Quem precisar de elementos de convicção para aceitar o fato de que crime organizado e poderes constituídos possuem laços “carnais”, como diria Carlos Menem, deve ler a reportagem de Leandro Souza e Hudson Corrêa – “As notas falsas do Carnaval. Como o jogo do bicho usa as escolas de samba para desviar recursos públicos e lavar o dinheiro da contravenção” – publicada na edição nº 756 de Época (data de capa 12/11/2012).
Isto vem a propósito de afirmações contidas no tópico “A imprensa e os mortos sem nome” (ver parágrafo que se inicia com “Criminalidade e política estão ligados…”).
Os repórteres da Época trabalharam a partir de investigação feita pelo Ministério Público (MP) estadual do Rio de Janeiro. Os poderes envolvidos são a prefeitura do Rio de Janeiro, a Câmara de Vereadores e o Tribunal de Contas do Município (TCM). Seus interlocutores nos negócios são próceres da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio) como Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, Anísio Abrahão David e Antônio Petrus Kalil, o Turcão, condenados pela Justiça Federal a 48 anos de prisão cada um, acusados de “chefiar o crime organizado dos jogos ilegais, de corromper policiais e de agir com violência para manter seus negócios”. Estão em liberdade por determinação do STF. Negam os crimes pelos quais foram condenados.
Faltou dizer que o apelido de Aílton Guimarães Jorge não é uma alegoria. Ele serviu no DOI-Codi do então I Exército, é acusado de ter torturado presos políticos. Eis uma descrição de suas atividades no contrabando, praticadas durante as folgas do DOI-Codi, feita por Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada:
“No final de 1972 o capitão Guimarães, escoltado por um sargento, juntou-se à guarda que protegeu na praia do Caju a desova de uma carga de três caminhões com roupas e cosméticos.” Etc.
O retrato do prefeito Eduardo Paes não é dos melhores. Abriu concorrência em 2009 para a organização do desfile carnavalesco. O TCM, supostamente para proteger a Liesa, impugnou o certame. A prefeitura, sob o argumento de que a realização do desfile estava em risco, cancelou a licitação. Depois de garantir ao MP que não mais repassaria verbas para a Liesa, Paes criou o Viradão do Momo, atividade que lhe permitiu dar dinheiro à entidade dominada por bicheiros.
Mídia e empresas
Diz a reportagem que a Liesa, organizadora do desfile do Grupo Especial, …
“… é responsável pela venda dos ingressos para o Sambódromo, pelos direitos de transmissão de imagens para as TVs e pelos direitos autorais pela execução dos sambas. A Liga também tem recebido os patrocínios da Petrobras [governo federal] e do governo estadual do Rio. Essas receitas somam cerca de R$ 74 milhões por ano. As agremiações também embolsam dinheiro de merchandising, mas esses valores não são divulgados.”
Os bicheiros do Rio criaram ao longo de décadas uma estrutura ilegal – mas não exatamente clandestina – que serve a várias modalidades criminosas, entre elas a “máfia dos caça-níqueis, que disputa a poder de tiros e assassinatos o espaço para a instalação de máquinas em bairros do Rio de Janeiro”, como escreve a Época, e também ao narcotráfico.
No livro Comando Vermelho (1ª ed. em 1993), Carlos Amorim descreve:
“O dinheiro ‘sujo’ da droga vira dinheiro ‘limpo’ por meio de mecanismos legais de aplicação gerenciados por cidadãos acima de qualquer suspeita– a maioria advogados. Mas também tem empresário metido na lavagem de dinheiro, com investimentos na construção civil e no comércio. Há uma forte suspeita de que alguns banqueiros do jogo do bicho no Rio têm ligações com o esquema de lavagem dos lucros da droga.”
Prefeituras, prefeituras…
A Época não a explicita, mas alude a essa ligação, que, em condições normais de temperatura e pressão, deixaria a prefeitura do Rio em situação no mínimo embaraçosa:
“A omissão da prefeitura e das demais autoridades públicas representa a conivência com a contravenção e suas práticas, que incluem a lavagem de dinheiro sujo e o financiamento da violência.”
Mas o que se sabe é o contrário: se a prefeitura quisesse corrigir as coisas, estaria criado um tremendo furdunço. “Agenda negativa”, sabe como é…
E que ninguém se iluda: esse tipo de contubérnio, como diria Ruy, não é exclusividade carioca. Nos municípios brasileiros, a partir de certo porte (população e/ou renda per capita), tem Carnaval, jogo do bicho, coleta de lixo, crack, “exploração do lenocínio”, superfaturamento, cabide de empregos, “habite-se”… e níveis de pobreza que, se permitem aos governos dizer que tantos por cento passaram da “classe” lixão para a “classe” favela, garantem, na base da pirâmide, a oferta de mão de obra barata necessária à viagem ascensional das “classes” emergentes. Na pior das hipóteses, para manter tudo como dantes no quartel de Abrantes.
A turma que está no topo da pirâmide, essa deita e rola. Alguma vez foi diferente?