‘Humor perde Golias, 76, o Bronco’, copyright Folha de S. Paulo, 28/9/05
‘Um dos maiores comediantes da história do Brasil, Ronald Golias morreu na madrugada de ontem, aos 76 anos, por insuficiência múltipla de órgãos. Ele estava internado desde o último dia 8, na UTI do hospital São Luiz, no Morumbi, na zona sul de São Paulo.
O velório seria realizado na tarde de ontem, no salão nobre da Assembléia Legislativa. Um cortejo com o corpo deverá sair hoje, às 9h30, em direção ao cemitério do Morumbi, onde será realizado o enterro, marcado para as 11h.
A saúde do humorista estava fragilizada desde maio do ano passado, quando foi submetido a uma cirurgia para implante de um marca-passo. Menos de dois meses depois, sofreu uma queda e teve de ser operado para a retirada de um coágulo no cérebro.
Golias deixa a mulher, Lúcia, 63, a filha Paula, 38, e uma infinidade de amigos conquistados ao longo dos mais de 50 anos de carreira em rádio, TV, teatro e cinema.
Paulista de São Carlos, foi alfaiate e funileiro na mocidade. Largou tesouras e funis tão logo descobriu a veia humorística como aqualouco do então glamouroso Clube de Regatas Tietê. Magricelo, fazia rir tanto com aquela roupa de banho listrada e máscara para mergulho que não tardou a virar notícia em cinejornais.
Ingressou no rádio na década de 50 e, na Nacional, foi descoberto pelo humorista e empresário Manoel de Nóbrega, o criador de ‘A Praça da Alegria’ e pai de Carlos Alberto (‘A Praça É Nossa’).
Em 56, seguiu com o tutor para a TV e se tornou famoso ao sentar no banco da praça na pele de Bronco, Pacífico e Bartolomeu Guimarães. A consagração veio nos anos 60, quando protagonizou ‘Família Trapo’, na Record, ao lado de Otelo Zeloni, Jô Soares, Renata Fronzi, Ricardo Côrte Real e Cidinha Campos. O humorístico de sucesso foi embrião do programa ‘Bronco’, em 1986, ‘bons tempos’ da Bandeirantes.
O bordão ‘ô, Cride’, dito aos berros pelo personagem Pacífico, virou refrão-homenagem na música ‘Televisão’, dos Titãs.
Com o beicinho e a gritaria inconfundíveis, circulou por emissoras e palcos fazendo arte e arte, nos dois sentidos. Foi moleque do primeiro até o último show.
No cinema, atuou em comédias como ‘Três Cangaceiros’ (1961), ‘O Homem que Roubou a Copa do Mundo’ (1963) e ‘O Dono da Bola’ (1961), no qual dividiu a cena com Ankito, Grande Otelo e Jô Soares. Em 1971, estreou no teatro, com ‘Circuito Fechado’, de corpo e alma. Mais de corpo do que de alma: em fotos da época, aparece completamente nu, com as partes ‘mais proibidas’ tapadas pelas mãos de Ronald Boscoli, Miele e Carlos Manga.
Golias permanecia no ar em dois programas do SBT, ‘A Praça É Nossa’ (sábado), como Pacífico e Profeta, e ‘Meu Cunhado’ (domingo). Carlos Alberto de Nóbrega, do primeiro, e Moacyr Franco, do segundo, estavam ontem inconsoláveis com a notícia da morte do parceiro de longa data.
Os amigos riam com Golias também atrás das câmeras. Irreverente, apelidou Silvio Santos de ‘peru’. Encerrou a carreira na TV do ‘peru’ ignorando a idade que avançava. Em 2002, atuou no especial ‘Hotel do SBT’ como um mensageiro atrapalhado que, em parceria com o gerente míope (Moacyr Franco), levava hóspedes à loucura. Em 2003, foi o Romeu apaixonado pela Julieta Hebe Camargo, outra amiga e companheira dos velhos tempos.’
Artur Xexéo
‘Ô, Cride! Fala pra mãe…’, copyright O Globo, 28/9/05
‘Até os meus 9 anos, nunca tinha visto televisão. Na verdade, acho que nem sabia o que era televisão. Era um eletrodoméstico que, definitivamente, não fazia falta lá em casa. Foi assim, até certa noite de sábado em que acompanhei meus pais numa visita a um casal de amigos. Tinha um aparelho de TV no meio da sala. Estava ligado. O casal se divertia com o programa ‘Praça da Alegria’, na TV Rio. Já estava acabando. Só faltava mais um quadro. O melhor ficava por último. Manoel de Nóbrega, o apresentador, recebe no banco da praça um comediante jovem, interpretando um garoto, de calças curtas, um boné enviesado na cabeça e uma profusão de caretas. Era engraçadíssimo.
A partir daí, a TV passou a ser um utensílio de primeira necessidade lá em casa. Como seguir em frente sem acompanhar, uma vez por semana, as piadas de Ronald Golias na ‘Praça da Alegria’? Foi Golias quem levou a televisão para minha casa.
Ele foi certamente o primeiro grande comediante da televisão. Até então, os cômicos vinham do rádio e do teatro de revistas. Muitos alcançaram projeção nacional transferindo-se para o cinema. Golias, que também começou no rádio, foi o primeiro a ficar nacionalmente conhecido por seu trabalho na TV. Esse personagem da praça era ingênuo, de piadas meio bobas. Mas fazia rir pela personalíssima expressão corporal do ator. Foi o primeiro de uma série de três que dominou o humor da TV nos anos 60.
Depois dele, veio o Bartolomeu Guimarães, um velho de barbas longas, cabelo comprido, túnica e cajado que dormia no meio das conversas e, quando acordado, falava coisas sem sentido. ‘A vida… o tudo… o caminhar…’, e, dobrando o dedo indicador direito diante da câmera, concluía: ‘… o gancho!’. Como se vê, uma bobagem. Nonsense total. Mas de fazer o espectador se dobrar de rir. Bartolomeu Guimarães era um dos personagens centrais de uma experiência única na televisão brasileira: uma telenovela humorística. Era ele quem mais fazia rir em ‘Ceará contra 007’, uma sátira aos filmes de espionagem daqueles tempos.
Mais para o fim da década, lançou no bem-sucedido ‘Família Trappo’ o personagem que o acompanhou até a morte: o Bronco. Este tinha pouco da ingenuidade dos que o antecederam. Era malandro, golpista, não queria saber de trabalho, vivia encostado na casa da irmã, infernizando a vida do cunhado. ‘Família Trappo’ acabou, mas Bronco continuou no ar. Ainda faz parte da programação do SBT como antagonista de Moacyr Franco no seriado ‘Meu cunhado’. O humor de Golias era quase infantil, talvez por iso agradasse tanto às crianças. ultimamente, o texto que recebia era pesado. Pelo menos, mais pesado do que os dos primeiros anos de vida de Bronco. Mas em Golias isso não pegava mal. Mais gozado do que o que ele dizia era a maneira com que ele dizia. A piada mais pesada acabava ganhando ares inocentes nas expressões de caretas infantis.
Golias pertenceu à época de ouro do humor na TV. Nos anos 60, eram os programas humorísticos que puxavam a audiência, assim como as novelas fazem hoje. Não era fácil se sobressair numa turma da qual faziam parte Chico Anysio, Jô Soares, Vagareza, Consuelo Leandro, Nancy Wanderley, Nair Bello, Renato Corte Real, Murilo Amorim Correa, Zilda Cardoso… Era preciso ser muito bom para alcançar o estrelato. Golias era.
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Na mesma semana em que Golias se foi, morreu também outro ícone do humor dos anos 60: Don Adams, o protagonista de ‘Agente 86’, talvez o mais engraçado seriado cômico da TV americana de todos os tempos. Adams representava o agente secreto Maxwell Smart, o mais desastrado agente secreto de todos os tempos também. Adams, na verdade, chamava-se Donald Yarmy. Por causa deste Y no sobrenome, sempre era o último, ou um dos últimos, a ser chamado em testes de teatro ou cinema. Resolveu trocar de nome, então, e escolheu um que começasse com A. Passou a ser sempre o primeiro da lista. Em outras palavras, começou a carreira com uma piada.
Mas confesso que meu personagem preferido de ‘Agente 86’ era a agente 99 vivida por Barbara Feldon. O que mais me encanta na biografia de Barbara é que ela participou, em 1957, de um programa de perguntas e respostas da TV americana, ‘A pergunta de US$ 64 mil’. Uma espécie de ‘O céu é o limite’, o programa ficou famoso por ter sido investigado por uma comissão parlamentar de inquérito do Congresso dos Estados Unidos depois de ser acusado por um dos participantes de ter o resultado manipulado pelos produtores. Essa história foi contada por Robert Redford em seu filme ‘Quiz show’.
Bem, não sei se Barbara estava incluída entre os que se beneficiaram da maracutaia. Mas ela ganhou o prêmio máximo do programa, os tais US$ 64 mil, respondendo sobre Shakespeare. Como se vê, não era só um rostinho bonito.
Barbara Feldon está com 73 anos e parece que passa bem. Não custa nada esclarecer.
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No meio do festival de cinema, entre todos os filmes que não dá para ver, entre todas as cinematografias exóticas com as quais a gente só trava contato uma vez por ano, aparece uma pergunta que não quer calar: que fim levou o cinema iraniano?’
Leila Reis e Cristina Padiglione
‘Golias fazia rir com bordões e caretas’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/9/05
‘Na profissão, o fôlego de Ronald Golias sempre foi de iniciante, como ele próprio deixa claro em depoimento ao livro 50/50, que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, organizou em 2000. Diz um trecho: ‘Foram cinco anos fazendo uma peça por semana da Família Trapo. Pela primeira vez, a tevê transmitia ao vivo o que acontecia no palco. Era uma alegria. Lembro um dia em que o Bronco escorregava pelo cano de água do segundo andar da casa para o de baixo e tudo envergou. O público morreu de rir, mas percebeu que ele quase se quebrou. Se tivesse acontecido, eu teria quebrado uma costela. Tempo bom! Personagens, elenco, tudo funcionava.’
Em 2003, quando acompanhou as gravações de uma segunda versão cômica para o clássico Romeu e Julieta, com Hebe Camargo e Golias nos papéis principais, a repórter Niza Souza, do Estado, constatou que Golias não era, nos bastidores, o palhaço inconseqüente que exibia diante das câmeras. Perfeccionista, preocupava-se com cada detalhe, perguntando a todo instante se a cena gravada havia ficado boa, e interferindo no roteiro, sutilmente, se preciso fosse para melhorar o resultado.
Max Nunes, o grande redator de humor que há anos acompanha Jô Soares, já disse que se há um personagem que ele gostaria de ter criado este é Bartolomeu Guimarães, ‘aquele velhinho que Ronald Golias fazia’. Mas Nunes, em entrevista a Leila Reis há dois anos, já dizia também que esse tipo de humor, o humor de personagens, vai acabar. ‘A TV não se interessa mais pelo humor, só se interessa por esses programas americanos’, lamentou o escritor.
É um humor em extinção. Agora, com um Golias a menos na tela – e vê-se aí que não procede aquele negócio de que ninguém é insubstituível -, definitivamente em extinção.
Com Ronald Golias morre um tipo de humorismo cada vez mais escasso na TV: o ingênuo e elegante. Representante da escola paulista, Golias começou no rádio e chegou à TV em seus primórdios, levado por Manoel de Nóbrega que reconheceu seu talento na Praça da Alegria, ainda radiofônica.
Como Carlos Bronco Dinossauro, ensinava o rei Pelé a fazer dribles com ‘paradinha’, em Família Trapo, na fase áurea da Record – a gravação mais reprisada (talvez por ser uma das raras) -, ele conquistou o Brasil atormentando a vida do cunhado Zeloni. Como Pacífico, o moleque travesso que se sentava no banco da Praça de Alegria, do Manoel de Nóbrega, na antiga TV Paulista (Globo depois), popularizou o bordão ‘Ô Cride, fala pra mãe’, adotada pelos Titãs em uma de suas baladas.
De novo, no papel do bon vivant que vive à custa de Meu Cunhado – seu último trabalho no SBT, Ronald Golias roubava todas as cenas. Não. Corrigindo: todas as cenas sempre foram escritas para aproveitar todas as possibilidades do talento de Golias.
Não é à toa que Meu Cunhado, seriado que Silvio Santos viu na Argentina e chamou Moacyr e Guto Franco para escrever e dirigir, foi pensado exatamente para Ronald Golias e o personagem batizado como Bronco.
A precariedade do programa – feito com parcos recursos materiais e técnicos e engavetado por três anos antes de ir ao ar – ficava mascarada diante da interpretação de Golias. Ele encarnava pela última vez o malandro que, além de viver à custa de parentes, passa o tempo todo engendrando meios para tirar vantagem de todos.
Golias criou outros personagens engraçados – o Professor Bartolomeu, que dormia no meio das frases, mas sua marca foi sempre a improvisação – o caco, no jargão teatral – denunciada pelos colegas – Zeloni, Renata Fronzi, Nair Belo, Hebe – com incontroladas gargalhadas em cena.
Com a morte de Ronald Golias, este Brasil fica mais triste. E a TV mais pobre no setor da inteligência humorística.’
Leila Reis
‘O Brasil fica mais triste e a TV, mais pobre’, copyright O Estado de S. Paulo, 28/9/05
‘Com Ronald Golias morre um tipo de humorismo cada vez mais escasso na TV: o ingênuo e elegante. Representante da escola paulista, Golias começou no rádio e chegou à TV em seus primórdios, levado por Manoel de Nóbrega que reconheceu seu talento na Praça da Alegria, ainda radiofônica.
Como Carlos Bronco Dinossauro, ensinava o rei Pelé a fazer dribles com ‘paradinha’, em Família Trapo, na fase áurea da Record – a gravação mais reprisada (talvez por ser uma das raras) -, ele conquistou o Brasil atormentando a vida do cunhado Zeloni. Como Pacífico, o moleque travesso que se sentava no banco da Praça de Alegria, do Manoel de Nóbrega, na antiga TV Paulista (Globo depois), popularizou o bordão ‘Ô Cride, fala pra mãe’, adotada pelos Titãs em uma de suas baladas.
De novo, no papel do bon vivant que vive à custa de Meu Cunhado – seu último trabalho no SBT, Ronald Golias roubava todas as cenas. Não. Corrigindo: todas as cenas sempre foram escritas para aproveitar todas as possibilidades do talento de Golias. Não é à toa que Meu Cunhado, seriado que Silvio Santos viu na Argentina e chamou Moacyr e Guto Franco para escrever e dirigir, foi pensado exatamente para Ronald Golias e o personagem batizado como Bronco.
A precariedade do programa – feito com parcos recursos materiais e técnicos e engavetado por três anos antes de ir ao ar – ficava mascarada diante da interpretação de Golias. Ele encarnava pela última vez o malandro que, além de viver à custa de parentes, passa o tempo todo engendrando meios para tirar vantagem de todos.
Golias criou outros personagens engraçados – o Professor Bartolomeu, que dormia no meio das frases, mas sua marca foi sempre a improvisação – o caco, no jargão teatral – denunciada pelos colegas – Zeloni, Renata Fronzi, Nair Belo, Hebe – com incontroladas gargalhadas em cena.
Com a morte de Ronald Golias, este Brasil fica mais triste. E a TV mais pobre no setor da inteligência humorística.’
DON ADAMS
Ubiratan Brasil
‘Morre o ator Don Adams, o Agente 86’, copyright O Estado de S. Paulo, 27/9/05
‘Nenhum sapato foi o mesmo depois que agente secreto Maxwell Smart transformou o seu em um sapatofone, genial precursor do celular – essa e outras bugigangas tecnológicas consagraram a série Agente 86 como uma das mais famosas da história da TV e seu personagem principal, vivido pelo ator Don Adams, como a melhor paródia a James Bond. Durante anos, ele participou de inúmeras convenções no papel do amalucado agente secreto. Com a saúde muito frágil, Adams morreu no domingo, em Los Angeles, de infecção pulmonar. Estava com 82 anos.
Segundo Bruce Tufeld, agente do ator, Adams recuperava-se com dificuldade de uma fratura na bacia. Sua carreira também não foi a mesma depois do sucesso do agente Smart que, à frente do Controle, a agência de inteligência do bem, lutava contra a Kaos, representante do mal e com ambição de dominar o mundo. Levada ao ar nos EUA entre setembro de 1965 e 1970 pela NBC e ABC, a série, criada por Mel Brooks e Buck Henry, era uma sátira à guerra fria entre americanos e russos, o que lhe garantiu sete prêmios Emmy, sendo três para Adams.
A graça estava principalmente na forma desengonçada como o agente 86 conseguia resolver os problemas – desastrado e completamente inepto em relação à noção de perigo, Smart revivia as melhores qualidades dos comediantes do início do cinema, quando a ingenuidade era uma virtude.
A relação entre Smart e sua fiel colaboradora, a agente 99, interpretada por Barbara Feldon, hoje com 73 anos, também foi outro ponto alto da série, o que provocou o casamento dos dois personagens e o nascimento de gêmeos. ‘Não me importo de ter feito sucesso só com esse papel, pois minha intenção sempre foi provocar riso’, dizia Adams.
Sua trajetória, aliás, coincidia muitas vezes com a do agente trapalhão. Nascido Donald James Yarmy, de origem húngara e irlandesa, o ator divertia-se ao contar que adotou o sobrenome artístico depois do cansaço que sofria por esperar pelos testes cinematográficos – como eram feitos em ordem alfabética, ele era um dos últimos.’
NELSON RODRIGUES
Ana Wambier
‘O lado oculto da biografia de Nelson Rodrigues’, copyright O Globo, 28/9/05
‘Um pedaço da biografia de Nelson Rodrigues que nunca foi escrito se tornou público no livro ‘Amor em segredo — As histórias infiéis que vivi com meu pai, Nelson Rodrigues’, escrito pela filha mais nova do dramaturgo em seu mais longo caso extraconjugal. Sônia Rodrigues, cuja paternidade ficou oculta durante muitos anos — ela só adotou o ‘Rodrigues’ 14 anos depois da morte do pai, à custa de um exame de DNA — desnuda o convívio conflituoso que mantinha com o escritor.
Em pouco mais de 200 páginas, Sônia narra momentos de sua vida sem nenhum acanhamento. E dá ao leitor a impressão de que preferiu não lançar mão de qualquer espécie de censura ou controle.
Tom do livronão é rancoroso
Servindo de preâmbulo para tamanha franqueza, está ‘A infiel do Irajá’, a primeira das 64 crônicas breves selecionadas para compor o livro. Definindo infidelidade como autodefesa, ela abre espaço para revelar histórias até então enterradas. E golpeia: ‘Meu pai usufruiu muita fidelidade de mulheres do Irajá. Menos a minha’. Então conta que a primeira infidelidade que cometeu na vida foi contra ele, quando decidiu fazer o exame de DNA, ‘desmascarando as histórias falsas’.
Apesar desse início, o livro não tem o peso do rancor.
— Sempre escrevi essas confidências. E tive vários diários durante toda a vida. Eu digo que é o meu sanatório de bolso. Um dia eu olhei para esses escritos e disse ‘Ih, isso dá um livro’ — conta.
Ao longo do livro, descobre-se também onde Nelson Rodrigues buscou inspiração para escrever uma de suas mais conhecidas obras: ‘Toda nudez será castigada’.
— Amar é também um ato de profunda coragem. O meu pai não teve essa coragem. Ele escreveu ‘Toda nudez será castigada’, que narra a história de um homem que não protege a mulher que ele ama, num período muito difícil para nós. Ele fez a mesma coisa com a minha mãe. Ele não a protegeu nem dela mesma e nem da situação em que ela vivia, isso é terrível — conta Sônia, referindo-se veladamente à época em que a mãe foi internada numa clínica por transtorno bipolar. — Ele era muito incompetente na administração da vida.
Editado pela Agir, o livro é dividido em três partes. Na primeira, memórias mais relacionadas à infância da escritora e às dificuldades que enfrentou, como a incompreensão da sociedade diante de um caso extraconjugal, a falta de dinheiro, o amor incondicional da mãe por Nelson Rodrigues, que, apesar disso, nunca deixou a família oficial. A segunda parte está mais relacionada aos amores infantis e, claro, como sua formação familiar influenciou sua postura diante deles. A terceira e última parte trata das memórias de Sônia na fase adulta.
— Publicar é uma demonstração de orgulho. Como a criança que mostra para os pais que conseguiu nadar a piscina olímpica sem bóia. Eu vou fazer 50 anos e estou me dando esse livro de presente de aniversário. Mas é também um presente para o meu pai. É uma prova da sobrevivência e da vitória do amor. Acho que se fosse vivo, ele receberia bem o livro. Acho que ele teria orgulho de mim.’
AGATHA CHRISTIE
Fernando Duarte
‘Nova tática para Agatha Christie’, copyright O Globo, 28/9/05
‘De marketing, Agatha Christie definitivamente não precisa. Mas a autora de ficção mais vendida de todos os tempos, com direito a verbete no ‘Guinness’, não conta com o que se pode chamar de uma reputação à altura na intelligentzia do Reino Unido. A exaltação no ‘Livro dos Recordes’ tem o contraponto do ‘Oxford Companion of English Literature’, em que seu estilo e caracterização de personagens recebem uma senhora torcida de nariz. Sendo assim, o relançamento de seus livros pela Chorion, em celebração ao 75 aniversário do nascimento de Miss Marple, uma das mais famosas detetives do mundo literário, serve também como ocasião para um pouco mais de lobby pró-Christie.
Obra ainda não faz parte do currículo escolar britânico
Além dos relançamentos, a semana de 12 de setembro foi dedicada a uma série de eventos sobre a autora inglesa, incluindo uma campanha para que sua obra enfim passe a fazer parte do currículo escolar britânico. Algo que, segundo Tamsen Harward, responsável pelo catálogo de Christie na Chorion, é muito mais importante do que os lucros com a venda das novas edições, especialmente diante do que ele considera injustiças em relação ao trabalho da autora, como a afirmação de que crianças e adolescentes pouco teriam a aprender com histórias de detetives excêntricos solucionando mistérios aristocráticos.
— É, no mínimo, curioso que uma autora capaz de escrever histórias que prendem o leitor do início ao fim não seja estudada nas escolas britânicas. A maneira com Christie desafia o leitor e quase sempre o surpreende é interessante para leitores de qualquer idade. Sem falar que ela escreve sobre o vizinho inofensivo que se transforma em criminoso, algo que ainda acontece muito nos dias de hoje — alega Harward.
Curiosamente, a autora faz parte do currículo escolar americano. E na vizinha França, que normalmente gosta de desdenhar do ‘Made in Britain’, seus livros têm vendido quatro vezes mais do que no Reino Unido. Ao todo, a autora inglesa, que morreu em 1976, escreveu mais de 80 livros, com vendas de mais de dois bilhões de cópias e traduções em mais de 70 idiomas. Uma de suas peças, ‘A ratoeira’, desde 1952 é encenada continuamente pelo mundo — outro recorde.
— Ninguém está sugerindo que Agatha Christie é William Shakespeare, mas ela certamente poderia ser um pouco mais reconhecida por seu país — completa Harward.
Não que tenha sido solenemente ignorada. Cinco anos antes de sua morte, ela foi condecorada pela rainha Elizabeth II com o título de Dama do Império Britânico (o equivalente feminino ao ‘Sir’). Porém, críticos e colegas invariavelmente reclamam da simplicidade dos mundos descritos, ainda que os livros da autora inglesa tenham resistido até à censura nazista — reza a lenda que uma de suas peças foi encenada por prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald durante a Segunda Guerra Mundial.
Debates à parte, até porque Agatha Christie apareceu em primeiro lugar numa enquete popular sobre os melhores escritores de mistério e suspense britânicos, promovida no ano passado (à frente até de Sir Arhtur Conan Doyle, de Sherlock Holmes), o 75 aniversário de Miss Marple traz também uma nova exploração da imagem da autora. Na terça-feira da semana passada, foi anunciado que a casa em que a escritora passou grande parte de sua vida, em Devon (sul da Inglaterra) será aberta ao público até o fim do ano, funcionando como um museu.’