Para Samuel Wainer, Adolpho Bloch, o editor da revista Manchete, era “apenas um gráfico”, “um gráfico excepcional, que até contribuiu para o embelezamento das publicações brasileiras. Mas só. Na história da imprensa em nosso país, Bloch é um acidente, um erro de revisão.”
Apesar da opinião pouco lisonjeira de Wainer, Bloch e suas empresas jornalísticas ainda são lembradas e foram objeto de vários livros nos últimos anos, num país em que são raras as obras sobre a imprensa – embora não tantos como os dedicados ao próprio Wainer e seu jornal Última Hora.
Há quatro anos foram lançadas três obras. Aconteceu na Manchete: As Histórias que Ninguém Contou, uma coletânea de reminiscências de jornalistas que lá trabalharam. Arnaldo Bloch publicou Os Irmãos Karamabloch: Ascensão e Queda de um Império Familiar, em que expõe, com inesperada candura, as ambições, emoções e relações conflituosas de uma família disfuncional – “solidamente unida pela desunião”, segundo Otto Lara Resende. Mostra também a figura carismática, voluntariosa, intempestiva, rigorosa, centralizadora, complexa e arbitrária de Adolpho Bloch. A expressão Karamabloch, numa referência aos Irmãos Karamazov de Dostoiévski, também do fazedor de frases Otto Lara Resende, resume bem o conteúdo do livro. Ainda em 2008 foi lançada Rede Manchete: Aconteceu, Virou História, sobre o desastroso e curto período de vida da TV Manchete.
Em 2012 foram publicadas as Memórias de Um Sobrevivente: A Verdadeira História da Ascensão e Queda da Manchete, de Arnaldo Niskier, jornalista que trabalhou nas Empresas Bloch, ex-secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Como livro de memórias, não faltam referências ao autor. Fica-se sabendo que ele foi “sempre o primeiro aluno da turma, jamais passando de ano com média inferior a nove”, que do segundo para o terceiro ano ginasial sua “média global bateu o recorde de 9,6, e só não foi mais alta por causa de uma matéria”. Que “eu era o mais jovem professor catedrático do Brasil”. E que na revista Manchete Esportiva “havia dois repórteres em condições de fazer a cobertura daquela Copa (na Suécia em 1958), Nei Bianchi e eu”. Ele também lembra o dia em que foi “homenageado por motivo de minha posse na presidência da Academia Brasileira de Letras” e como, nesse mesmo dia, um discurso mencionou “o meu passado de dificuldades extremas”.
Um bom número de páginas foi ocupado com transcrições de discursos e de artigos. Mas o leitor tem pouca informação sobre “a verdadeira história da ascensão e queda da Manchete” prometida no título.
Informação inexata
A revista foi lançada em abril de 1952 pelos Blochs, donos de uma gráfica no Rio de Janeiro, como uma alternativa a O Cruzeiro, que então dominava o mercado das publicações de atualidades. Impressionou mais pela qualidade gráfica do que pelo conteúdo editorial, muito irregular. Não faltaram momentos brilhantes na história da revista, onde trabalharam muitos dos melhores jornalistas do país, mas era comprada como entretenimento; seu impacto na formação da opinião pública era pouco relevante. Dizia-se que a Manchete era especialista em gastronomia. Os almoços na editora eram memoráveis e foi conhecida como um restaurante que editava belas revistas.
Manchete trocou várias vezes de diretor, que, além de cuidar da redação, tinha a tarefa, muito mais extenuante, de enfrentar as interferências e o temperamento mercurial e explosivo de Adolpho Bloch. O primeiro diretor, durante alguns meses, foi o escritor Henrique Pongetti. A revista, bem impressa e malfeita, encalhou nas bancas. Bloch a ofereceu a Roberto Marinho e a Samuel Wainer, mas não encontrou comprador. O autor é reticente sobre esse período. Afirma que ninguém soube se isso foi boato ou verdade, mas a obra de Arnaldo Bloch, Os Irmãos Karamabloch, dá os detalhes.
O diretor seguinte foi Hélio Fernandes, que colocou jornalismo na revista; mais dinâmica e agressiva, pisou muitos calos. A circulação aumentou e também as reclamações. Para evitar a interferência da família, principalmente de Adolpho, ele colocou um cartaz na porta da redação proibindo a entrada dos Blochs. Pouco depois, quem não entrava mais era Hélio Fernandes; a principal menção a ele no livro é ter dado emprego a Ibrahim Sued para fazer uma coluna social. Há virtual silêncio sobre outro diretor, Nahum Sirotsky, que fora diretor da Visão, e seria o fundador da Senhor. A única referência a ele, incorreta, diz que sucedeu a Pongetti, quando, na verdade, dirigiu a Manchete em 1957, vários anos depois dele. Otto Lara Resende é citado, mas não o seu desempenho na direção.
O diretor sobre o qual caem os holofotes, quase sempre iluminando aspectos negativos, é o gaúcho Justino Martins, que foi editor da Revista do Globo, de Porto Alegre, e correspondente em Paris de várias publicações brasileiras. Com ele, a Manchete ultrapassou O Cruzeiro em circulação. Tinha, escreve Niskier, “um olho clínico incrível, olho de cinemaníaco”; ninguém escolhia melhor o material para ilustração. Mas Martins não organizava o quadro de repórteres, nunca comparecia às reuniões de pauta e raramente criava reportagens, tarefas que, segundo Niskier, ficavam com ele. Além disso, Martins não tinha certeza de quase nada, “tarefa ideal para quem preferia dividir responsabilidades”.
Seus primeiros seis meses na direção, afirma Niskier, foram terríveis. Não conseguia fechar o número em tempo hábil e causava grandes problemas para a parte industrial. Também faz restrições a seu modo de agir. Assegura que, quando Adolpho Bloch dizia que a edição da semana era fraca, Martins, que quase nunca lia os textos, criticava os autores das reportagens: “Com essa equipe não se consegue nada melhor”. A culpa nunca era dele, diz Niskier, o que “azedou, em parte, nossa relação. Eu defendia os rapazes”. Afirma, porém, que mantinha “uma relação de respeito e amizade com Justino, apesar dos ciúmes dele quanto às minhas boas relações com Adolpho Bloch”.
Outros contemporâneos tiveram sobre Justino Martins uma opinião diferente. Para Roberto Muggiati, seu sucessor, foi ele o grande editor da Manchete. Ruy Castro observou que “Justino era um craque. Conseguia tornar qualquer assunto interessante”. Segundo outro jornalista, a receita de Martins, aparentemente fácil, era exigir “mais objetividade, mais graça e simplicidade nos textos”. Havia a lenda de que o caminho das estrelas para a capa da revista passava pela cama de Martins.
Adolpho fazia questão de participar da seleção da fotografia da capa. Se não fosse bem escolhida, o encalhe – revistas não vendidas – aumentava em até 15%. A última palavra era dele. Quando não gostava de uma foto, discutia, se irritava e amassava os cromos com a mão. Um dia, no auge do descontrole, chegou a estraçalhar a foto com os dentes. “Tinha nascido a ‘cromofagia’ na Manchete”, escreve Niskier; acrescenta que, ante “o proverbial silêncio dinâmico” de Martins na hora de escolher a capa, “surgi com uma ideia genial”: dizer que a foto que ele, Niskier, queria tinha sido ideia de Adolpho. Este olhava para Martins e dizia: “Essa é boa, não é verdade isso?” e “Justino concordava, malandramente”.
Quando caíam as vendas havia uma crise. Foram tantas as crises que “a muitos parecia que Adolpho estava arrependido de tê-lo trazido de Paris”. De acordo com Niskier, ele quis trocar o diretor, Martins, e alguém sugeriu, para substituí-lo, o nome de Augusto Nunes, ex-editor de O Estado de S. Paulo e na ocasião editor do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Adolpho ofereceu um salário de 25 mil cruzeiros por mês: “Nunca paguei tanto a ninguém”. Quando Nunes argumentou que esse era já seu salário e que só sairia por uma proposta muito boa, Adolpho mencionou que ele teria o prestígio de dirigir a Manchete, para ouvir que “a gente não paga as contas com prestígio, seu Adolpho”. Este ainda mencionou o bônus de ter, do prédio em que iria trabalhar, uma maravilhosa vista para a baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Nunes agradeceu o almoço, deu as costas e foi embora.
Um detalhe: Nunes editou Zero Hora no início da década de 1990. Dificilmente poderia substituir Justino Martins, que morrera vários anos antes, em 1983, de um câncer violento, meses depois da inauguração da TV Manchete.
Otimismo desvairado
Adolpho Bloch foi amigo leal de Juscelino Kubitschek mesmo depois de este ter sido cassado pelo regime militar e saído do país, e apesar das pressões que sofrera por causa disso. Ajudava-o com dinheiro e o elogiava continuamente em suas revistas. Segundo Memórias de Um Sobrevivente, em 1969 o ministro Delfim Netto disse pelo telefone que, para o governo militar, elogiar a obra de JK era um ato ofensivo e que havia muita pressão para fechar os créditos da empresa. Bloch respondeu que nada tinha a perder, que chegara ao Brasil só com um pilão na mão: “Se vocês quiserem, eu lhes dou a chave de minhas empresas”. Acrescentou que continuaria falando bem e dando cobertura à memória do presidente JK: “O Brasil deve tudo a ele”.
Niskier faz menção, sem entrar em detalhes, às desavenças entre os Blochs. Afirma que as brigas familiares eram quase diárias e não raro voavam objetos e até móveis, e que Oscar, sobrinho de Adolpho, nunca foi tratado com o devido respeito. “Tio e sobrinho não se suportavam.”
Samuel Wainer, para quem Bloch era um erro de revisão na história da imprensa brasileira, não sai incólume. Segundo o livro, Adolpho desmentiu que tivesse pedido a Wainer que o apresentasse a dona Darcy Vargas, mulher de Getúlio. “Mentira pura!” Niskier acrescenta que Wainer deve ter esquecido do prejuízo de um milhão de dólares com a experiência fracassada do Domingo Ilustrado, em 1971; ele estava desempregado e Bloch lhe encomendou o projeto de um jornal dominical ilustrado. Samuel, diz Niskier, “retribuiu com apenas duas ou três citações, inverídicas, em seu livro biográfico”.
O livro afirma que os ingleses Richard Steele e Joseph Addison fundaram em 1709 o semanário The Talker. O nome da revista é The Tatler, que tem o mesmo significado: “conversador”, “tagarela”. Diz também que Carlos Lacerda quase foi agredido por “detalhes relativos à Refinaria de Capuava, publicados por ele na Tribuna da Imprensa”. Na verdade, os artigos foram escritos no Correio da Manhã. Paulo Bittencourt, dono e diretor do jornal, era amigo dos donos da refinaria e demitiu Lacerda, que imediatamente fundou a Tribuna da Imprensa.
Não faltam outras histórias curiosas em Memórias de Um Sobrevivente; várias delas contadas, com detalhes diferentes, em outras obras.
Um repórter entregou ao escritor Raymundo Magalhães Jr., que trabalhava na revista, um texto sobre o verão carioca. Ele chamou o autor, depois de reescrever a matéria, e disse: “Meu filho, ‘verão’ foi a única palavra que eu consegui salvar…”.
Adolpho perguntou a um fotógrafo por que não fazia fotografias como as da revista americana National Geographic, e ele respondeu que sua máquina era velha, com dois anos de uso. “Quer dizer que se eu lhe der uma caneta Parker de ouro você vai escrever melhor do que o Machado de Assis?”
Numa visita de surpresa às oficinas, encontrou um operário dormindo entre caixas de papelão: “Você é um ladrão! Dormindo aqui nesta hora, você está me roubando!” O operário revidou: “Eu estou errado, mas o ladrão é o senhor”. Adolpho partiu para cima dele, mas recebeu um soco no nariz. Sangrando, foi levado ao hospital; quando voltou, disse: “Ele tinha razão, eu não devia ter chamado ele de ladrão!” Não o demitiu.
Toca o telefone na redação para Adolpho Bloch. O compositor Chico Feitosa, o “Chico Fim de Noite”, pedia desculpas porque Ronaldo Bôscoli, jornalista da casa, estava com muita febre e não podia ir trabalhar. “O Ronaldo está aqui, na minha frente, queimado de sol, com mais saúde do que eu”. Ronaldo pegou o telefone e espinafrou: “Como é que faz uma besteira dessas! Eu ia ficar doente amanhã, entendeu? A-ma-nhã!” Até o Adolpho riu.
Um diretor da empresa disse que havia pessoas que roubavam da firma. O rapaz que atendia o telefone e fazia as ligações para Adolpho comprou um haras. “De onde saiu esse dinheiro?!” perguntava ele.
Adolpho Bloch morreu em novembro de 1995. A TV Manchete foi vendida e “desvendida”, até que saiu do controle do grupo. Em 2000 a Manchete deixou de circular e a empresa pediu a autofalência. Os empregados ainda esperam receber os salários atrasados.
Arnaldo Niskier atribui o fim da revista Manchete e das Empresas Bloch à sua entrada na televisão, em 1983. “Eles não pertenciam ao ramo”, escreveu. “Era um brinquedo caríssimo, que acabou sacrificando os até então bons resultados da mídia impressa. (…) A crise financeira fez o resto.” Justino Martins, semanas antes de morrer, em 1983, disse: “Não vai dar certo. Equipamento não faz televisão. O que faz é a cabeça. E eles (os Blochs) não têm cabeça para isso.” Achava que a nova rede de TV iria à falência e seria fechada, tragando a Manchete e todas as demais revistas do império Bloch, que seriam reduzidas a pó, segundo narra Geraldo Mayrink na revista Época. Esta também era a opinião do próprio Adolpho: “Estou perdendo milhões nesse negócio (a TV). Bem que eu era contra. Foram meus sobrinhos que inventaram essa novidade, que vai levar a empresa à falência!”
A TV Manchete talvez tenha sido, realmente, o golpe de misericórdia. Mas é improvável que o grupo sobrevivesse, mesmo sem TV, por muito tempo. A revista já estava em decadência. Adolpho não percebeu, em tempo, o surgimento de seu principal concorrente, Veja. Niskier conta que quando essa revista foi lançada, com vendas baixas, Bloch desdenhou. Mas quando se firmou, quis fazer um acordo com a revista americana Time e surgiu a ideia de transformar Fatos & Fotos – semanário feito com as sobras da Manchete –, em revista de leitura; tentou convencer Carlos Heitor Cony a editá-la, mas ele mostrou pouco entusiasmo: “O Adolpho não vai aguentar algum amigo dele ser espinafrado”; diria mais tarde que a “Manchete nunca falava mal de ninguém, otimista ao desvario, procurava o lado bom em tudo, o lado bonito e positivo”.
Retrato fiel
Niskier observa que Veja “se firmou ganhando o respeito e a admiração de seus leitores. Nas empresas Bloch era impossível criticar, mesmo construtivamente, quem quer que fosse. O governo, então, menos ainda”. Nesta postura editorial, de agradar a todos, principalmente ao governo, de quem dependia, está um dos fatores da decadência. A subserviência não parece ser a melhor linha editorial para uma publicação de atualidades. Além disso, ao contrário das revistas da Editora Abril, a Manchete não tinha assinaturas e sua distribuição fora do Rio era precária.
Mais que editor, Adolpho Bloch era um gráfico. E, como disse Samuel Wainer, um gráfico excepcional. Um exemplo de eficiência, não mencionado no livro: a revista Manchete Esportiva circulava já na segunda-feira com os jogos de futebol de domingo; sua concorrente, a revista Placar, da Abril, só conseguia chegar às bancas na terça-feira.
Outro fator que acelerou o fim das Empresas Bloch foi sua sempre instável situação financeira, dependente da boa vontade dos sucessivos governos, seja qual fosse sua orientação. A administração era caótica. Niskier observa que “sempre foi muito difícil para ele (Adolpho Bloch) saber o montante da dívida da empresa.” Ele dizia que “dívida é uma questão de contabilidade; a nossa firma, por exemplo, sempre esteve no vermelho. Eu vivo no vermelho desde que nasci”. Numa ocasião comentou que, quando comprou seu primeiro carro, “assinei meus primeiros trinta papagaios (…) Faz mais de trinta anos que assino papagaios, já virou tradição”.
O ex-ministro da Fazenda Ernane Galvêas, que assina a apresentação, escreveu que, quando foi instalada a sucursal de Brasília, Adolpho Bloch entregou uma lancha ao diretor para ser usada no lago artificial e fez uma recomendação: “Não faça economia. Por falta de relações públicas, os judeus perderam Jesus Cristo”.
Pedro Jack Kapeller, o “Jaquito”, disse que seu tio Adolpho, amigo de Ângelo Calmon de Sá, dono do Banco Econômico, pediu emprestados US$ 3 milhões e nunca pagou nem um tostão. Quando o banco ficou sob intervenção do Banco Central, já devia US$ 30 milhões. “Não havia como pagar”, segundo ele. No entanto, Niskier assegura que alguns jornais deviam muito mais do que isso e nada acontecia. “Enquanto Adolpho estava vivo, ninguém tomava qualquer decisão drástica contra a Manchete.”
O fato de que uma revista como Manchete, bela e superficial e eternamente endividada, tenha sobrevivido durante quase meio século é um bom retrato do Brasil da época.
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[Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição]