Basta uma rápida busca na internet sobre a relação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com as rádios comunitárias para perceber o tamanho do problema. São recorrentes reclamações de que a agência tem “reprimido”, “atacado”, “multado” e “fechado” emissoras ao redor do país. O uso da força contra iniciativas de grupos que buscam um espaço no espectro eletrônico, que acreditam poder pôr em prática o seu direito de exercer a liberdade de expressão, mas que não se enquadram no sistema comercial das médias e grandes empresas de comunicação parece ser comum.
De acordo com Arthur William, representante da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) no Brasil, “a Anatel incorporou a funcionalidade do antigo Dentel e absorveu, em certa medida, também sua mentalidade, agindo muitas vezes como capataz do Ministério das Comunicações, estando mais preocupado em fechar e perseguir as rádios comunitárias”.
Arthur ainda afirma que houve um processo de recrudescimento da repressão por parte da Anatel, com maior número de fechamentos durante o governo Lula do que na vigências dos governos de FHC.
Atualmente, a Amarc Brasil tem orientado que os radialistas comunitários comuniquem a defensoria pública para impedir que a Anatel leve ilegalmente equipamentos da emissora. Há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1668) contra o artigo 19 da lei 9.472/97, questionando o direito da agência de realizar buscas de transmissores em rádios livre e comunitárias, o que confere à apreensão dos equipamentos também uma prática irregular.
Além disso, os comunicadores populares reclamam do fato de que a Anatel não têm se dedicado com o mesmo empenho à fiscalização das emissoras privadas e das operadoras de telecomunicações. A própria inexistência de uma legislação específica e atualizada, assim como de uma agência reguladora que dê conta da radiodifusão comercial expressa esse tipo de tratamento privilegiado.
“Existem outros temas mais urgentes para cuidar, como esses das telecomunicações, do que apreender rádio que presta serviço à comunidade. Espera-se que a Anatel atenda os anseios da sociedade por fiscalização dos serviços comerciais, como a telefonia e as emissoras privadas, e ajude no processo de legalização das rádios comunitárias, oferecendo formação, capacitação e parcerias, como previsto, em vez de implementar uma política proibitiva de perseguição”, afirma William.
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Empresas interferem no funcionamento da Anatel
A definição da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) como autarquia lhe coloca em uma posição de relativa autonomia frente ao Poder Executivo. Se por um lado, efetivou-se um afastamento da dinâmica política interna e da influência permanente do Governo Federal, por outro, a agência tem sofrido pressão principalmente por parte de agentes privados do mercado, desde o momento da nomeação de conselheiros até em seu relacionamento com a sociedade.
Concebida para funcionar com independência administrativa e de financiamento, a Anatel possui um Conselho Diretor com mandato de cinco anos e composto por cinco membros que, embora nomeados pela Presidência da República e com aprovação do Senado, dirigem a agência sem estar subordinados a uma outra instância do Estado. Das formas de relacionamento entre este conselho e o setor privado, a mais evidente é a incorporação de ex-conselheiros aos cargos de chefia de grandes monopólios ou sua origem nessas empresas.
O atual presidente do Conselho Diretor, João Batista de Rezende, por exemplo, já ocupou o cargo de vice-presidente (2005-2006) da Associação Brasileira de Concessionárias de Serviço Telefônico Fixo Comutado (Abrafix), o que comprova que pelo menos em algum momento já foi representante direto das empresas do setor. Segundo Flávia Lefèvre, advogada do PROTESTE (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor), o caso específico da atual presidência da agência, entretanto, estaria mais vinculado às relações com o ministro das comunicações e a Casa Civil, embora confirme que o relacionamento da Anatel com o setor privado é bastante evidente e problemático.
Há muitos exemplos de ex-conselheiros que saíram direto da função para a chefia de empresas privadas. São bastante conhecidos os casos de Antônio Carlos Valente, que foi ser presidente do Grupo Telefônica (Vivo), e de Luiz Francisco Perrone, que passou a ocupar a direção da Brasil Telecom. “Ninguém nunca saiu da agência para trabalhar em um órgão de defesa do consumidor”, ironiza Lefévre.
O ex-presidente da Telebrás, um dos coordenadores de sua privatização, Fernando Xavier Ferreira, pode ser considerado um caso emblemático da forma como se dá a influência. Após a privatização da estatal tornou-se “no dia seguinte” presidente do Grupo Telefônica e “foi por muito tempo presença constante na Anatel registrada em documentos, como atas de reuniões de conselhos”, diz a advogada. “Esta relação da agência com os agentes privados, de certo modo promíscua, a gente sabe que interfere muito na forma que a Anatel regula ou deixa de regular”, completa.
Participação social
Por outro lado, o espaço com uma maior participação de representantes da sociedade civil no interior da agência, o Conselho Consultivo, composto por doze membros, não possui poderes efetivos, desempenhando um papel restrito de pressão política. São consideradas suas atribuições opinar sobre políticas de comunicação, apreciar os relatórios anuais do Conselho Diretor, aconselhar em temas relativos à prestação de serviço no regime público, requerer informações e propor ações. Ainda assim, metade dos seus membros são indicados pelos Poderes Executivo e Legislativo Federal, dois por associações das empresas de telecomunicações e outros quatro por entidades representativas dos “usuários” e da “sociedade”, sendo que esses últimos termos, pela imprecisão, dão margem para amplas interpretações.
Outras evidências da ampla influência do interesse privado sobre a atuação da agência surgem no que deveriam ser os demais mecanismos democráticos de participação. Embora tenham ocorrido 32 consultas públicas e 29 audiências no ano passado, aumento importante se considerarmos que estas últimas foram apenas 14 em 2010, ainda sim esses instrumentos têm se apresentado extremamente limitados para uma ampliação real da participação social.
Em primeiro lugar, há poucas informações para a população em geral que possibilite avaliações qualificadas dos cenários de inovação e regulação. Soma-se a isso que a utilização de linguagem técnica para tratar de discussões tecnológicas e econômicas não permitem uma rápida compreensão das questões em jogo por parte dos atores sociais.
Nesse quadro, quem não possui capital comparável ao das empresas que investem milhões em consultorias, análises e estudos, entra em uma disputa desleal. Em segundo lugar, a sociedade civil organizada não tem sido convidada para se informar antecipadamente sobre determinados temas e iniciativas, sendo pega muitas vezes de surpresa pelas breves “consultas” do poder público. “O bom andamento destes processos necessita de uma agenda regulatória, fruto de processo decisório amplo, que possa ser acompanhado de maneira simples, pública e em sistema com constante atualização”, afirma Veridiana Alimonti, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).
Há, ainda, o problema da centralização das audiências públicas em Brasília, o que dificulta uma mobilização representativa de grupos sociais interessados em participar, enquanto o setor empresarial possui recursos suficiente para levar seus representantes e manter escritórios na capital federal. Conforme um dos membros do Conselho Consultivo, Marcelo Miranda, deveria haver “um número maior de audiências, como, por exemplo, uma edição por região do Brasil, em especial quando o tema for de alta relevância”
Podem ser apontados, porém, alguns avanços no sentido da efetivação de direitos na política da Anatel. De acordo com a advogada do Idec, há “medidas positivas recentes tomadas em direção à internalização da proteção do consumidor nas atividades da agência”, como o Plano de Ação Pró-Usuários, aprovado em 2010. O representante do Instituto Telecom destaca, também, a decisão de se transmitir as reuniões do Conselho Diretor ao vivo pela internet como opção importante para a transparência do órgão. É possível acrescentar ainda a disponibilidade de acesso a dados efetuada no contexto da implementação da Lei de Acesso à Informação, que promove uma outra cultura de relação entre órgãos públicos e os cidadãos.
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Sociedade questiona o papel da Anatel
O dia é especial. Uma entidade pública, símbolo da política dos anos 90 debuta. Os convidados se reuniram para a celebração às 16h, desta segunda, 5, no Espaço Cultural da Agência Nacional de Telecomunicações – a Anatel. A mensagem de seu presidente, João Rezende, afirma “ao longo de seus quinze anos de existência, a Anatel foi bem-sucedida na missão de estabelecer um arcabouço normativo sólido – com regras claras, resultantes de um processo decisório transparente –, condição necessária para o cumprimento das políticas públicas e para a atração de investimentos”. A sociedade questiona.
Há exatos quinze anos, o Governo Federal colocava em prática um novo modelo institucional de regulação de setores estratégicos do mercado brasileiro. A instalação da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), no dia 5 de novembro de 1998, primeira entre as agências reguladoras a funcionar, marcou um passo importante no avanço da política liberalizante implementada nos últimos vinte anos. Com a criação dos novos órgãos, estavam dadas as condições para que o Estado entregasse empresas públicas à iniciativa privada, assumindo funções econômicas estritamente de regulação e fiscalização. Entretanto, o cumprimento do papel designado à agência tem se deparado com obstáculos na implementação deste modelo idealmente pensado nos princípios da competição e universalização.
Em busca de uma regulação que efetive direitos
A Anatel surge conjuntamente com a implementação de novas orientações políticas que “tiveram como principal fundamento a privatização do setor, deixando de lado políticas de compartilhamento, de desenvolvimento e de pesquisa”, afirma Marcello Miranda, membro do centro de estudos Instituto Telecom e um dos representantes da sociedade civil no Conselho Consultivo da agência. Criada para viabilizar um novo quadro de telecomunicações no Brasil no contexto da quebra do monopólio estatal de exploração dos serviços de telecomunicação pela Emenda Constitucional n.8/95 e pela Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97), ambas criadas durante o governo FHC, foi atribuída à agência o papel de outorgar, regulamentar e fiscalizar o setor.
As dificuldades anteriores do sistema de telecomunicações que fundamentaram o discurso a favor da venda das empresas estatais e da definição de um marco regulatório com ênfase liberal teria, de acordo com Miranda, sido fruto da ausência de investimentos por parte de sucessivos governos, o que repercutiu em ineficiência, encarecimento e obstáculo à expansão de serviços. A orientação política pautada pelo comprometimento com a prática de ajuste fiscal exigida por agentes do mercado financeiro teria estrangulado as possibilidades de um crescimento que inclui-se novos setores da população e que proporcionasse um funcionamento satisfatório. A Anatel teria sido, então, criada por ideólogos do neoliberalismo no Brasil como parte da reconfiguração do papel do Estado em busca de uma solução para as deficiências das empresas estatais em um momento de crise do desenvolvimentismo e pressão do capital internacional.
Proposto como solução, o órgão não vem cumprindo de forma satisfatória o papel que lhe foi designado. A Anatel, concebida como autarquia, com autonomia financeira, não tem como fiscalizar de forma efetiva as empresas privadas de telefonia que ocuparam o espaço da antiga Telebrás. Embora o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel) tenha arrecadado R$ 7,9 bilhões em 2011, a Lei Orçamentária Anual (LOA), destinou apenas R$ 467 milhões para as despesas da agência (em 2010, esse montante foi da ordem dos R$ 300 milhões).
Da mesma forma, com o mesmo objetivo de “fazer caixa” (basicamente cumprir metas fiscais determinadas por agentes financeiros), o Governo Federal tem retido, desde a sua criação em 2000, os recursos arrecadados pelo Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), que tem por finalidade cobrir custos relativos ao cumprimento das obrigações de universalizar os serviços de telecomunicações. Já são cerca de R$ 12 bilhões utilizados como “contribuição para o superavit primário”.
Segundo Veridiana Alimonti, advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), a regulação no Brasil, concebida como meio de viabilização das privatizações, teve “seu aspecto de regulação econômica fortalecido em detrimento da regulação social”. Assim, o processo de criação de agências reguladoras levou à configuração de um sistema “sem uma efetiva perspectiva de defesa do consumidor entre suas prioridades e em contexto de total ausência de uma cultura reguladora no país”.
Distorções do sistema
Nota-se facilmente as consequências da adoção de um sistema regulador com essas características. Ocorreu de fato a expansão do serviço de telefonia no Brasil nos últimos quinze anos, por exemplo, devido, principalmente, à popularização da tecnologia de aparelhos móveis (fenômeno que pôde ser observado simultaneamente em quase todo o mundo). De 2010 para 2011 a quantidade desses dispositivos que permitem tráfego de dados passou de 20,6 milhões para 41,1 milhões.
Por outro lado, o país apresenta um quadro composto por tarifas mais altas de telefonia móvel para a população mais pobre, práticas ilegais no serviço oferecido e quedas frequentes nos sinais, o que tem levado a sociedade civil a pressionar o Congresso Nacional pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e cobrar da Anatel a proibição das operadoras comercializarem seus serviços. Os indicadores da agência para avaliação da qualidade da banda larga móvel, por exemplo, exige que somente em novembro de 2014 os usuários deverão contar com 80% de transmissão média contratada. Ou seja, as operadoras estão recebendo um prazo extenso para melhorarem o serviço que, ainda assim, ficará aquém do firmado no contrato com os clientes.
Alguns problemas são ainda mais explícitos, como evidencia o caso das multas constituídas. Se o montante acumulado em 2011 alcança a marca dos cerca de R$ 616 milhões devido pelas operadoras à Anatel, apenas R$ 76,3 milhões foram arrecadados. Como solução discute-se a possibilidade da substituição do pagamento das multas pelas empresas por investimentos em suas próprias redes, o que as faria se capitalizar com dinheiro público e se justificaria ideologicamente como política de investimento.
Foi dado, ainda, às próprias empresas que terão os seus serviços de comunicação multimídia e serviço móvel pessoal fiscalizados o direito de selecionar e contratar a entidade que faz a medição da qualidade. Isto quer dizer que a Anatel transfere para os agentes de mercado que deveriam ser monitorados a competência de definir e se relacionar com o instrumento de monitoramento, como um pastor que delegasse ao lobo a tarefa de tomar conta das ovelhas.
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[Bruno Marinoni, para o Observatório do Direito à Comunicação]