais estão mais assustados?”
O comandante, evidentemente, responde que não, mas os leitores certamente são também telespectadores, e viram no Jornal Nacional uma policial, aos prantos, confessar que está morrendo de medo.
A outra pergunta – “O estado perdeu o controle da violência?” – foi respondida com um sofisma sobre a suposta precisão das operações policiais mais recentes.
Outra entrevista, com uma pesquisadora da USP, oferece as respostas que o comandante da PM negou: sim, os policiais estão com medo, o estado pode não ter perdido o controle, mas é um grande responsável pelo que está acontecendo.
A Folha deixa para uma página secundária a cobertura dos entendimentos entre o governo federal e o governador paulista, onde também pode ser lida outra reportagem mais instigante: o delegado-geral de polícia de São Paulo havia orientado seus subordinados a enquadrar como ações terroristas os ataques das organizações criminosas contra policiais, ônibus e instituições públicas.
O argumento do delegado-geral é de que os atentados que resultam, por exemplo, no incêndio de um ônibus, não têm como alvo a empresa de transporte, mas “a sociedade, o Estado democrático de direito”.
Embora o delegado-geral tenha sido desautorizado pelo secretário de Segurança Pública, sua iniciativa demonstra a visão que fundamenta a estratégia oficial para enfrentar a criminalidade e a violência em São Paulo.
Três semanas depois de o próprio governador haver justificado o aumento do número de vítimas em supostos confrontos com a Polícia Militar, com o argumento de que “os que não reagiram estão vivos”, o resultado é o aumento da violência. Da mesma forma, a iniciativa de usar contra bandidos comuns a Lei de Segurança Nacional, criada em 1983 pela ditadura para combater os inimigos do regime, diz muito sobre o espectro ideológico que orienta essa estratégia.
O medo gera violência
O raciocínio é simples: pelo Código Penal, quem incendeia um ônibus pega de 6 meses a 3 anos de detenção, por dano qualificado; pela Lei de Segurança Nacional, o ato é interpretado como sabotagem e rende pena de prisão de 3 a dez anos, podendo ser triplicada em caso de morte.
O medo é o pior dos conselheiros. E o medo está conduzindo a estratégia e as ações da polícia paulista.
Numa circunstância em que a orientação dada aos agentes na abordagem de suspeitos alimenta a espiral da violência, a Folha dá uma contribuição melhor ao questionar o primarismo do raciocínio oficial.
Basta uma olhada nas manifestações da população, em mensagens enviadas aos jornais e nos comentários postados sob notícias nos sites informativos, para se notar que a maioria é favorável a ações violentas da polícia.
Mas, como já alertava o escritor Elias Canetti no livro Massa e poder, sem consciência de seus direitos a sociedade se transforma em turba, acabando por agir contra seus próprios interesses.
Se a imprensa ainda tem uma função nobre, trata-se exatamente de manter a sociedade atenta ao que isso significa.